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Diversos autores são unânimes ao afirmar a importância da brincadeira para o desenvolvimento motor, cognitivo, lingüístico, afetivo e social da criança. Por este motivo, é razoável admitir que a privação da atividade lúdica possa gerar incapacidades secundárias, decorrentes da falta deste tipo de experiência.

Neste sentido, Bruner (1986) relata estudos que mostram que macacos criados isoladamente, aos quais são dadas oportunidades de brincar vinte minutos diários com outros macacos, não são prejudicados em sua capacidade intelectual e em sua sociabilidade, diferentemente de outros animais completamente isolados. Almy, em 1967, já afirmava que havia evidências substanciais de que tanto crianças quanto animais privados de oportunidades para brincar, apresentam dificuldades para a aprendizagem, quando comparados àqueles que têm liberdade para brincar e explorar.

Segundo Limongi (2001, p. 196), “[...] durante o período sensório-motor, a criança construirá os conceitos práticos de tempo, espaço, causa, classificação e seriação”. Finnie (1980), neste mesmo sentido, afirma que é por meio da manipulação do seu próprio corpo e dos objetos que a cercam desde o nascimento que uma criança normal aprende como o mundo funciona e como pode agir sobre ele. Aprende, assim, as diferentes texturas, pesos, tamanhos, cores, a forma de manipular cada objeto, a posição em que se encontram ou são colocados (em cima, embaixo, dos lados, dentro ou fora), aprende a calcular distâncias e tem a oportunidade de experimentar diferentes posições de seu próprio corpo em relação ao espaço.

No caso da criança com paralisia cerebral, segundo Peres (2004), a dificuldade em se movimentar e em realizar a exploração tal como a criança sem deficiência pode dificultar esse tipo de aprendizado mencionado por Finnie (1980), assim como dificulta “[...] o desenvolvimento de sua percepção corporal e o entendimento de sua ação no mundo, dado que os conceitos necessários para essa compreensão estão intrinsecamente ligados à experiência motora” (PERES, 2004, p. 40).

Lorens (1974) discute, nesse sentido, que nas crianças com seqüelas de paralisia cerebral podem ser esperadas alterações em muitas áreas do desenvolvimento. Essas alterações, somadas a falta de oportunidades adequadas, podem afetar a habilidade posterior da criança para desenvolver conceitualização e pensamento abstrato, para estabelecer relações adaptativas complexas, para ler, escrever e compreender conceitos numéricos. Da mesma forma, sua habilidade para o planejamento motor, desenvolvimento da percepção de forma e espaço, equilíbrio e esquema corporal podem estar prejudicados.

Segundo Penteado, Seabra e Bicudo-Pereira (1996), a redução ou a inexistência do brincar nos primeiros anos de vida da criança pode causar alterações no desenvolvimento infantil, tais como atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, na fala e na linguagem.

A despeito de tais conhecimentos, a criança com deficiência encontra-se freqüentemente privada de algumas experiências lúdicas. Além das limitações específicas decorrentes de sua deficiência, que podem variar dependendo do tipo de comprometimento dela decorrente, outras barreiras podem ser impostas às brincadeiras desta criança, tais como as barreiras ambientais (falta de brinquedos adaptados, dificuldades de acesso aos parques, falta de tempo destinado ao brincar), as barreiras sociais (preconceitos, atitudes discriminadoras e valores culturais) e aquelas impostas por seus cuidadores (superproteção, descrença nas capacidades ou desconhecimento das necessidades da criança). Em adição, as crianças com deficiência costumam ter poucas

oportunidades para brincar com crianças sem deficiência e possuem grande parte do seu tempo destinado a inúmeros tipos de tratamento, passando grandes períodos em atividades estruturadas que restringem a sua liberdade e a sua participação nos processos de tomada de decisão (BLANCHE, 2002; FERLAND, 2006; MISSIUNA; POLLOCK, 1991).

