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Na terapia ocupacional, o homem é “[...] percebido como um ser biopsicossocial, movido pela necessidade fundamental de atuar em seu ambiente: a atividade significativa dá um sentido a este agir e favorece a adaptação ao longo da vida” (FERLAND, 2006, p. XIV). Assim, sendo a brincadeira a atividade mais significativa da criança, ela pode ser vista como uma modalidade terapêutica e como território de intervenção do terapeuta ocupacional.

De acordo com Blanche (2002) e Ferland (2006), a brincadeira pode ser utilizada pelo terapeuta ocupacional de diferentes maneiras, o que depende do enfoque e do referencial teórico por ele utilizado. Ferland (2006), na pesquisa realizada com terapeutas ocupacionais canadenses, observou que, na maioria das vezes, a brincadeira é utilizada em seu aspecto instrumental; o terapeuta planeja antecipadamente e dirige as sessões, dando pouco espaço à liberdade da criança. Neste caso, a brincadeira é um dentre vários instrumentos, sendo utilizada para avaliar funções, para atingir objetivos terapêuticos, para desenvolver habilidades motoras e perceptivas, para suscitar o interesse da criança, para fornecer uma recompensa por um bom comportamento ou para preparar a criança para a vida adulta.

Neste mesmo enfoque, Erhardt e Merrill (2002); Meyerhof e Prado (1998) e Motta e Takatori (2001) salientam que os brinquedos podem ser usados no tratamento para estimular determinadas habilidades (cognitivas, motoras, sociais), fazendo-se necessário o uso de atividades escolhidas e dirigidas pelo terapeuta. Contudo, ser escolhida previamente, ser externamente controlada e ser orientada para um objetivo são características deste tipo de atividade que entram em conflito com a essência da atividade lúdica (BLANCHE, 2002).

Se considerarmos que o que determina a brincadeira é a atitude que o sujeito estabelece durante a atividade, o simples fato de manusear um brinquedo não significa que a criança esteja

brincando (BOMTEMPO, 1987; DANTAS 2002; FERLAND, 2006; KISHIMOTO, 1996; PRADO, 1991). Assim, o uso de materiais escolhidos pelo terapeuta para desenvolver alguma função específica pode ou não ser considerado brincadeira pela criança (BLANCHE, 2002). De acordo com Ferland (2006), se a criança só faz a atividade de brincar imposta pelo adulto, faz a ação sem a atitude, portanto, não é mais brincadeira. Pode haver atividade lúdica sem ação, mas não atividade lúdica sem atitude lúdica.

Portanto, a mesma dialética encontrada na área da educação sobre a distinção entre atividade lúdica e atividade pedagógica pode ser transposta para o campo da Terapia Ocupacional, na distinção entre atividade lúdica e atividade terapêutica, fazendo-nos pensar que, o que frequentemente chamamos de brincadeira pode ser, na verdade, exercício, atividade terapêutica ou atividade pedagógica. Bruner (1986) também salienta que, ao se fazer o uso da brincadeira na terapia ou no ambiente escolar, deve-se tomar cuidado para que não ocorra a manipulação e o confisco da iniciativa da criança.

Segundo Dantas (2002), o que se vê na prática é que muitos professores impõem atividades que eles julgam prazerosas, retirando da criança a possibilidade de escolha. Mas atividade obrigatória não é brincadeira, é trabalho. Contudo, se nos contentarmos em empregar a palavra liberdade

[...] com o sentido de alguma possibilidade de escolha, teremos que nos referir a graus de liberdade que começam com a possibilidade de recusar o convite do adulto, e se ampliam na medida em que se multiplicam as alternativas de atividade. Em uma sala vazia, uma criança não pode exercer atividade livre; sua liberdade cresce na medida em que lhe são oferecidas possibilidade de ação, isto é, opções (DANTAS, 2002, p. 112).

Assim, para esta autora, a garantia da liberdade da criança não implica na demissão do adulto: pelo contrário, expandir a liberdade da criança implica no aumento das ofertas adequadas às suas competências em cada momento do desenvolvimento.

No caso da criança com deficiência, este tipo de discussão se torna ainda mais importante, devido ao fato de que esta criança, com freqüência, encontra diversas limitações para a realização de brincadeiras espontâneas.

Para Missiuna e Pollock (1991), se considerarmos o brincar como a atividade primária da criança e a brincadeira livre como essencial para o seu desenvolvimento, então o incremento de habilidades para o brincar se torna um objetivo importante da intervenção terapêutica. Ou seja, assim como se faz necessário, muitas vezes, o desenvolvimento de adaptações ou a utilização de recursos técnicos para que a criança com deficiência adquira maior independência para a realização de suas atividades de vida diária e escolares, também podem ser necessárias estas intervenções técnicas para que ela consiga brincar com maior independência. Neste caso, a atividade lúdica deixa de ser um instrumento de atuação do terapeuta ocupacional e passa a ser o objetivo de sua intervenção, “[...] não apenas um meio para um fim, mas também como um fim em si mesmo” (BLANCHE, 2002, p. 216).

