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4.1 A Construção do Caso Clínico como forma de Pesquisa em Psicanálise

4.1.1 Introdução

Para trabalhar a metodologia, tomaremos como referência a noção de Construção do Caso como foi proposta pelo psiquiatra e psicanalista italiano Carlo Viganò a partir de sua longa experiência de aplicação desse método na Escola de

Especialização em Psiquiatria da Universidade de Milão. Posteriormente, o modelo

foi incorporado por diversas instituições psiquiátricas italianas, possibilitando um debate clínico aberto e sem esoterismo. Nesse contexto, a Construção do Caso se revelou como um potente instrumento de formação dos profissionais e de avaliação do trabalho em equipe, possibilitando a melhoria da qualidade clínica dos serviços de saúde mental. Em 1997, Viganò realizou uma exposição emblemática dessa experiência no Seminário de Saúde Mental, Psiquiatria e Psicanálise que aconteceu em Belo Horizonte12. Desde então, essa metodologia passou a nortear a prática clínica em diversos serviços de saúde mental do Brasil, estendendo-se para o campo da pesquisa clínica em psicanálise13.

A Construção do Caso permite a elaboração dinâmica de um saber cujo foco é o sujeito que sofre de seu sintoma. Essa referência é diferente de outras práticas em que as discussões giram em torno de questões epistemológicas relativas ao adoecer psíquico ou baseiam-se em protocolos semiológicos estabelecidos a partir da formalização empírica idealizada pela ciência positivista que exclui o sujeito em favor da objetividade e da universalidade, deixando a clínica em segundo plano (VIGANÒ, 2010a).

Como ponto de partida, adotamos o caso que, como lembra Figueiredo (2004), é diferente do sujeito. O caso se baseia em uma construção, a partir dos

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Essa conferência foi publicada no artigo intitulado A construção do caso clínico em Saúde Mental, referência fundamental para quem se interessa sobre o assunto (VIGANÒ, 1999).

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Como referência, indicamos três publicações brasileiras importantes de psicanalistas que aplicaram o método em pesquisas reconhecidas no campo da saúde mental e que serviram como suporte para o desenvolvimento desse estudo: A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental (FIGUEIREDO, 2004), Metodologia em Ato (TEIXEIRA, 2010) e A política do sintoma e a construção do caso clínico: modos de transmissão da psicanálise na prática coletiva em saúde mental (BURSZTYN, 2012).

elementos colhidos das falas e ações do sujeito, de onde podemos inferir sua posição subjetiva no discurso. Ao realizarmos uma torção do sujeito ao discurso, podemos retomar à sua localização particular na linguagem, que nos permite deduzir um diagnóstico estrutural e articulá-lo aos pontos de singularidade. Essa articulação promove mudanças no eixo da discussão do diagnóstico e do tratamento, permitindo a transmissão de algo singular do sujeito que pode ter efeitos no trabalho de uma equipe, mesmo que esta esteja constituída por profissionais sem formação em psicanálise. Isso não significa que esses profissionais não estejam implicados na clínica, devendo assumir uma postura de responsabilidade diante do desejo de sustentar um trabalho nesses moldes (FIGUEIREDO, 2004).

Figueiredo se pergunta como constituir um solo comum de trabalho em uma equipe heterogênea, com diferentes formações e referências teóricas, a partir da concepção do sintoma pela psicanálise. Conclui que isso ocorre na medida em que essa concepção avança do particular (o diagnóstico) para o singular (o sujeito do inconsciente), chegando ao geral (os projetos terapêuticos elaborados pela equipe). É quando a psicanálise consegue transmitir que o sintoma não vai sem o sujeito e que o sujeito é aquele do inconsciente (FIGUEIREDO, 2004), que ela atua no geral. Assim, coloca em destaque o sujeito e suas produções em detrimento de um modelo de reabilitação em sua dimensão moral e pedagógica.

É nesse sentido que Viganò (2010) propõe que a Construção do Caso seja um trabalho democrático no qual cada um dos protagonistas envolvidos (profissionais, familiares e instituições) participa com suas contribuições. No entanto, adverte que esse debate democrático não deve visar um consenso quanto à melhor conduta a ser tomada (VIGANÒ, 2010a). Dessa forma, estaríamos diante da autoridade do mestre, excluindo o sujeito que é o verdadeiro protagonista de todo o trabalho. Não se trata de nos perguntarmos o que é melhor para um paciente ou o que podemos fazer por ele e sim, o que ele pode fazer por si.

O ponto comum a ser buscado na Construção do Caso por uma equipe é o ponto cego das narrativas em que pode ser evidenciado um vazio de saber. É nesse lugar em que podemos encontrar o sujeito e a doença que o acometeu. Portanto, o trabalho consiste em uma inversão dialética das partes de tal forma que a rede social envolvida no caso coloca-se em posição de discente e, o paciente, na posição de docente (VIGANÒ, 1999, 2010a). Seguindo a indicação do psicanalista Zenoni

(2000), a equipe deve se instalar no lugar de aprendiz da clínica (ZENONI, 2000), servindo-se das produções do sujeito como norteadores do tratamento.

Viganò (1999) convida a pensar a Construção do Caso como uma orientação da experiência em direção ao real, ou seja, ao ponto de singularidade que aprendemos com cada sujeito. O autor retoma a etimologia da palavra “caso” para reforçar essa ideia. Mostra que caso vem do termo latino, cadere, que significa cair ou ir para fora de uma regulação simbólica. Propõe que construir um caso é ir ao encontro do real, ou seja, daquilo que não pode ser dito, mas sim, circunscrito por um saber a partir de uma operação metafórica (VIGANÒ, 1999).

A definição de Viganò (1999) da Construção do Caso como uma operação capaz de cingir o real que escapa à regulação simbólica está afinada ao conceito lacaniano de real apresentado em O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Ali, o real aparece como ponto de impasse da escrita. A escrita é o que sustenta o que não se pode escrever14. Dessa forma, podemos entender que, para Viganò (2010), este é o objetivo da Construção do Caso: sua redução a uma escrita mínima, que permitiria a circunscrição do real como impossível de tal forma que seja passível de transmissão (VIGANÒ, 1999 e 2010b).

Para sustentar essas considerações iniciais, examinemos o que vem a ser construir um caso em psicanálise, partindo do termo construção, introduzido por Freud no texto Construções em análise, e das contribuições dos textos que lhe são contemporâneos: Análise terminável e interminável e Moisés e o monoteísmo.