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A articulação como mecanismo de constituição de referência

POR UMA SINTAXE DE BASES ENUNCIATIVAS

2.4 SOBRE A NOÇÃO DE REFERÊNCIA

2.4.2 A articulação como mecanismo de constituição de referência

Parece-nos basilar a compreensão de que a articulação, sobre a qual tanto falamos até aqui, seja uma instância reguladora da construção sintática da sentença. Considerando a formação dos grupos morfossintáticos, podemos observar, naturalmente, que os elementos linguísticos

têm a sua versatilidade no “arranjo sintático” regulada por sua identidade como unidade linguística. Por exemplo, a palavra ‘mesa’ pode compor um GN que ocupe os lugares de

sujeito gramatical e de objeto, ou ser parte da composição de um GPrep ocupante do lugar de adjunto adverbial, mas não constitui uma forma verbal em função de sua natureza categorial de substantivo, a menos que se dobre às regras de derivação sufixal do português e recrie-se como verbo – ‘mesar’. Dentro da sintaxe, esse nível de articulação, que poderíamos chamar de micro estrutural, interessa-nos mais como produto do que como processo. Em outras palavras, as relações internas que culminam na formação das unidades GN e GPrep, por exemplo, são relevantes para as nossas análises somente na medida em que elas repercutem na articulação entre os grupos morfossintáticos26, i.e., na articulação sintática propriamente dita. Podemos ilustrar essa questão pensando na constituição da forma verbal no futuro do presente do indicativo. Não interessa à sintaxe a inserção da desinência, se estamos mobilizando um verbo da primeira, da segunda ou da terceira conjugação, ou se se trata de um verbo defectivo. Entretanto, é de suma importância explicar o fato de que essa forma verbal pode ser núcleo do

predicado de uma oração independente, como “Eu comprarei um apartamento, depois da Copa de 2014”, mas não se presta a núcleo do predicado de uma oração dependente, como “(??) Se o Brasil ganhará a Copa de 2014, eu comprarei um apartamento”.

A notória função reguladora da articulação dá subsídios à consolidação de pontos de contato entre as dimensões orgânica e enunciativa. A consolidação desses pontos de contato constitui as regularidades linguísticas, as quais vislumbramos pelo viés da configuração da referência na sentença. Como mostramos em Lacerda (2009), foi observada a atuação das expressões pronominais indefinidas27 ‘Quem’ ou ‘Aquele que’, sedimentadas exclusivamente como ocupantes do lugar se sujeito em sentenças proverbiais. Verificamos que essas expressões têm a configuração da sua referência modulada pelo tempo das formas verbais com as quais se

26 Adiante, introduziremos a noção de formação morfossintática, um desdobramento do conceito de formação nominal (DIAS, 2012), que capta com mais propriedade a passagem das categorias morfológicas a categorias morfossintáticas e sua constituição na interface entre as dimensões orgânica e enunciativa da língua.

articulam. Vejamos o contraste entre os exemplos em (36), cuja análise foi retomada por Dias (2009, p. 24).

(36) a. Quem ri por último ri melhor. b. Quem rir por último rirá melhor. c. Quem plantou colheu.

Coloquemos o foco sobre a articulação interna que compõe as orações que preenchem o lugar de sujeito dos períodos28 em (36). No período (36a), constrói-se um perfil de referência no escopo do lugar de sujeito, o que promove o período inteiro ao estatuto de sentença

proverbial. Nesse caso, o pronome “Quem”, que encabeça a ocupação do lugar de sujeito,

constitui uma prospecção de referência. Diferentemente, nos demais períodos do grupo (36), projeta-se uma identidade de referência no âmbito do lugar de sujeito, i.e., o pronome

“Quem” constitui uma projeção de referência, o que distancia os períodos (b) e (c) do estatuto

proverbial verificado em (a).

Vale destacar que o contraste entre prospecção e projeção reside no fato de a primeira contrair traços definidores de uma referência proverbial – indicialidade, onitemporalidade e genericidade (LACERDA, 2009) –, enquanto a projeção equivale a uma referência indeterminada. E devemos destacar ainda que os períodos analisados possuem uma estrutura semelhante – Quem x y –, que articula uma condição (Quem x) seguida por sua consequência necessária (y), o que chamamos de estrutura implicativa (KLEIBER, 2009). Portanto, parece comprovar-se que a articulação com a forma verbal no presente do indicativo em (36a), contrapondo-se à articulação com as formas verbais no futuro do subjuntivo, no futuro do presente do indicativo e no pretérito perfeito do indicativo em (36b) e (36c), seja o fator determinante para a configuração da referência tanto do pronome indeterminado Quem como da sentença inteira.

Nas palavras de Guimarães (2009, p. 51), a articulação “é o procedimento pelo qual se

estabelecem relações semânticas em virtude do modo como os elementos linguísticos, pelo

agenciamento enunciativo, significam sua contiguidade”. Esse procedimento “pode se dar de três modos diferentes: por dependência, por coordenação e por incidência” (Idem).

28Utilizamos aqui a terminologia ‘período’ e ‘oração’ no lugar da habitual ‘sentença’ apenas para ressaltar a contraposição entre a formação do elemento ocupante do lugar de sujeito e as sentenças completas nos exemplos em (36).