Para Blanche (2002), embora as incapacidades múltiplas da criança com seqüelas de paralisia cerebral possam limitar suas atividades lúdicas, escolares e de autocuidado, as limitações impostas pelas pessoas e pelo ambiente costumam ser mais restritivas que a própria deficiência da criança. Jurdi (2001) também afirma que as atividades lúdicas aparecem alteradas ou inexistentes para a criança com deficiência, sendo considerada como causa para este fenômeno a falta de expectativas positivas por parte de sua família acerca de seu futuro, o que pode levar à dificuldade em propiciar-lhe trocas e relações saudáveis que auxiliem o seu desenvolvimento.

Alguns autores alertam para o fato de que a escassez de oportunidades para brincar pode interferir de forma negativa no desenvolvimento da criança com deficiência, podendo gerar inúmeras incapacidades motoras, sociais, emocionais e cognitivas secundárias, tais como: comprometimento na capacidade de adaptação; diminuição da motivação, da imaginação e da criatividade; aumento da dependência de outras pessoas; pouca vivência do sentimento de domínio sobre o ambiente e sobre as situações; redução na autoconfiança e na auto-estima; pobre desenvolvimento de habilidades sociais; comprometimento da coordenação motora; atraso no desenvolvimento de brincadeiras simbólicas; alterações no desenvolvimento perceptivo, cognitivo e lingüístico (BLANCHE, 2002; FERLAND, 2006; MISSIUNA; POLLOCK, 1991; PENTEADO; SEABRA; BICUDO-PEREIRA, 1996). Tais incapacidades secundárias à privação do brincar limitam ainda mais as experiências lúdicas da criança, além de terem um impacto em

seu desenvolvimento e na sua atuação posterior nos ambientes escolares, comunitários e de trabalho (MISSIUNA; POLLOCK, 1991).

Muitos estudos vêm relacionando a atividade lúdica e o desenvolvimento de crianças com diferentes tipos de deficiência. Visto que a presente pesquisa enfoca crianças com seqüelas de paralisia cerebral, serão mencionados a seguir alguns estudos que investigaram a presença ou a importância da atividade lúdica no cotidiano ou no desenvolvimento da criança com este tipo de deficiência.

Sparling, Walker e Singdahlsen (1984) investigaram o efeito do brincar educacional como um método de intervenção em crianças com paralisia cerebral. Participaram 14 crianças em idade pré-escolar, seus pais, professores e terapeutas. O brincar educacional consistiu de grupos de atividades de arte e teatro, seguindo a seqüência do desenvolvimento normal do brincar. Após sete semanas de intervenção, verificou-se uma melhora, apresentada pela maioria das crianças, quanto à coordenação motora grossa e fina, à cognição, à linguagem, a atividades da vida diária e ao desempenho sócio-emocional, assim como um aumento no valor atribuído pelos adultos ao brincar como um componente essencial do desenvolvimento da criança.

Limongi (1992) relacionou a comunicação às brincadeiras de crianças com paralisia cerebral. Participaram de seu estudo duas crianças entre sete e oito anos de idade, com paralisia cerebral espástica, com nível intelectual considerado normal e fala inteligível. Foram realizadas três sessões de aproximação da criança em seu ambiente escolar e oito sessões de observação da criança em contato com brinquedos ofertados pelo pesquisador. Os resultados permitiram situar as crianças no final do período pré-operatório, com desenvolvimento cognitivo, lingüístico e de estruturação do brinquedo adequados, havendo, entretanto, uma defasagem em relação à idade cronológica. A linguagem oral era efetiva em situações concretas e habituais, mas não quando as

crianças eram solicitadas a lidar com situações hipotéticas e antecipações. A autora chama a atenção para a influência exercida pelos fatores social e afetivo.

