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Da tensão entre as dimensões material e simbólica da língua

POR UMA SINTAXE DE BASES ENUNCIATIVAS

2.3 DO INVESTIMENTO DA ENUNCIAÇÃO NA SINTAXE

2.3.1 Da tensão entre as dimensões material e simbólica da língua

Pêcheux (1998, p. 25), ao afirmar que a língua comporta um “fato estrutural implicado pela

ordem simbólica”, formula com muita pertinência o que, em parte, entendemos por

investimento da enunciação na sintaxe. O autor depreende que o simbólico é inerente à

linguagem, ou seja, é constitutivo da natureza da língua (do “real da língua”). Nessa

conjuntura, a construção sintática seria o lugar em que se manifesta uma tensão entre duas dimensões que só ganham visibilidade na relação de interface, ou de interdependência, que travam uma com a outra na constituição da língua, quais sejam, as dimensões orgânica e simbólica. Vejamos o exemplo (23), tomado de empréstimo em Dias (2009, p. 27), que nos serve para ilustrar essa tensão entre o orgânico e o simbólico no escopo da sintaxe.

(23) Pedro plantou sementes de milho. Adubou, semeou, irrigou, colheu e vendeu. Na sequência em (23) temos dois períodos. O primeiro deles tem os seus lugares de sujeito gramatical e de objeto ocupados, respectivamente, pelos GNs “Pedro” e “sementes de milho”. Já o segundo período, que é uma continuidade textual do primeiro, não tem os seus lugares sintáticos correspondentes ocupados. Nesse caso, o lugar de sujeito gramatical de cada uma das formas verbais que compõem esse segundo período, ainda que vazios, constituem referência por elipse, ou seja, tem a sua referência constituída por uma ancoragem no período anterior. Diferentemente, os lugares de objeto projetados pelas formas verbais do segundo período em questão contam com um mecanismo mais complexo para elaborar a referência

constituída pelo “silêncio” que configuram, mecanismo esse que parece estar além da

retomada por elipse.

Podemos observar que a constituição elíptica da referência já sinaliza uma discrepância entre as dimensões material e simbólica da língua, visto que, se um lugar vazio precisa ancorar-se em uma expressão fora da sentença que o comporta para buscar referência, isso mostra que a relação do linguístico com o que está fora dele não ocorre de um para um. A elipse é um recurso que a língua portuguesa oferece para a construção de unidades textuais a título de regularidade, já que concorrem com esse recurso pelo menos outros dois, a repetição lexical e a substituição pronominal. Esse recurso parece-nos deveras muito rudimentar, essa percepção seria efeito da recorrência com que aparece em textos do potuguês, e o fato de a língua estabelecer regularidades desse tipo, a partir da tensão entre o orgânico e o simbólico, é por si mesmo um forte indício de que essa tensão seja intrínseca à língua.

Não apenas a regularidade da elipse nos chama a atenção em (23), ainda merecem discussão algumas nuances na definitude referencial por ancoragem produzida naquela sequência

linguística. O GN-sujeito do primeiro período serve de base para a definição da referência no escopo dos lugares de sujeito de todas as formas verbais coordenadas no segundo período. Ou

seja, “Pedro” é o sujeito gramatical de “adubou”, “semeou”, “irrigou”, “colheu” e “vendeu”.

Contudo, os lugares de objeto dessas formas verbais não operam simplesmente com o GN-

objeto “sementes de milho”. Não é possível construirmos uma paráfrase do segundo período como esta: “Pedro adubou sementes de milho, semeou sementes de milho, irrigou sementes de milho, colheu sementes de milho e vendeu sementes de milho”. Antes, a constituição da

referência no escopo dos lugares de objeto em análise funciona de modo a construir uma progressão temática (DIAS, 2009) da sequência textual em (23), o que desenvolvemos em (24), mais uma vez tomando de empréstimo um exemplo encontrado em Dias (2009, p. 27).

(24) Pedro plantou sementes de milho. Adubou o solo, semeou os grãos, irrigou as plantas, colheu os frutos e vendeu o produto.

A não ocupação dos lugares de objeto do segundo período da sequência (23) sustenta essa construção temática de maneira complexa, o que explicitamos no exercício de ocupação em (24). Diferentemente do que ocorre nos lugares de sujeito do segundo período, tal construção temática nos lugares de objeto escapa à simples retomada por elipse, potencializando a discrepância entre as dimensões material e simbólica da língua.

Outro exemplo de não ocupação do lugar de objeto que produz visibilidade a essa discrepância pode ser encontrado na propaganda que reproduzimos em (25), a qual compõe a publicidade de uma campanha promovida por um plano de saúde 14.

14 A propaganda, que aqui mostramos em uma versão adaptada, foi apresentada a título de exemplo, também para falar do lugar de objeto direto, por DALMASCHIO (2013).

(25)

Fonte: http://goo.gl/m4zP7. Acesso: 12/06/2012. Adaptado.

Focalizamos, na propaganda em (25), a sentença constituída somente pela forma verbal

“alongue”. Temos uma sentença imperativa, cujo sujeito “[Você]” produz uma referência que

classificaremos logo adiante como intermediária, estando entre a referência pontual e a genericidade proverbial. No lugar de objeto dessa mesma forma verbal, temos um silêncio sintático cujo escopo de referência é regulado pela unidade textual, formada pela relação entre a imagem e o texto da propaganda, em que a sentença está inserida. E essa unidade, por sua vez, é atravessada por suas condições enunciativas de produção – por exemplo, pelo fato de ter um locutor-agente de saúde – e, naturalmente, a sintaxe da sentença em análise também é perpassada por essas condições.

Assim, chegamos à percepção de que cabem como possibilidades de ocupação do lugar de

objeto da forma verbal “alongue” apenas os GNs “o corpo” e “a vida”, sendo essas

possibilidades determinadas pela materialidade linguística e visual da propaganda, materialidade essa na qual se inscrevem condições enunciativas. Novamente, não podemos dizer que seja um caso simples de ancoragem por elipse. Para a sentença destacada em (25),

parece necessário que o lugar de objeto receba, a um só tempo, “o corpo” e “a vida”, ou seja,

verbal “alongue” – o alongamento do corpo leva ao alongamento da vida – a ocupação deve ser simultânea. Teríamos, no exercício de ocupação do lugar de objeto, “Alongue o corpo/a vida”, portanto. A não ocupação do lugar de objeto da sentença analisada gera um recurso que

promove a constituição de duas referências, concomitantes e relacionadas em causa e consequência, e tal recurso também parece revelar, indiscutivelmente e de forma potencializada, a discrepância constitutiva da língua.