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A reincidência metodológica dos contínuos de referência

POR UMA SINTAXE DE BASES ENUNCIATIVAS

3.2 O DISTINTIVO DA SINTAXE DE BASES ENUNCIATIVAS

3.2.1 A reincidência metodológica dos contínuos de referência

Nos trabalhos desenvolvidos em sintaxe de bases enunciativas, tem-se procurado explicitar os fatos sintáticos, mais precisamente a configuração dos lugares sintáticos como lugares de constituição de referência. Para tanto, trabalha-se na interface entre as dimensões material e simbólica da língua e tem-se recorrido com frequência à proposição de contínuos para representar o modo como se dá essa constituição da referência no escopo dos lugares sintáticos, passando pela relação entre a memória histórica de dizeres e atualidade do acontecimento enunciativo ao produzir o necessário efeito de apontamento para uma realidade extralinguística. A insistência dos contínuos parece ser então um reflexo metodológico da realidade fundamentalmente difusa da dimensão simbólica da língua, esteio da relação entre memória e atualidade que se imprime na organicidade dos lugares sintáticos ao constituírem referência. Em suma, a hipótese dos contínuos seria um desdobramento dessa realidade difusa que é a dimensão simbólica da língua na constituição da referência no escopo dos lugares sintáticos.

Uma noção básica que perpassa a abordagem dos lugares sintáticos como lugares de constituição de referência é a de modo de enunciação ou modo de dizer. Compreendemos essa noção como a conformidade em que potencialmente se daria a constituição da referência de uma sentença em um acontecimento enunciativo. Os modos de enunciação configuram a abrangência da referência que as sentenças carregam, sendo que elas se distribuem, justamente em função do tipo de referência que constroem, em um contínuo margeado por um extremo que representa a exaustiva especificação e por outro que representa a generalização máxima.

Em Lacerda (2009), apresentamos um estudo cujo foco era as sentenças alocadas na margem mais generalizadora do contínuo, estando configuradas em um modo de enunciação proverbial. Reconhecemos nessas sentenças um conjunto de traços que, aliados à genericidade, seriam determinantes para a constituição de uma referência proverbial, quais sejam, os traços de onitemporalidade, indicialidade e estruturação implicativa. Ainda para

delimitar as sentenças proverbiais, estabelecemos um contraste com as sentenças que chamamos de generalizantes. Essas últimas, também colocadas na área do contínuo que representa o modo de enunciação mais generalizador, distinguiam-se das sentenças proverbiais por constituírem uma referência conceitual, com propósito de definição, o que as insere em uma posição menos próxima da região extrema de generalização no contínuo dos modos de enunciação, como podemos ver na representação a seguir.

Fonte: LACERDA, 2009, p. 75. Adaptado.

Dalmaschio (2008), por sua vez, aplica os fundamentos da sintaxe de bases enunciativas, desenvolvendo um trabalho sobre o objeto direto, investigando mais especificamente as condições de emprego da língua que favorecem a não ocupação desse lugar sintático. Para tanto, ela lida com o contraste entre os fenômenos da predicação centrada e da predicação dirigida. Na concepção de Dias (2006b, p. 59), “a predicação dirigida ocorre quando ela é orientada para o objeto. E a predicação centrada, por sua vez, quando ela orienta para o verbo

a direção da significação, não produzindo a necessidade do objeto”. As regularidades de

ocupação e de não ocupação do lugar objeto estariam associadas ao modo de enunciação das sentenças, i.e., à abrangência do escopo de referência constituído pela sentença, sendo o modo enunciação mais especificador propício à predicação dirigida e o modo de enunciação mais generalizador favorável à predicação centrada. Esse último tipo de predicação traz consigo consequências teóricas importantes para o entendimento da transitividade verbal, uma vez que a não ocupação do lugar objeto deixa de ser sinônima de ocorrência intransitiva do verbo e passa a ser compreendida como um vazio significativo, a que Dalmaschio (2008, p. 51)

chamou de “silêncio sintático”, conceito que já revisitamos no presente trabalho. Ela procura

diagnosticar as implicações semânticas e discursivas do fenômeno da predicação centrada e, por fim, propõe um contínuo de centramento. Vejamos as sentenças a seguir, extraídas da própria análise que aqui retomamos (DALMASCHIO, 2008, p. 93).

b- Mariana ganhou demais dirigindo a peça de teatro no festival. c- Na vida é assim, uns ganham, outros perdem.

