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CAPÍTULO 3: RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 Práticas e eventos de letramento de Sandokan

3.1.4 A assunção de papéis na família e na comunidade

No que se refere aos eventos de letramento mapeados no domínio domiciliar, percebemos que as situações envolvendo a escrita nesse ambiente, seja para a leitura ou produção textual, atendem aos mais diversos propósitos, sendo assim um domínio bastante híbrido. Já mencionamos, por exemplo, como as demandas do cursinho e da faculdade ganhavam um espaço especial no ambiente doméstico, sendo realizadas durante as noites e nos finais de semana.

Uma atividade bastante peculiar a esse domínio era o ato de ajudar a irmã com as tarefas de casa. Esta ação girava normalmente em torno de atividades requeridas pelo professor à criança, a partir do caderno ou do livro didático. Sandokan costumava ler as questões e ajudar a criança a respondê-las. Esta era uma prática constante, havendo semana em que afirmou ter ajudado a irmã quase todos os dias. Sandokan toma para si, assim, um papel já assumido por sua mãe no período de sua escolarização, o qual envolve o acompanhamento da criança através das suas tarefas de casa e a transmissão da “moral do esforço e da conformidade às regras” (LAHIRE, 1995) quando relata, por exemplo, um “carão” que havia dado na irmã, por estar muito desinteressada nos deveres: “ela chorou e tudo, eu: ‘crie vergonha e comece a estudar porque quem vai se ferrar é você, sou eu não!’ É um mal..., mas tem que ser assim mesmo. Fica voando; você diz uma coisa, ai pergunta de novo, ai fica chutando”.

Além da responsabilidade de ajudar a irmã, durante muito tempo Sandokan foi o responsável pelo pagamento das contas da família e por sacar o salário do seu pai em caixas eletrônicos, pois este, por não enxergar bem, enfrentava sérias dificuldades com esse tipo de tecnologia. Com o início das aulas do cursinho e da faculdade, Sandokan não pôde ser mais o responsável pelo pagamento das contas, pois tinha ambos os períodos do dia preenchidos com aulas, mas continuou sendo o responsável por sacar o dinheiro do pai uma vez que passava regularmente em frente a caixas eletrônicos. Notam-se, assim, usos relacionados à resolução de problemas práticos do cotidiano, os quais são assumidos por Sandokan enquanto filho mais velho.

Ainda no espaço doméstico, percebemos que Sandokan costuma também ajudar os vizinhos em situações que envolvem a escrita. É interessante notar que estes eventos só foram comentados por Sandokan quando perguntamos se ele

havia realizado algum favor a alguém. Como relata Barton (1998) existem práticas sociais envolvendo a leitura e a escrita sobre as quais dificilmente as pessoas responderiam que estavam lendo ou escrevendo caso fosse questionado “o que você estava fazendo?”; o que pedia assim perguntas relacionadas às práticas realizadas, a determinadas ações que poderiam ser desenvolvidas no domínio em questão, as quais envolvessem a escrita.

O fato de as pessoas procurarem Sandokan para resolver problemas ou realizar ações que envolvem a escrita é atribuída por ele ao lugar de universitário que passou a ocupar. Isto fica mais perceptível no trecho abaixo quando seu pai lhe pede para produzir um texto pertinente à área de administração. Nota-se na fala de Sandokan referência ao fato dos vizinhos e da família fazerem demandas a ele com base nesse lugar de “universitário”:

Meu pai mandou eu fazer, mas eu não fiz não. Mandou eu fazer uma CI[comunicado interno] .Entrevistador: Por que uma CI?

S:É que meu pai é envolvido, meu pai treinou...Esses negócios assim, ele gosta de artes marciais e parece que tava para ganhar pra comunidade um tatame, sabe? Um emborrachado, aí ele quis que eu fizesse uma CI, só que eu não fiz, porque eu não sei fazer uma CI ainda, aí tipo, é aquela coisa, você é taxado, né, porque quando você tá numa universidade chega gente, teus vizinhos, com questões de física pra tu fazer. Aí você não faz, e "porra, tu não é universitário cara" "mas num tem nada a ver não, mermão..." Apesar de que a CI é minha obrigação saber, só que primeiro eu não tive ainda, eu vou pesquisar pra ver. Entrevistador: Já pensasse onde?

S: Vou pesquisar na apostila, lá tem, mas eu acho que não vou fazer não... [a] questão é pelo meu pai mesmo, porque meu pai se envolve com esses negócios, aí começa e tem confusão e a corda sempre quebra pro lado mais fraco...Meu pai fica nessa, ele dizia que não ia mais e agora... Eu to querendo não fazer, mais por segurança. Um mal necessário. [Grifo nosso]

Embora Sandokan afirme primeiramente que não fez a CI por desconhecer o gênero textual, o que realmente pesa para a tomada de decisão em escrever ou não o texto são as possíveis conseqüências da sua produção; para ele, a não produção do texto é uma forma de agir em benefício do seu pai, mesmo que o contrariando. Sandokan tem consciência aqui de que não está simplesmente produzindo um texto, mas agindo em benefício ou não do seu pai.

Para concluir, percebemos que o espaço doméstico era aglutinador e motivador de eventos de letramento distintos, entre eles: a) aqueles originados no cursinho e no pré-vestibular; b) aqueles referentes à resolução de problemas

práticos do dia-a-dia, como sacar o salário do pai e o pagamento de contas; c) aqueles oriundos a partir da assunção do lugar social de letrado/universitário na família e na comunidade, bem como nas situações em que Sandokan assume o papel de irmão mais velho, quando ajuda a irmã com as tarefas de casa; d) e também aqueles relativos aos momentos em que utilizava o seu tempo livre para ações de seu interesse, como escutar música, assistir jornais na televisão, a leitura de uma revista e de jornais trazidos por seu pai e eventos oriundos do interesse pessoal de Sandokan pelo linguagem audiovisual, sobretudo, pela fotografia.