Lorenzini (1999) realizou uma pesquisa da qual participaram duas mães e seus filhos com seqüelas de paralisia cerebral, com três anos de idade. O procedimento consistiu no desenvolvimento de brincadeiras em situação natural com cada uma das duplas, em 24 sessões realizadas no decorrer de seis meses de intervenção. Foram utilizados dados registrados no diário de campo e dados coletados por meio de três entrevistas, realizadas com as mães no decorrer da pesquisa, a fim de conhecer as brincadeiras que comumente realizam com seus filhos. Os resultados demonstraram que o brincar, a valorização do ambiente natural, a interação mãe/filho e esta forma de atuação profissional podem contribuir efetivamente para o desenvolvimento sensório-motor da criança.

Takatori (1999) observou o brincar no cotidiano de três crianças com paralisia cerebral, mas com possibilidade de manipulação de objetos e ausência de deficiência mental associada ao quadro. Utilizou três instrumentos: o prontuário, a entrevista com a mãe e a observação. Analisou os dados colhidos sob a luz da teoria de Winnicott, concebendo que o brincar expressa o ser da criança. A autora propõe a prática deste olhar na terapia ocupacional e propõe uma mudança de referencial na reabilitação, defendendo a necessidade de se considerar o desenvolvimento emocional da criança, ao invés de focar-se na normalização do corpo deficiente por meio dos procedimentos técnicos.

Peres (2004) estudou sete crianças com paralisia cerebral do tipo espástica, com idades entre três e seis anos, tendo por objetivo proporcioná-lhes a experiência de vivenciar as manifestações lúdicas, adequando seu ambiente escolar, estimulando seu desenvolvimento cognitivo e motor, assim como a interação entre as crianças. Foram feitas entrevistas pré e pós- intervenção com as mães e professoras, e foi investigado o desenvolvimento motor e cognitivo

das crianças por meio do Inventário Portage. As intervenções ocorreram em grupos e consistiram de 26 sessões de jogos e brincadeiras. Verificou-se uma melhora na coordenação, equilíbrio e preensão de objetos, bem como na atenção e discriminação de cores.

Carvalho (1998) realizou uma pesquisa com o objetivo de investigar como as atividades lúdicas se manifestam no cotidiano de crianças com seqüelas de paralisia cerebral. As mães de sete crianças com idades entre três anos e nove meses e dez anos e quatro meses responderam a um questionário sobre as atividades cotidianas da criança. Em seguida, duas destas crianças foram observadas em situações relacionadas ao cotidiano familiar. Os resultados mostraram que a atividade lúdica está presente no cotidiano destas crianças, tanto durante atividades diárias, quanto nas atividades de lazer e nas brincadeiras propriamente ditas. Predominam as brincadeiras de faz-de-conta, no período pré-escolar, tal como na criança sem deficiência. Contudo, as brincadeiras das crianças são limitadas devido à falta de acesso aos espaços físicos, de brinquedos adequados, de contato com outras crianças e de variação quanto aos tipos de brincadeiras. No que se refere aos jogos, predomina a utilização individual de jogos de vídeo-game, estando ausentes jogos com regras e de competição em grupos, pela falta de oportunidades de ingressar em escolas comuns, o que leva a uma tendência ao isolamento, visto que as relações das crianças ficam restritas aos familiares e parentes mais próximos. Todas estas características pioram conforme o grau de comprometimento da criança. Nas brincadeiras, a criança depende muito de sua família no suprimento de necessidades físicas de locomoção, exploração do ambiente e fornecimento de oportunidades.

Ferland (2005, 2006) descreve uma pesquisa14 da qual participaram 30 crianças com

seqüelas de paralisia cerebral, com idades entre dois anos e cinco anos e 11 meses. Os resultados

14 Dufour, M.; Ferland, F.; Gosselin, J. Relation entre le comportement ludique et la capacité fonctionnelle chez

indicaram uma correlação entre as habilidades para brincar, o grau de lesão e a independência da criança. Deste modo, quanto menor fosse a limitação e as dificuldades para se locomover, maiores habilidades para brincar a criança apresentava. Contudo, não foram encontradas correlações entre o interesse, a maneira de brincar e as capacidades da criança, o que demonstra que a atitude lúdica e o interesse em brincar se relacionam às características pessoais da criança e não a sua deficiência. A autora conclui que, “(...) se favorecemos o desenvolvimento de habilidades de brincadeira da criança, influenciamos também sobre suas habilidades funcionais, já que estes dois elementos estão ligados entre si” (FERLAND, 2006, p. 54).

