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3.6 Contribuições da psicanálise

3.6.3 A anorexia clássica e o novo sintoma anoréxico

Embora na literatura médica existam razões para se justificar o estudo das anorexias separado das bulimias, na psicanálise, os dois quadros são habitualmente estudados como um binômio, tendo em vista o entendimento de que ambos compartilham a mesma lógica: tentar dominar o real a partir de uma imagem

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Lacan ressalta o valor simbólico ao afirmar que na anorexia mental não se trata de não comer, mas sim de “comer nada”. Dessa forma, eleva o “nada” ao plano simbólico, ressaltando o papel ativo da criança ao introduzir um ponto de falta na mãe e inverter a relação de dependência (LACAN, 1995, p.188). Recalcati ressalta que o “nada” indica a característica fundamental do objeto: a de se constituir em torno do vazio. Uma vez que o objeto primevo está desde sempre perdido, o que se encontra são objetos substitutivos que não produzem a satisfação mítica do primeiro encontro. A satisfação da pulsão só é possível através da trajetória em torno do vazio deixado por essa perda inaugural. Ou seja, em última instância, o objeto da pulsão é sempre o “nada”. Nesse sentido, não se come apenas para aplacar a fome, mas também para tentar atingir essa satisfação primeira, o que nos permite dizer que o objeto em jogo se torna muito mais o “nada” - que contorna esse vazio estrutural - que o próprio alimento (RECALCATI, 2007).

idealizada desprendida do universo simbólico. Nesse sentido, a anorexia indicaria a realização desse ideal do corpo magro enquanto a bulimia representaria o seu fracasso. Ou seja, trata-se de uma oscilação de uma mesma posição cuja língua materna seria a anorexia (RECALCATI, 2007). Sendo assim, focaremos na distinção entre a anorexia clássica e o novo sintoma anoréxico para elucidar o que está em jogo nos quadros atuais.

No início de seu ensino, Lacan usava como referência o sonho da bela

açougueira para o entendimento da anorexia. O sonho relatado a Freud pela

paciente é o seguinte:

Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive que abandonar meu desejo de oferecer um ceia. (FREUD, 1996c, p.181).

Esse sonho é retomado em O Seminário, livro 05: as formações do

inconsciente (1957-1958), onde o autor localiza a dialética do desejo e da demanda8

na histeria. Lacan conclui que manter o desejo insatisfeito é condição necessária para que se constitua um Outro que não seja inteiramente imanente à satisfação recíproca da demanda, à captura inteira do desejo pela fala do Outro (LACAN, 1999). Ou seja, a histérica se priva daquilo que demanda – o falo – para encarná-lo no lugar de recebê-lo. Assim, evidencia-se que o ser a que visa a anoréxica é ser o falo para o Outro, revelando que o que está em jogo é a localização de uma falta no Outro para provocar o seu amor (RECALCATI, 2007). Essa leitura insere a anorexia em uma lógica fálica que envolve a dialética do desejo. No entanto, atualmente, o que se observa com maior frequência na apresentação desses fenômenos é algo de outra ordem.

M. Recalcati provoca essa discussão ao ressaltar a contradição do termo

desejo da larva, usado por Lacan no texto Os complexos familiares na formação do indivíduo. Recalcati comenta que a larva, apesar de ser um início de vida, revela

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As necessidades naturais do sujeito abarcam uma dimensão fisiológico-biológica da urgência e devem, necessariamente, ser dirigidas ao Outro da linguagem para serem satisfeitas. Nesse ponto em que a necessidade passa pelo filtro significante localiza-se a demanda. No entanto, a demanda nunca é totalmente satisfeita, deixando sempre um resto que dá origem ao desejo. O desejo é aquilo que excede a demanda, fundando-se na falta-a-ser que habita o sujeito subordinado ao campo da linguagem. Dessa forma, o desejo é sempre insatisfeito, ao contrário do que propõe o capitalismo ao publicizar que certo objeto irá satisfazê-lo (RECALCATI, 2007).

uma ausência de vitalidade e de movimento que, em última instância, se relaciona com a ausência do desejo. A conjunção desses dois termos opostos pode ser observada na anorexia que, se por um lado rechaça o alimento para garantir a existência de seu desejo, por outro, executa uma manobra que culmina em uma destruição radical de qualquer possibilidade de desejo, evidenciando o poder irresistível da pulsão de morte (RECALCATI, 2007). A proximidade com a morte evoca a dimensão de gozo que ganha destaque no novo sintoma anoréxico. Ou seja, o que está em causa é um deslocamento do desejo ao gozo na medida em que o sujeito protege uma satisfação mortífera com a fome sem que isso represente uma estratégia amorosa (SANTOS, 2005).

O gozo fálico se inscreve na articulação com o simbólico e tem como apoio um corpo erogenizado, marcado pela castração, localizando-se fora do corpo, apesar de não dispensá-lo. Já o gozo do corpo propriamente dito se origina no mais- além do falo, no extático, onde o corpo em bloco, sem partição, se oferece por inteiro ao dilaceramento. No novo sintoma anoréxico, o que observamos é um corpo de gozo em oposição a um corpo de prazer. As sensações de privação e, prioritariamente a fome, instalam uma tentação que se torna fonte de gozo. Refugiar- se no corpo, implica colar-se a ele ao máximo, devido aos sofrimentos e pensamentos que se impõem. Nesse sentido, o corpo estaria intensamente presente, ainda que exaurido de seus recursos libidinais. Portanto, a anoréxica contemporânea revela o que seria esse gozo do corpo, gozo da privação, fora do sexo, para além do gozo fálico (BIDAUD, 1998). A aliança do gozo com o significante mortal pode ser evidenciada na medida em que a eventual melhora dos sintomas anoréxicos não impede que esses sujeitos se suicidem.

Lacan, ao falar do apetite de morte, destaca que a tendência à morte não é algo que tem sua explicação em um fundamento biológico, mas sim nas marcas definitivas que a mãe imprime na estrutura psíquica do sujeito sob a forma original do desmame. Assim, o empuxo à morte estaria associado a uma tentativa de resgate do Outro materno denominado por Lacan como um “canibalismo fusional”. É nesse ponto que ele localiza a anorexia como uma forma especialíssima de suicídio (LACAN, 2003a, p. 39, 41). Trata-se de uma tentativa de reencontrar o gozo perdido através de uma passagem impossível pela morte, revelando uma posição fundamentalmente melancólica do sujeito. Tendo em vista a fragilidade da função paterna no mundo contemporâneo – que é a de proteger o sujeito dessa devoração

–, fica claro que, no novo sintoma anoréxico, essa vertente de gozo está mais presente.

Recalcati destaca que o núcleo melancólico das anorexias e bulimias se encontra justamente nessa ausência de consentimento do sujeito em relação à perda do objeto. O objeto é conservado, seja na forma da identificação ao morto nas anorexias, seja na forma de uma busca compulsiva do vazio deixado pelo objeto perdido no real do objeto comida nas bulimias (RECALCATI, 2007).