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A atuação do analista e a atuação do mestre Zen

No documento Da sua inigualdade do sujeito ao objeto (páginas 64-68)

4.2 O(s) Ato(s) de transmissão na experiência

4.2.4 A atuação do analista e a atuação do mestre Zen

“O mestre interrompe o silêncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé. É assim que procede, na procura do sentido, um mestre budista, segundo a técnica Zen. Cabe aos alunos, eles mesmos, procurar a resposta às suas próprias questões. O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la. Essa forma de ensino é uma recusa de todo sistema. Descobre um pensamento em movimento – serve entretanto ao sistema, porque apresenta necessariamente uma face dogmática. O pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-lo a palavras gastas. Nele cada noção possui vida própria. É o que se chama precisamente a dialética.” (LACAN, 1953- 1954/1983, p. 9).

O analista não se deixa capturar na transferência, ele se esquiva da relação de alteridade para ficar na posição de objeto e assim possibilitar que o sujeito possa se haver com a questão do seu desejo e do seu (não) saber. Através de seus atos, de sua imprevisibilidade, o analista transforma a sessão em motor de saber para o sujeito, na medida em que isso implica o sujeito em sua divisão e flerta com a dimensão do saber alocado na descoberta do inconsciente feita em cada análise.

O Psicanalista, a despeito de estar em uma posição passível de poder, coloca-se como “castrado”. O analista intervém com um semi-dizer, com um enigma, com o silêncio, com um ato. Desvia do lugar de saber, o lugar que o analisante o coloca, Sujeito Suposto Saber, e apenas faz semblante de saber para encarnar a causa do desejo e interpelar ao saber do próprio sujeito ($), o saber que não se sabe, o Unbewusste, o saber do inconsciente (NASIO, 1993, p. 21).

Ainda que não seja possível estabelecer à prática clínica da Psicanálise um manual de condução metodológica, podemos destacar desta alguns aspectos importantes que dão suporte a este processo. Isto se mostra uma via interessante de se estabelecer articulações entre a ação e o simbólico, visando a recolocação do sujeito perante o saber na relação transferencial.

Alguns dos dispositivos estabelecidos por Lacan pertencentes à “clínica de sessões curtas”, também chamados de dispositivos de Atos clínicos, são a Antecipação da certeza precedida por um ato, a pressa, a conclusão e o fim antes do começo (corte). Semelhante aos encontros dos discípulos com os mestres Zen, os analisantes nunca sabem a priori o tempo de sua estadia, ou mesmo se sairão de tais encontros com uma resposta enigmática ou com algum ato (ato de palavra) aparentemente sem sentido algum.

Sobre uma destas particularidades do ato da análise, o corte, Lacan diz (como já citado anteriormente) que:

...não somos o único a ter feito a observação de que ele [o corte da sessão] se aproxima, em última instância, da técnica designada pelo nome de zen, e que é aplicada como meio de revelação do sujeito na ascese tradicional de certas escolas do Extremo Oriente. Sem chegar aos extremos a que é levada essa técnica, uma vez que eles seriam contrários a algumas limitações que a nossa se impõem, uma aplicação discreta de seu princípio na análise parece-nos muito mais admissível, na medida em que ela não comporta em si nenhum perigo de alienação do sujeito. Pois ela só rompe o discurso para parir a fala. (LACAN, 1966/ 1998, pp. 316-17).

O mestre Zen budista, por sua vez, é aquele que prepara o discípulo para a experiência do Satori através de uma inusitada e enigmática atuação. Algumas escolas budistas acreditam na iluminação súbita, outras a veem como um processo cumulativo, o fato é que para ambas as perspectivas, o momento de iluminação é visto como uma passagem, como um Ato de mudança.

Guimarães (2007, p. 79), em sua leitura do Ato, vai sublinhar o aspecto de mudança do sujeito, concluindo que o ato ¨ produz o efeito de resgatar a presença do sujeito do desejo – anulada no instante do ato – mas, depois dele, necessariamente renovada.(...). O sujeito após um ato já não é o mesmo que antes dele.¨ (GUIMARÃES, 2007, p. 79).

Encontra-se aqui uma semelhança entre este ato de passagem amparado por diversos atos de percurso e o ato analítico formulado por Lacan, enquanto suportado por um dispositivo de longo e intenso trabalho, mas culminando em um momento de travessia da fantasia, de ruptura, de destituição subjetiva.

Nas entrevistas com o mestre Zen é que o discípulo se qualificava em direção ao Satori, sendo somente qualificado como mestre aquele que já atravessou o processo45.

...a experiência Zen pode ser transmitida do mestre ao discípulo, o que tem ocorrido ao longo dos séculos fazendo-se uso de métodos especiais, próprios do Zen. Num resumo clássico de quatro linhas, o Zen é descrito como: “Uma transmissão especial fora das escrituras, Que não se baseia em palavras ou letras, Que aponta diretamente para a mente humana, Olhando dentro da natureza-própria do homem e alcançando o estado de Buda”. Essa técnica de “apontar diretamente” constitui o sabor especial do Zen. (CAPRA, 1983, p. 96).