Jurdi (2001, p. 47) também salienta que a atividade lúdica é importante “[...] não apenas como recurso terapêutico, mas como catalisador de um espaço de trocas e transformações”, pois permite à criança com deficiência “[...] a alteração de um estado de ‘ser deficiente’ para um espaço de ‘ser criança’” (grifos da autora).

Ao possibilitar que a criança com deficiência consiga brincar da maneira mais livre e satisfatória possível, o terapeuta ocupacional tem um papel importante na prevenção de incapacidades secundárias que podem surgir como resultado da privação do brincar (MISSIUNA; POLLOCK, 1991). Quando o brincar é tido como um fim em si mesmo, sendo incorporado tanto ao tratamento quanto à vida cotidiana da criança, seus componentes básicos podem ser desenvolvidos, pois a brincadeira por si só possibilita: experimentar o prazer e a diversão; desenvolver a iniciativa para iniciar, mudar e terminar uma atividade; aprender a agir e se

comportar de maneira mais flexível; desenvolver motivação intrínseca para participar do processo de tomada de decisões; desenvolver habilidades para controlar o ambiente e para suspender a realidade; estimular a criatividade; favorecer a participação ativa e o nível de atenção, o que afeta a aprendizagem, o desempenho geral e a interação com o ambiente (BLANCHE, 2002; FERLAND, 2006).

Além dos benefícios decorrentes da brincadeira por si só, o terapeuta também pode incluir, na atividade lúdica, alguns elementos que favoreçam o desenvolvimento de alguma habilidade específica. Neste caso, a brincadeira passa a ser, ao mesmo tempo, o objetivo e o instrumento da intervenção do terapeuta. De maneira diferente da primeira abordagem mencionada (a atividade lúdica com instrumento terapêutico), esta abordagem é centrada na criança, estimulando sua participação ativa na terapia (FERLAND, 2006).

Ferland (2005, 2006) sistematizou esta proposta de intervenção, dando-lhe o nome de Modelo Lúdico, o qual apresenta alguns princípios básicos. Primeiramente, a criança é dona de sua terapia, sendo ela quem decide a brincadeira, visto que o processo de decisão é parte integrante do tratamento, desenvolvendo sua autonomia e dando-lhe um sentimento de controle e satisfação. O outro princípio é decorrente deste primeiro, pois o terapeuta deve se adaptar e adaptar seus objetivos terapêuticos à escolha da criança. Para isso, o terapeuta se utiliza da análise de atividades, para analisar rapidamente a situação da brincadeira, refletindo sobre a ação, verificando possibilidades de intervir e acompanhando o desenvolvimento da criança. Por outro lado, a terapia deve ser iniciada desde a chegada da criança, estimulando sua postura ativa, exploratória e participativa, e não apenas quando começa a brincadeira, pois todas as situações podem ser fontes de trabalho terapêutico, cabendo ao terapeuta analisar a situação para retirar dela o seu potencial terapêutico.

Nesta abordagem, o terapeuta não deve ser um observador passivo, mas deve participar da brincadeira, demonstrando atitude lúdica e favorecendo o desenvolvimento da criança. Para isso, deve estimular a criança a tomar decisões e encontrar soluções, assim como sugerir maneiras de brincar que enriqueçam a sua experiência lúdica. Embora não deva evitar as frustrações, visto que isto faz parte do desenvolvimento de qualquer criança, o terapeuta pode também ajudá-la quando necessário, colocando a seu serviço os meios de que dispõe, tais como adaptações e manuseios, que devem ser empregados com sutileza e de maneira lúdica. A autora indica que pode ser necessária uma participação mais ativa do terapeuta nas brincadeiras com crianças com deficiência mental, visando estimular o seu envolvimento e manter o seu interesse.

De maneira geral, no início de cada atendimento, o terapeuta ocupacional pode sugerir alguns brinquedos que estejam disponíveis e a criança escolhe a brincadeira que lhe atrair. O brinquedo deve ser oferecido pelo seu potencial lúdico e pelo interesse da criança, não em função de suas limitações. Mas também podem ser utilizadas brincadeiras adaptadas, permitindo às crianças gravemente comprometidas o sentimento de controlar o ambiente.

Segundo Ferland (2006), os objetivos terapêuticos envolvem a ação da brincadeira (desenvolvendo as habilidades sensoriais, motoras, cognitivas e sociais), a atitude lúdica (redescobrindo o sentido do brincar) e o interesse da criança pelas brincadeiras (aumentando seu repertório de interesses). Além destes objetivos gerais, podem ser acrescentados à brincadeira outros personagens ou situações que estimulem alguma habilidade específica.

Quanto às habilidades motoras, a autora salienta que, na brincadeira, a criança manipula espontaneamente objetos de diferentes formas e tamanhos, planeja gestos, desenvolve o controle motor, desloca-se, mantém o equilíbrio, etc. Assim, ao brincar, a criança trabalha constantemente sua função física, mas o faz sem se dar conta. “Uma vez que a motivação é para brincar e não

para executar um gesto motor, ela terá mais prazer em agir com objetos, repetirá com mais prazer sua ação e integrará de maneira mais eficaz o esquema motor” (FERLAND, 2006, p. 97).