Segundo a proposta de Dalmaschio (2008), as sentenças em (50) seriam escalonadas em baixo, médio e alto nível de centramento, considerando o lugar de objeto projetado pelo verbo

‘ganhar’ em cada uma das sentenças. A primeira estaria em um espaço de baixo centramento,

uma vez que a articulação do predicado com o adjunto adverbial “na loteria” delimitaria o campo de possibilidades de referência no escopo do lugar de objeto dessa sentença a

“dinheiro”, a menos que a sentença em análise seja uma metáfora constituída para caracterizar

o político como um homem sortudo de maneira geral, ou que ela seja uma ironia construída, por exemplo, para caracterizar o político como corrupto, que usa as supostas vitórias em sorteios lotéricos para camuflar enriquecimento ilícito. A segunda sentença estaria alocada em uma faixa de centramento médio, imaginando que o verbo possa atualizar, na sentença em

questão, uma gama de possibilidades de preenchimento do lugar objeto, como “experiência”, “dinheiro”, “fama”, “reconhecimento”, entre outras, que constituem simultaneamente a

referência no escopo do lugar. Finalmente, a terceira sentença estaria em uma zona de alto centramento, pois não deixa entrever um direcionamento definido para a constituição da referência no âmbito do lugar de objeto, admitindo um feixe de possibilidades pouco delineado. Enfim, explicitando como de dá o investimento de fatores de ordem semântica e enunciativa na configuração do lugar de objeto, a um só tempo, esse trabalho alimenta-se dos pressupostos de uma sintaxe de bases enunciativas e contribui para enriquecê-los.

Devemos mencionar também o trabalho realizado por Ladeira (2010) acerca do fato sintático que a tradição convencionou chamar de sujeito indeterminado. Aplicando o pressuposto teórico de que os fenômenos sintáticos são governados pela interferência mútua entre os níveis formal e enunciativo da língua, a autora propõe um contínuo de indeterminação, uma escala em que se inserem diferentes formas de dar materialidade à indeterminação referencial, observando a ocupação do lugar sujeito. Vejamos as sentenças em (51), retiradas do próprio trabalho de Ladeira (2010, p. 68).

(51) a- Bater à porta é sinal de boa educação.

b- Diz que bater à porta é sinal de boa educação. c- Bateram à porta.

e- Alguém bateu à porta.

f- Um certo alguém bateu à porta. g- Um desconhecido bateu à porta

De acordo com a proposta, as sentenças estariam alocadas, na ordem em que estão dispostas em (51), em um contínuo margeado em um dos extremos pela maior indeterminação, representada pela sentença (51a) que, juntamente com a sentença (51b), estabelece um nível conceitual de referência, e em outro extremo pela menor indeterminação, que é representada pela sentença (51g), que opera com a categoria ‘desconhecido’, já produzindo um recorte paramétrico de referência. Tornando mais claras as nuances que se estabelecem do nível mais conceitual de referência ao nível mais paramétrico, Ladeira (2010) propõe um contínuo estendido, confrontando uma escala de definitude referencial à escala de indeterminação. Nesse novo contínuo, as sentenças que produzem um recorte paramétrico são posicionadas em uma área de referência mais específica, como mostramos a seguir.

Fonte: LADEIRA, 2010, p. 85.

A autora observa ainda o que parece ser uma tendência no português, a saber, o sujeito indeterminado materializado por formas pronominais que lançam uma projeção de referência, a título de exemplificação. Trata-se de ocorrências do tipo a seguir: “Se eu roubo um carro e não sou preso por isso, há um problema na aplicação da justiça brasileira”, em que o pronome

‘eu’ não se refere ao locutor, i.e., não se ancora em um dos participantes da locução, mas

constitui uma identidade simbolicamente projetada. Ladeira (2010, p. 91) reformula, por fim, a concepção de sujeito indeterminado como sujeito projeção, sendo “aquele cuja identidade

Os contínuos representam, portanto, os modos de constituição de referência nos lugares sintáticos, desde a escala de amplitude-restrição que consideram a constituição da referência no âmbito das sentenças como um todo, passando por uma escala interna ao modo de enunciação generalizador, até as escalas de referência constituídas no âmbito específico de cada lugar, sendo o contínuo de centramento aplicado ao lugar de objeto e o contínuo de indeterminação aplicado ao lugar de sujeito. A reincidência desse método de representação seria uma consequência da natureza difusa que caracteriza a contraparte simbólica da língua, esteio para lidarmos com o sentido. E o lide com o sentido, base simbólica do processo de constituição da referência, parece recair sobre os nossos estudos como um imperativo, já que

ele é “de fato a condição fundamental que todas as unidades de todos os níveis devem

preencher para obter status linguístico” (BENVENISTE, 2006 [1974], p. 130).