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7 FRANÇOIS DELSARTE, PRINCÍPIOS E SISTEMA

7.1 A apropriação artística do delsartismo

Como mencionamos, em vida Delsarte deu inúmeros cursos orais em torno de suas teorias e esquemas, mas não deixou nenhuma obra publicada. O delsartismo que ganhou, fortemente, os domínios da expressividade do corpo humano, principalmente nos Estados Unidos, no final do século XIX e início do século XX, foi fruto da projeção do sistema por meio de discípulos de Delsarte, bem como seus seguidores.

O que chega a nós é, portanto, uma interpretação, nem sempre consensual, e algumas vezes passional, sobre experiências e reflexões de seus seguidores - muitos deles já de uma terceira geração, como o próprio Ted Shawn -, e que deixam algumas lacunas de compreensão da peculiar obra desse pensador, tais como a própria interpretação do Compendium, que não nos pareceu verdadeiramente enfrentada na literatura visitada. Strazzacapa (2012), ao mencionar os antecessores das técnicas somáticas, lembra-nos que os pensamentos de Delsarte encontraram campo fértil nos países da América do Norte, no entanto, ele ficou por muitos anos esquecido em seu país, e só na década de 1990 passou a ser redescoberto na França.

O principal aspecto da obra de Delsarte, já sinalizado, e que agora gostaríamos de destacar foi sua apropriação artística, que rendeu enorme influência na raiz do que viria a ser a dança moderna, sobretudo, nas linhas americana e alemã. Os princípios desenvolvidos por ele foram

revolucionários neste sentido, principalmente pelas formas práticas elaboradas e aplicadas por um de seus alunos, o ator americano Steele MacKaye, que, segundo Bourcier (2001), trabalhou com Delsarte em 1869 e foi escolhido por ele como seu herdeiro espiritual.

Este encontro potencializa, fundamentalmente, o acesso e a aproximação das áreas artísticas, entre elas a dança, ao delsartismo. Isso porque, segundo Suquet (2005), o empreendimento de Delsarte jamais se voltou para a elaboração de um verdadeiro método de ensino, criação essa que seria desenvolvida por Mackaye com sua “gymnastique harmonique” ou ginástica harmônica. Mackaye, que teria inventado tal sistema para sua própria aprendizagem enquanto seguia o curso de Delsarte, acabou impressionando o mestre, como é demonstrado na passagem seguinte – trata-se do trecho de uma carta do próprio Mackaye à sua esposa, citado por Suquet:

Durante o período que eu passei com Delsarte, [...] aconteceu com frequência de eu ensinar sua série de gestos aos estudantes, aplicando meu próprio sistema. Os resultados que eu obtive suscitaram em Delsarte a surpresa e o entusiasmo mais profundos. Ele percebeu que eu podia compreender e colocar em prática tudo o que ele ensinava e que eu era, também, um criador e um filósofo. Ele me reconheceu como um parceiro - no trabalho artístico -, como seu único discípulo [...], seu colaborador e seu sucessor. (MACKAYE110 apud SUQUET, 2005, p.26, tradução nossa)111

Mackaye, foi assim, o primeiro a desenvolver uma verdadeira prática do movimento, a partir do sistema de Delsarte. Ele realizou importantes mudanças na terminologia anterior e transformou as formulações de seu mestre de maneira bastante instrutiva, através da criação de categorias que apreendem o movimento e suas qualidades. Como exemplo de sua maior objetividade, podemos citar a tríade Vida-Alma-Espírito, que passa a ser considerada como Coração-Cabeça-Mão ou as novas tríades elaboradas, possíveis de se imaginar de um jeito mais concreto, como: Equilíbrio-Flexibilidade-Precisão e Naturalidade-Precisão-Harmonia. Com sua ginástica harmônica, Mackaye funda o início de uma prática que viria a ser a análise de movimento, enraizada, portanto, no sistema delsartista. No entanto, nesse método, a correspondência inicial entre função orgânica e estado espiritual proposta por Delsarte toma o

110 Trata-se de uma carta registrada na seguite publicação: RUYTER, Nancy Lee Chalfa. The Cultivation of

body and mind in nineteenth-century americam delsartism. Wesport, Connectitut: Greenwood Press,

1999.

