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3.6 Contribuições da psicanálise

3.6.2 O contemporâneo

A psicanálise lacaniana introduz uma importante contribuição para a clínica das anorexias e bulimias ao defender que a novidade dessas manifestações se relaciona com a influência das mudanças culturais na subjetividade de nossa época. Se por um lado há algo no sintoma que é estrutural e atemporal, por outro, há algo que se articula com a cultura da época, cabendo ao analista, segundo as indicações lacanianas, se ocupar disso (EIDELBERG et al., 2003).

Na sociedade atual observamos o triunfo do capitalismo com toda a gama de ofertas sedutoras veiculadas pelos bombardeios propagandistas. Os objetos de consumo são oferecidos a todos com a falsa promessa de que tamponarão o vazio estrutural4 do ser humano. Na verdade, isso não ocorre e o sujeito se põe a consumir cada vez mais e mais em uma busca desenfreada por uma satisfação absoluta que nunca chega. Ao final, não sabemos mais quem é consumido: o objeto ou o consumidor. É nesse ponto em que Lacan vai localizar o mal-estar da modernidade.

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O sujeito, ao entrar na linguagem, é marcado por uma perda inaugural decorrente da castração. Trata-se de uma falta estrutural formalizada no ensino lacaniano como falta-a-ser, que não pode ser saturada por nenhum objeto. Esse é o engodo do discurso do capitalismo que tenta produzir uma falta no sujeito, convencendo-o que a oferta infinita de objetos de consumo irá aplacá-la. Trata-se de uma falta não subjetivizada que, no sentido psicanalítico, não se relaciona com o desejo. Afinal, não carrega consigo qualquer impossibilidade, animando o sistema de consumo.

Lacan, nos anos 30, em seu texto Os complexos familiares na formação do

indivíduo (1938), em consonância com Freud, ressaltou a importância fundamental

da função da imago paterna5 na estruturação psíquica do sujeito. Já nesta época, o psicanalista anunciava um declínio social dessa imago e a consequente crise

psicológica que colocaria o sujeito à mercê das catástrofes do progresso. Nesse

contexto, Lacan localiza a grande neurose contemporânea, e com ela, o auge da psicanálise (LACAN, 2003a).

Antes, a castração funcionava como elemento organizador que ordenava o psiquismo e o laço social. A ideia freudiana era a de que a cultura exigiria do sujeito a renúncia da satisfação pulsional, o que provocava uma divisão subjetiva entre o que é da ordem do desejo e o que é da ordem do social. Essa renúncia se tornava possível a partir das compensações produzidas pela civilização através dos ideais, que incluíam os mitos e a religião. Tais ideais se articulavam, de alguma forma, com o Mito Edipiano, com o pai e com o universo do sentido. Na medida em que ocorre um declínio da imago paterna, os ideais deixam de orientar o sujeito no adiamento da satisfação pulsional.

Com a assunção do discurso capitalista, os gadgets6, objetos fabricados pela tecnologia, passam a ordenar a realidade. A partir de uma oferta obscena de objetos, o capitalismo cria uma atmosfera onde tudo é possível. A fragilidade do anteparo da função significante não deixa alternativa, empurrando o sujeito ao consumo para que a satisfação seja imediata. Consuma! Goze! Aproveite! são os chamados que imperam e ofuscam a falta estrutural decorrente, em termos freudianos, da castração. Dessa forma, a bússola dos ideais é substituída pelos objetos que possibilitam um gozo imediato. Essa característica da época impede que o sujeito seja interrogado quanto ao desejo e, em última instância, quanto às questões relativas ao amor. A repercussão é a evidente fragilidade dos vínculos sociais. As imagens do mundo contemporâneo confirmam essa ideia quando

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Na época deste texto, Lacan ainda não dispunha dos recursos do estruturalismo de Jakobson e Lévi-Strauss, denominando de imago paterno aquilo que viria a ser conhecido em seu ensino como Nome-do-Pai (NP) (MILLER, 1996). O NP é o significante que substitui outro significante, o desejo materno, através da operação da metáfora paterna. Essa operação introduz a função normativa e ordenadora da castração, limitando o gozo e, ao mesmo tempo, introduzindo a significação fálica. Desta forma, o desejo materno passa a ser orientado à incógnita fálica, separando mãe e filho.

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Gadget, palavra em inglês que significa giringonça, foi usado por Lacan para se referir aos objetos tecnológicos de consumo que são ofertados como se fossem objetos de desejo dentro da lógica do capitalismo.

mostram, por exemplo, as cracolândias repletas de sujeitos que quase não falam entre si. Se antes, no auge do movimento hippie da década de 60, os entorpecentes eram usados em prol de um ideal de liberdade e amor, atualmente, esse tipo de comportamento não se refere a qualquer ideologia; visa uma satisfação autista devastadora e exclui o encontro com um parceiro sexual.

Nessa mesma lógica podemos localizar os comportamentos anoréxicos e bulímicos da atualidade. É evidente que o incômodo com a imagem corporal não se sustenta na possibilidade de um encontro sexual, afinal, o que se percebe é um corpo extremamente debilitado sem qualquer atrativo para o sexo. Se, antes, esse tipo de comportamento era orientado por ideais, fossem eles religiosos ou políticos, atualmente, a questão se relaciona com o excesso de imagens e objetos, inclusive o alimento, presentes no mundo moderno. Na medida em que consomem nada7, as anoréxicas parecem se rebelar justamente contra esta oferta excessiva de objetos, evidenciando com o seu corpo, até as últimas consequências, que o desejo é estruturalmente insatisfeito e que nenhum objeto é capaz de saturá-lo. Já as bulímicas parecem submeter-se à lógica do consumo desenfreado para mostrar justamente esta inconsistência do excesso de objetos, transformando-os em nada a partir da purgação (RECALCATI, 2007). O preocupante é que há algo nessa manobra que escapa ao princípio do prazer, evidenciando a devastação da pura pulsão de morte.