Na constituição do GN ‘proposta do governo’, ocupante do lugar de objeto do verbo ‘analisar’ em (32) “Professores analisam proposta do governo, mas sindicato avalia que greve deve

continuar”, observamos uma articulação por dependência. Podemos identificar uma operação de caracterização, realizada pelo agenciamento enunciativo, em que o GN ‘proposta’ é afetado pelo GPrep ‘do governo’ na constituição da referência. O mesmo processo ocorre na formação do GN ‘uma distribuição da renda’, na sentença (34), “O Brasil tem uma

distribuição da renda desigual”. Já a articulação por coordenação constitui-se a partir de um

paralelismo, uma associação não hierárquica entre as expressões. No período em (33), “O

propósito é criar ‘uma grande mostra premiativa’ que dê destaque e projeção aos estudantes e professores”, temos duas amostras de paralelismo, uma entre os GNs ‘destaque’ e ‘projeção’ e

outra entre ‘estudantes’ e ‘professores’. Essas associações também contam com o agenciamento enunciativo para se efetivar, uma vez que a articulação entre ‘estudantes’ e

‘professores’, ou entre ‘destaque’ e ‘projeção’, considera o modo como as formas linguísticas

estão constituídas sócio historicamente e perfaz um recorte na memória de sentidos vinculada ao percurso de enunciações de cada um desses termos. Da mesma maneira, a articulação que coloca ‘do governo’ como atributo de ‘proposta’ também é perpassada pela constituição histórica dessas formas linguísticas. Outro exemplo de articulação pode ser observado na sentença apresentada primeiramente em (6), que retomamos logo a seguir, em (37).

(37) De fato, estava aberto a um pedido de desculpas faz tempo.

A associação entre o sujeito gramatical eu ou ele e o elemento chamado pela tradição

gramatical de predicativo, ‘aberto’, também configura uma relação por dependência. Contudo,

diferentemente do que vimos no exemplo anterior, há nesse caso uma operação de predicação.

Até então verificamos os dois primeiros modos de articulação, em que o Locutor relaciona os elementos dentro da sentença ou do período. A articulação por incidência, diferentemente, constrói uma operação pela qual o Locutor relaciona sua enunciação com a sentença (GUIMARÃES, 2009)29. Podemos observar esse terceiro modo de articulação mais uma vez na sentença em (37). Trata-se da articulação do marcador discursivo, ‘de fato’ com a sentença,

‘estava aberto a um pedido de desculpas faz tempo’. Essa articulação não estabelece uma

29 Guimarães (2009) insere as suas reflexões no campo da semântica e, como “a unidade de análise para a semântica é o enunciado” (p. 50), esse autor fala em “elementos do enunciado”, em relacionar “enunciação com o enunciado”. Nós, que trabalhamos com sintaxe de bases enunciativas, cuja unidade de análise é a sentença, entendida como enunciado em potencial, somos levados a produzir um deslocamento na perspectiva de Guimarães. Assim, onde se lê “sentença”, ler-se-ia “enunciado” no texto do autor.

dependência entre elementos associados, antes, marca a entrada da perspectiva do Locutor naquilo que ele diz.

Considerando essas reflexões sobre a constituição da referência feitas a partir dos tipos de articulação apreendidos por Guimarães (2009), nos deparamos com um questionamento: como se estabelece a articulação entre cada um dos lugares sintáticos e o restante da sentença que os abriga? Essa articulação dar-se-ia de modo distinto das operações que se configuram por coordenação, dependência ou incidência? Uma vez que postulamos ser o lugar de objeto projetado pelo verbo, podemos admitir que a articulação entre esse lugar sintático e a forma verbal se dá por dependência. Ademais, a constituição do predicado encaixa-se perfeitamente na descrição feita por Guimarães (2009, p. 51) da articulação por dependência, que “se dá quando os elementos contíguos se organizam por uma relação que constitui, no conjunto, um

só elemento”. Diferentemente da coordenação, que “se apresenta por um processo de acúmulo

de elementos numa relação de contiguidade” (Idem). Resta-nos ainda o questionamento a respeito do lugar de sujeito e, sobretudo, a respeito do lugar de adjunto adverbial.

Perini (2010, p. 58-59), em uma perspectiva que lida com a estrutura de constituintes da

oração, considera que os adjuntos seriam os “constituintes de uma oração que têm papel temático inerente”, ou seja, os adjuntos, diferentemente dos complementos, seriam “por assim dizer autônomos” dentro da sentença. Vejamos o exemplo em (38).

(38) José foi para o Rio de Janeiro em 1967.

Na leitura de Perini (2010), enquanto os demais constituintes, ‘José’ e ‘para o Rio de Janeiro’, contraem, respectivamente, papel temático de tema ou agente e de meta somente a partir das relações que estabelecem dentro da sentença (38), o GPrep “em 1967” já carrega, isolado da sentença, a expressão de tempo e, por isso, independe da articulação em (38) para receber papel temático. A descrição feita pelo autor parece indicar que os adjuntos adverbiais não poderiam estabelecer uma articulação por dependência dentro da sentença. Além de esclarecer o tipo de articulação estabelecida pelos adjuntos adverbiais, falta-nos também compreender qual é o tipo de operação semântica – tão distinta da predicação quanto da caracterização – que perfaz a referência constituída pela articulação dos adjuntos adverbiais no interior da sentença. Enfim, ao procurarmos entender como os elementos que preenchem o lugar de adjunto adverbial se investem na configuração da referência da sentença, retornamos à

indagação sobre o fundamento da referência constituída no lugar de adjunto adverbial, com o qual finalizamos a seção anterior.