111 Pendant la période que je passai avec Delsarte, […] il m´arriva souvent d´enseigner sa série de gestes aux

étudiants, en appliquant mon propre système. Les résultats que j´obtins suscitèrent chez Delsarte l´étonnement et l´enthousiasme les plus profonds. Il réalisa que je pouvais comprendre et mettre en pratique tout ce qu´il enseignait et que j´étais, moi aussi, un créateur et un philosophe. Il me reconnut comme un pair

contorno da dupla movimento-psicologia, mudança que seria exponencial para o futuro do delsartismo americano que, ademais das especulações teóricas, acabara de ganhar uma aplicação técnica. Mackaye afirmava que o princípio que o fez alcançar o rápido aprendizado dos gestos propostos por Delsarte, foi uma análise aprofundada de seus próprios movimentos, enquanto buscava articulá-los. Dessa maneira, ele procurava estudar os obstáculos físicos que surgiam e dificultavam sua gesticulação, entendendo que isso se devia ao modo como seu corpo se organizava para realizar as ações que lhe eram propostas.

É neste sentido que se desenvolve uma cultura psico-física do movimento, que parece ser, ainda hoje, a maior herança deixada por Delsarte e seus discípulos. Talvez tenha sido essa uma das iniciativas que deu origem ao que a dança contemporânea e as técnicas somáticas – citando apenas algumas áreas afins - chamam hoje de propriocepção ou consciência do corpo e do movimento, ou seja, abre-se caminho para a presença do pensamento na elaboração e execução dos gestos, busca-se compreender o movimento em toda sua extensão e sucessão.

Neste contexto, que sugere a transformação do próprio pensamento sobre o corpo, devemos destacar, como quer Suquet (2005), que o período histórico em que o delsartismo tornou-se moda nos Estados Unidos - fim do século XIX -, coincide com a chamada segunda revolução industrial americana, vivida na metade final do mesmo século, em que o país esteve mergulhado em um inédito e acelerado processo de racionalização tecnológica, que trouxe consequências também para as condições de vida e trabalho. Contrariando essa tendência de hipercivilização, os indivíduos passaram a questionar aqueles que seriam seus recursos físicos e espirituais primeiros e, assim, nos anos de 1880, multiplicaram-se os movimentos que buscaram recriar “experiências autênticas”, que permitiam ao indivíduo um reencontro consigo mesmo.

Sob essa nova orientação cultural, eclodem os movimentos esotéricos, a busca pela saúde, pelo desenvolvimento individual e social, ensejo no qual surgem inúmeros métodos de educação física e expressão. As práticas pedagógicas e as teorias da educação física passam a ser revistas, abandonando uma concepção militarista em prol de uma visão mais terapêutica que refletia a condição corporal em torno de uma transformação global, ou seja, considerando-se tanto os aspectos físicos quanto os psíquicos de cada sujeito.

É este terreno fértil que Mackaye, no retorno a seu país, começa a aplicar e divulgar o método da ginástica harmônica que, rapidamente, espalha-se e alcança sucesso entre os americanos. Diante de toda a publicidade recebida, Bourcier (2001) enumera as três principais escolas que teriam encaminhado o delsartismo à dança moderna:

 Em Paris, Gustave Delsarte, filho de François Delsarte, ensina o método à Henriette Crane, que formou alunos nos Estados Unidos. Entre eles estava Mary Perring King, que transmite o ensinamento a Ted Shawn que, posteriormente, trabalhará com a própria Henriette Crane;

 A professora de dança Geneviève Stebbins112

(1857-1933), uma discípula direta de Delsarte, passa a integrar seus métodos em suas aulas e teria como aluna a bailarina Isadora Duncan;

 Aurilla Colcord Poté, aluna de MacKaye, ensina o método à mãe de Ruth Saint-Denis, que será, portanto, a predecessora da filha.

Veremos com mais detalhes o que o delsartismo representou para a dança moderna e qual foi o papel dos personagens acima na difusão e apropriação do método.