Trazer o estatuto de ato, de falta de sentido, de corte, tem lugar na análise como via de escapar da cadeia infinita e infernal (como disse Lacan) de pensamentos e significações (LACAN, 1972-1973/2008, p. 123). Tal como o mestre Zen, o analista busca em sua transmissão um saber fazer com a linguagem que resista à estrutura última de significação e de sentido.

Frente à hesitação do discípulo, o mestre quebra o silêncio com qualquer coisa – um pontapé, um sarcasmo, um tapa, um berro – suspendendo a entrevista. Vemos então que a função do mestre é de corte, deixando cair por terra toda a significação. Assim, na técnica Zen, não se trata para o discípulo de compreender ou decifrar o Koan introduzido pelo mestre, pois este aponta para o sem sentido, que lança o sujeito na procura de uma resposta inédita. (MONTEIRO, 2012, p. 3).

Para haver um ato analítico é preciso que haja transferência (LACAN,1967- 1968/[inédito], p. 46) e que haja quebra de coordenadas simbólicas imaginadas. Também é preciso apontar para o sem sentido como sugere esta dimensão de ato em uma análise, uma vez que o ato tem lugar em um dizer, “pelo qual modifica o sujeito” (1967-1968/2003, p. 371). Assim, sua especificidade de ato não é o sentido apenas, mas a mudança. Seu efeito de mudança é o que confere ao ato sua circularidade, sua não aposta a um sentido, a uma interpretação, ainda que o ato conte com uma ponta de significante (LACAN,1967- 1968/[inédito], p. 80). Afinal, o significante como sabemos não é o significado, mas o não- sentido.

Temos em vista que ambos os métodos privilegiam o singular, a presença da marca do singular da resposta (aos questionamentos do mestre Zen ou do analista), o que evidencia uma similaridade entre o ato do analista e a atuação do mestre Zen. A singularidade da resposta e o

45 Fica claro que esta, no entanto, é uma correlação nossa, a partir das provocações de Lacan, e que extrapolam o

que este citou diretamente em seus seminários e escritos. Pensamos, no entanto, que tal discussão possa ser solo fértil para abordarmos a dimensão social do ato analítico, a partir de sua semelhança ao processo Zen, uma vez que ambos os processos privilegiam a transmissão de uma elaboração singular que pressupõe uma mudança subjetiva.

efeito de mudança causado pelo ato(do analista e do mestre zen) são similaridades então no Zen e na Psicanálise.

Guimarães (2007) estende a tese de Lacan acerca da passagem para o ato analítico, uma vez que a passagem ao ato e o ato – no que pese a radical diferença que os separe – têm a mesma estrutura.” (GUIMARÃES, 2007, p. 78). A tese de Lacan diz que “a passagem ao ato é aquilo além do que o sujeito reencontra sua presença como renovada, mas nada mais” (LACAN (1967-1968[inédito] apud GUIMARÃES, 2007, p. 77).

Ainda de acordo com a autora, “Os significantes que Lacan utiliza nesse enunciado – ‘presença’ e ‘renovada’ – referem-se aos efeitos produzidos pela passagem ao ato naquele que está em causa aqui: o sujeito.” (GUIMARÃES, 2007, p. 78). Sendo assim, “A partir de um corte que o ato instaura, torna-se irreversível o caráter de renovação e de transformação que ele produz no sujeito.” (GUIMARÃES, 2007, p. 79).

É como efeito de mudança para o sujeito que se pode ler a dimensão do ato de passagem. Se o ato de passagem na Psicanálise é o passe, a passagem a analista, no Zen é a iluminação ou satori, sendo que em ambos há uma nova localização do sujeito, que se dá tanto no âmbito subjetivo quanto no laço social. Desta feita, quais seriam os possíveis diálogos e dissensões entre estes distintos momentos de passagem?

Um importante ponto de dissensão está na distância do ato analítico em relação ao ato final no Zen. Na Psicanálise há a especificidade teórica do objeto a e a dimensão do ato como falho na análise, dois pressupostos que dicotomizam com a experiência postulada pelo Zen em seu alvo. Apesar de notarmos um diálogo quando consideramos o ato dos mestres Zen, o qual sustenta a transmissão não-toda simbólica e o estatuto de mudança após o momento do ato, o que é considerado como momento final no Zen demarca uma significativa diferença para com a Psicanálise. O momento da iluminação (Satori) é tomado como uma garantia, como um estado de completude, de ausência total e irreversível do sujeito enquanto desejante, mas via de regra isso é totalmente avesso ao estatuto de falta de garantia do ato analítico, que não promete ao sujeito uma suspensão de sua barra, de sua falta constituinte e logo de seu estatuto de sujeito desejante. Antes disso, o ato possibilita que o sujeito possa inventar algo a partir deste não sentido presente em cada pontuação do analista, em cada ato de uma análise.

Com esses apontamentos, podemos passar agora à próxima discussão acerca destas disjunções entre duas experiências que preconizam o ato em sua transmissão, o Zen e a Psicanálise, tratando do ato em seu momento de conclusão em ambas as experiências.

No documento Da sua inigualdade do sujeito ao objeto (páginas 64-68)

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