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4.1 A Construção do Caso Clínico como forma de Pesquisa em Psicanálise

4.1.8 A Construção do Caso e o tempo

Viganò (2010) trabalha, no texto Avaliação e evidência clínica na saúde

mental, a Construção do Caso como uma forma de avaliação que leva em conta a

transferência e as singularidades do sujeito, diferente da proposta da Medicina baseada em Evidências que é fundada na objetivação do quadro clínico. Para isso, faz referência à temporalidade lógica proposta por Lacan (1945) no texto O tempo

lógico e a asserção da certeza antecipada16 (LACAN, 1998a), ressaltando que a tendência a omissão desses tempos lógicos da transformação do problema psicológico como evidência clínica faz com que a avaliação perca sua validade, tornando-se meramente ideológica (VIGANÒ, 2010b).

Antes de examinarmos as considerações de Viganò, vejamos o que podemos deduzir do apólogo dos três prisioneiros apresentado no texto lacaniano para fomentar a discussão: a) Não se tem um acesso direto à verdade, a qual é alcançada em função da elaboração de um saber; b) O que se inscreve como saber depende de um não saber. Depende da marca da ausência dos dois discos negros, impressa no processo lógico. c) A verdade é apreendida de modo antecipado. Dessa forma, podemos concluir que tanto o prisioneiro quanto o analista decidem sobre a verdade sem conhecê-la inteiramente. Verdade que será submetida à prova, mas que não seria verificada se eles não a atingissem na certeza (LACAN, 1998a).

Tendo em vista que a Construção do Caso consiste no testemunho das diversas fases do trabalho do paciente (VIGANÒ, 1999), podemos localizá-la nos diferentes momentos de acompanhamento de um paciente no campo da saúde mental que, seguindo as recomendações de Viganò (2010), devem ser articulados aos tempos lógicos. A omissão desses tempos lógicos da transformação do

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Nesse texto, Lacan apresenta o famoso apólogo dos prisioneiros em que o diretor do presídio oferece a três detentos a liberdade para aquele que desvendar um problema. O chefe do presídio dispõe de cinco discos - 3 brancos e 2 negros - e cola um deles, nas costas de cada prisioneiro, de forma que um prisioneiro consegue ver os discos nas costas dos outros dois, mas não o seu próprio disco. Quem descobrir a cor de seu próprio disco deve ultrapassar a porta e, caso forneça uma explicação lógica, ganha a liberdade. Depois de certo tempo de hesitação, os três se precipitam e respondem corretamente a questão. A lógica é a seguinte: a hesitação dos três prisioneiros ao ver os discos dos outros dois atesta que não poderia haver 2 discos pretos nas costas de dois prisioneiros, senão o terceiro prisioneiro imediatamente saberia que o seu disco seria branco. Sabe-se, então, que cada prisioneiro pode ter visto um disco branco e outro preto ou 2 brancos. Cada prisioneiro que descobriu o enigma sabia que os outros dois também sabiam dessa primeira premissa. Ainda sim, nenhum dos outros dois se manifestou. Se o disco nas suas próprias costas fosse negro, algum dos outros dois, por conta da primeira premissa apresentada e por ninguém ainda ter apresentado a solução, saberia que o seu disco era branco, e logo apresentaria a solução para libertar-se. Como a hesitação continuou, o seu próprio disco só poderia ser branco.

problema psicológico como evidência clínica faz com que a avaliação perca sua validade, tornando-se ideológica (VIGANÒ, 2010b).

a) O instante de ver: nesse tempo, que corresponde à hesitação dos prisioneiros, Viganò localiza o olhar clínico que não deve ser confundido com a evidência dos diagnósticos atuais que precipitam a conclusão. O autor ressalta que esse tempo não é um tempo de mensurações, mas sim, de avaliação, devendo introduzir uma evidência que esteja ancorada ao caso e não à verdade universal das classificações.

b) O tempo de compreender: nesse tempo, que precede o ato analítico e que corresponde à precipitação dos prisioneiros em direção a porta, os componentes recolhidos da fala e dos atos do sujeito permitem ao analista reconhecer a posição desse no discurso, estabelecer um diagnóstico estrutural e localizar o gozo singular que seu sintoma circunscreve. É a partir desse ponto singular que é possível ao analista lançar seu ato, sobre o qual somente o paciente poderá testemunhar. Viganò destaca que, com o argumento de que se devem reduzir os custos, esse tempo é estrangulado e, até mesmo negligenciado, na atualidade. O autor argumenta que “chega-se ao absurdo de cortar pela raiz o que não custa nada, como o voluntariado, a escuta clínica, isso que o sujeito está disposto a pagar com a sua pessoa” (VIGANÒ, 2010, p. 473).

c) Momento de concluir: é nesse momento que se cria um espaço analítico ou terapêutico. É aí que podemos localizar o ato analítico, no qual o saber é elaborado sobre o objeto causa de desejo do analisante, precipitando um ato conclusivo. No processo analítico, o objeto causa de desejo equivale ao disco que o prisioneiro porta nas costas sem conhecê-lo. A conclusão, na análise, surge como escansão no tempo de compreender, que lhe antecede. Põe um termo no tempo de elaboração. A conclusão é solidária com o ato do analista, pensado como decisão e aposta, e que, posteriormente, será verificado. Viganò adverte que, na medida em que não é estabelecido um critério no tempo anterior, esse tempo se torna um espaço degradado de simples

O autor insiste no propósito de se construir a dignidade ética e cultural do ato analítico, ressaltando a importância de se submeter à prova a eficácia da psicanálise nas discussões e exposições de casos clínicos. Nesse sentido, as estruturas reais do caso clínico e a lógica de suas respostas devem ser evidenciadas, afinal, a contingência dessas estruturas é ligada ao caso clínico e não à teoria, enquanto o seu valor universal é garantido pela escritura e pela discussão dos casos.

A proposta é que a lógica e a topologia sejam usadas como instrumentos para construção da evidência clínica, indicando que a transmissão seja feita através do testemunho daquele que conduz o tratamento como acontece em alguns

passes17. Uma vez que a evidência vem do próprio paciente, Viganò sugere uma escritura do caso que conecte o que se compreende no tratamento com o que pode ser lido e transmitido após o ato analítico de acordo com a resposta do paciente. Trata-se de fazer aparecer a incidência do não programado.