Ferland (2006) também realizou uma pesquisa na qual foram entrevistados pais de crianças com deficiência, adultos com deficiência adquirida na infância e terapeutas ocupacionais canadenses, visando identificar como a brincadeira está presente na vida da criança com incapacidade física, bem como elaborar um novo modelo de prática em terapia ocupacional, baseado no brincar. A autora notou que há pouca participação dos pais nos cuidados das crianças, sendo geralmente as mães responsáveis pelo tratamento das mesmas. Estas mães mencionam que o brincar gera prazer, mas associam a brincadeira de seus filhos ao trabalho, no sentido de favorecer o seu tratamento, visando sempre objetivos específicos, com fins educativos ou terapêuticos. As atividades que as mães consideram agradáveis para as crianças envolvem estar com pessoas e realizar atividades na água, sendo que os demais interesses mencionados têm relação com os interesses de cada família. Os adultos com deficiência relatam que os terapeutas precisam dar mais espaço para a expressão dos sentimentos negativos da criança, bem como valorizar o desenvolvimento de atitudes, não apenas de habilidades. Para eles, os terapeutas devem ajudar a criança a descobrir o que é capaz de fazer e não devem evitar a frustração, mas ensinar a criança a enfrentá-la. Também falam da importância de que os profissionais se preocupem em melhorar o presente da criança, não apenas o seu futuro.

Como é possível observar, estas pesquisas empíricas corroboram as discussões teóricas a respeito das barreiras enfrentadas pela criança com deficiência no que se refere às oportunidades para brincar (CARVALHO, 1998), e ratificam a importância da brincadeira para o desenvolvimento da criança com paralisia cerebral, visto que o oferecimento de oportunidades para brincar favoreceu a melhora da coordenação motora, da cognição, da linguagem, da socialização, da atenção e do equilíbrio, dentre outros (LORENZINI, 1999; PERES, 2004; SPARLING; WALKER; SINGDAHLSEN, 1984). O estudo de Sparling, Walker e Singdahlsen (1984) também confirma as discussões de Ferland (2005, 2006) sobre a possibilidade de se produzir uma melhora nas habilidades funcionais por meio do desenvolvimento das habilidades para brincar, visto que os autores observaram uma melhora no desempenho de atividades da vida diária após o programa de brincadeiras.

A pesquisa descrita por Ferland (2005, 2006) possibilita-nos perceber que a incapacidade física, embora possa limitar a ação, não impede o desenvolvimento de uma maneira de ser, de uma atitude. De maneira similar, Blanche (2002) defende que a criança com seqüelas de paralisia cerebral, a despeito das barreiras por ela enfrentadas, tem motivação interna para participar de diferentes tipos de brincadeiras.

O interesse das crianças pelas brincadeiras, bem como a opinião dos adultos com deficiência (FERLAND, 2006), chama a atenção para a necessidade de repensarmos o uso da brincadeira na terapia ocupacional. Esta necessidade também está expressa na fala dos pais, visto que estes encaram a brincadeira das crianças com deficiência como exercício para desenvolver habilidades, não percebendo o valor da brincadeira livre para o desenvolvimento de seus filhos. Blanche (2002) também afirma que a atenção dos terapeutas, sempre voltada para as limitações físicas, faz com que os pais negligenciem outras facetas da criança com deficiência, inclusive a sua necessidade de realizar atividades lúdicas, tal como qualquer criança.