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Vygotsky e o desenvolvimento de crianças com deficiência

Para Vygotsky (1983/1997), apesar das leis fundamentais do desenvolvimento serem as mesmas para todas as crianças, o desenvolvimento da criança que tem uma deficiência é qualitativamente, e não quantitativamente, diferente. Neste processo de desenvolvimento e de formação da personalidade da criança, a alteração orgânica desempenha um duplo papel: por um lado, a alteração limita o desenvolvimento, mas, precisamente porque cria certas dificuldades, estimula o avanço, a elaboração de uma compensação. São estas tendências as responsáveis pelas peculiaridades do desenvolvimento da criança com deficiência, criando formas de desenvolvimento diversas. O resultado deste processo de compensação pode ser de vitória, de derrota ou estar num grau de transição entre estes extremos, o que vai depender da gravidade da deficiência, da reserva compensatória do organismo e da educação, ou seja, da orientação consciente que é dada a este processo.

Porém, seja qual for a conclusão do processo de compensação, o desenvolvimento influenciado por uma deficiência constituirá sempre um processo (orgânico e psicológico) de criação e recriação da personalidade da criança, fundamentada na reorganização de todas as funções de adaptação. Por isso, ao avaliarmos uma criança com deficiência, não devemos levar em conta apenas o nível e a gravidade da deficiência, mas também considerar os processos substitutivos e compensatórios que surgem ao longo do seu desenvolvimento (VYGOTSKY, 1983/1997).

A compensação orgânica está presente em toda matéria viva, mas, no ser humano, é necessário considerar principalmente as compensações sociopsicológicas, que se concretizam nas relações com os outros e nas experiências nos diversos espaços da cultura. Desta forma, o desenvolvimento de uma criança com deficiência e seu funcionamento psicológico não dependem

apenas de sua deficiência, mas também das condições concretas de desenvolvimento que o grupo social lhe oferece, que podem ser condições adequadas ou empobrecidas. Segundo Góes (2002, p. 99), “não é o déficit em si que traça o destino da criança. Esse ‘destino’ é construído pelo modo como a deficiência é significada, pelas formas de cuidado e educação recebidas pela criança, enfim, pelas experiências que lhe são propiciadas”.

A cegueira, por exemplo, não faz da criança uma pessoa com defeito, não é uma menos- valia ou uma enfermidade. A deficiência é um conceito social e a cegueira só se torna deficiência em certas condições sociais. “O déficit orgânico não pode ser ignorado, mas é a vida social que abre possibilidades ilimitadas de desenvolvimento cultural [...]”, tornando a deficiência histórica (GÓES, 2002, p. 100). Para Vygotsky (1983/1997), não podemos priorizar o déficit, deixando de lado a criança como um todo, pois, se nos focamos apenas na enfermidade da criança, deixamos de perceber a sua saúde.

Segundo Braga (1986, 1995), estas considerações de Vygotsky, levaram a uma mudança na forma de olhar para a criança com deficiência e de considerar o seu desenvolvimento, influenciando diretamente na prática terapêutica e pedagógica. Pois, se percebermos que o desenvolvimento desta criança é diferente e não inferior, poderemos perceber também suas qualidades e elaborar métodos distintos de tratamento, visando ajudar a criança a encontrar caminhos alternativos e compensatórios para o seu desenvolvimento, ao invés de tentarmos aproximá-la do que consideramos normal.

O desenvolvimento da criança com deficiência deve ser tomado em sua dinâmica, numa visão prospectiva, de modo que sua educação privilegie suas potencialidades e talentos. As metas educacionais devem, então, ser iguais para todas as crianças. A criança com deficiência pode precisar de mais tempo ou de procedimentos especiais, mas aprenderá o mesmo e receberá a mesma preparação para o futuro. Isso não quer dizer que ela terá, certamente, capacidades iguais,

mas quer dizer que os limites não devem ser determinados a priori e suas metas não devem ser subestimadas (GARCÍA; BEATÓN, 2004; GÓES, 2002; VYGOTSKY, 1983/1997).

Vygotsky (1983/1997) ilustra esta idéia com a seguinte situação: a criança com deficiência mental depende muito de suas experiências concretas, de modo que, por conta própria, desenvolverá pouco o pensamento abstrato. O que se percebe, nestes casos, é que a escola se utiliza apenas de métodos visuais diretos, materiais concretos, acreditando que assim facilitará a aprendizagem. Contudo, esta postura serve de obstáculo para o desenvolvimento do pensamento abstrato, pois não são dadas oportunidades para que a criança se desenvolva neste sentido. A escola não só deve adaptar-se às dificuldades desta criança, mas também deve ajudá-la a superá- las. Deve-se respeitar a fase em que a criança se encontra e o seu modo de pensar, mas não se deve limitar a priori sua aprendizagem, na crença de que seria incapaz de compreender.

Ao contrário, no cuidado da criança com deficiência, devemos permitir que ela se engaje em atividades cada vez mais complexas, com a ajuda do adulto ou de companheiros mais avançados, permitindo que ela avance em seu desenvolvimento (GARCÍA; BEATÓN, 2004).

Esta idéia está relacionada ao conceito de zona de desenvolvimento proximal, que, segundo Braga (1995), também tem repercussões no tratamento e na educação da criança que apresenta uma lesão cerebral.

Uma vez que a zona de desenvolvimento proximal hoje, será o nível de desenvolvimento real amanhã, a avaliação do desenvolvimento de uma criança com paralisia cerebral deve considerar não só o que a criança faz sem ajuda

como também o que ela é capaz de realizar quando auxiliada (p. 39).

Além desta importância para a avaliação e para o tratamento da criança com deficiência, o conceito de zona de desenvolvimento proximal é também importante por possibilitar refletir sobre o papel do adulto no desenvolvimento da criança com deficiência. Pois, para a criança com paralisia cerebral, a relação estabelecida com outras pessoas pode ser um elemento fundamental

para o seu desenvolvimento, uma vez que é nesta relação que a criança “[...] poderia, gradualmente, a partir de ações partilhadas, aumentar o grau de controle de suas ações” (BRAGA, 1995, p. 58).

Algumas crianças com deficiência apenas conseguem realizar suas tarefas de vida diária (alimentação, troca de roupa, higiene pessoal, etc.), suas atividades escolares e brincadeiras com a ajuda de outras pessoas, e o conceito de zona de desenvolvimento proximal possibilita considerar aquilo que a criança é capaz de fazer com ajuda como integrante do seu processo de desenvolvimento, o que repercute diretamente na avaliação, na educação e no tratamento desta criança.