Para a autora, o brincar é uma modalidade terapêutica completa em si, que favorece o desenvolvimento das atitudes e das habilidades, mas pode ser conciliado com outras técnicas terapêuticas que buscam reduzir as limitações impostas pela deficiência.

Embora o Modelo Lúdico ofereça uma estruturação do uso da brincadeira como objetivo e instrumento da intervenção do terapeuta ocupacional, Ferland (2006) afirma que o modelo não é totalmente inédito, visto que muitos profissionais aplicam intuitivamente métodos semelhantes ao apresentado.

De fato, outros autores também mencionam alguns aspectos semelhantes aos encontrados no Modelo Lúdico, tais como Blanche (2002), que defende que o terapeuta deve seguir a liderança da criança e deve acreditar em suas próprias habilidades de lidar com o processo da terapia, sem seguir um plano estruturado previamente à chegada da criança.

Para esta autora, “uma sessão de tratamento pode ser transformada em recreação quando se permite que a criança escolha uma atividade, seja espontânea e se divirta” (BLANCHE, 2002, p. 210). A criança pode ser convidada a entrar em um mundo no qual a realidade seja suspensa por algum tempo e o objetivo da atividade seja apenas a sua realização. Mesmo que tenha o objetivo de trabalhar alguma função específica, o terapeuta pode aumentar a probabilidade da participação da criança se levar em conta a percepção que esta tem da brincadeira. Assim, os brinquedos utilizados devem ser baseados tanto nos objetivos do terapeuta quanto na motivação e nos interesses da criança. Desta forma, o terapeuta não deve se preocupar em ter muito controle sobre a situação. Durante a atividade escolhida pela criança, o terapeuta pode estimular movimentos ativos e a exploração, enquanto a criança pode desenvolver capacidades de resolução de problemas e praticar as habilidades recentemente adquiridas.

Blanche (2002) afirma ainda que, dependendo dos objetivos do terapeuta e das necessidades da criança, este pode desempenhar diferentes papéis: aquele que provê o espaço e o tempo para a brincadeira, aquele que medeia a relação entre as crianças ou medeia a resolução de problemas durante a tarefa, aquele que assume um papel muito ativo e dirige a brincadeira, aquele que observa a atividade ou aquele que brinca com a criança. Neste último caso, o adulto e a criança podem agir como companheiros iguais, revezando-se durante a interação.

Zerbinato, Makita e Zerloti (2003) parecem defender este último papel, ao afirmar que, embora o terapeuta deva ter claros os objetivos do tratamento, a escolha do brinquedo pode ser da criança e o terapeuta não precisa ter medo de brincar com ela. Takatori (1999) também fala da importância de que o terapeuta seja um companheiro de brincadeira da criança.

Uma outra função frequentemente atribuída ao terapeuta ocupacional é a adaptação dos brinquedos às possibilidades da criança. Para Erhardt e Merrill (2002), as habilidades de analisar as atividades que o terapeuta ocupacional possui podem ser utilizadas para adaptar o tamanho, a forma e a consistência dos materiais, bem como as regras e procedimentos da brincadeira, a posição da criança e o grau de interação com outros participantes.

Blanche (2002) também fala da importância da escolha de brinquedos adequados, principalmente para a criança com comprometimentos severos, ressaltando que pode haver a necessidade de adaptar os materiais para responder às necessidades da criança. A autora dá algumas dicas quanto à seleção dos materiais, de modo que as crianças com tônus flutuante podem se beneficiar de brinquedos mais pesados ou que ofereçam resistência, pois facilitam a estabilidade proximal e o feedback sensorial; já as crianças com hipertonia, podem ter mais facilidade para manusear brinquedos mais leves. Os brinquedos que requerem menores capacidades de manipulação são adequados para a maioria das crianças, assim como os

brinquedos que não têm regras rígidas quanto a sua utilização, pois permitem maior flexibilidade, aumentam a motivação de participar e favorecem o sentimento de controle sobre o material.

Para Zerbinato, Makita e Zerloti (2003), a criança com seqüelas de paralisia cerebral, por conta de suas incapacidades motoras, pode necessitar de ajuda para descobrir e aprender. Esta autora também salienta a importância da análise das propriedades e características do brinquedo, para que este possa ser adaptado à capacidade individual da criança. Contudo, os brinquedos também precisam oferecer desafios adequados, pertinentes à fase de desenvolvimento, instigando a criança à resolução dos problemas, superando gradativamente os obstáculos. Além disso, os terapeutas devem dar dicas aos pais sobre como facilitar o brincar, ressaltando a importância de fazer “com” a criança, não “pela” criança.

Para Ferland (2006, p. 61), se, ao utilizarmos a brincadeira, “[...] fazemos a criança descobrir o prazer da ação, se conseguimos desenvolver uma atitude lúdica, usar suas forças para compensar suas fraquezas, contribuiremos para assegurar-lhe um cotidiano mais satisfatório”, melhorando o seu presente, não pensando apenas em seu futuro.