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O desenvolvimento do Zen-Budismo

No documento Da sua inigualdade do sujeito ao objeto (páginas 43-48)

O Budismo é uma das mais antigas religiões da humanidade, datando por volta de 500 a.C. Os Budistas no geral têm como um dos fundamentos essenciais a Joia Tríplice, que se compõe pela figura histórica do mestre Sakyamuni Buda – nome dado posteriormente a Sidarta Gautama –, o Dharma – os ensinamentos deixados por Buda e por mestres posteriores – e o Sangha – a comunidade budista (YOSHINORI, 2006, p. XI). Estes três elementos dão uma identidade ao Budismo, entretanto nele existe uma multiplicidade de escolas, o que torna difícil falar do Budismo de maneira genérica.19

Tendo já cerca de 2.500 anos de história, o Budismo começou na Índia, posteriormente se difundindo a partir da Ásia para todo o mundo. Podemos dizer que ele se divide hoje em três grandes correntes, o Theravada (Veículo dos antigos), o Mahayana (Grande veículo) e o Vajrayana (Veículo do diamante), que se dividem por sua vez em centenas de escolas budistas. As escolas Zen encontram-se dentro da corrente denominada Mahayana (Grande veículo).

Segundo Yoshinori (2007), a escola Zen floresceu na China durante o período T'ang (618-907 d.C.) e diversos mestres Zen foram para o Japão durante essa época. Entretanto, foi

19 Não caberá neste trabalho nos debruçarmos sobre as diferenças das diversas escolas budistas, o que nos

desviaria do objetivo desta pesquisa. Como já foi colocado, abordaremos especificamente as escolas Zen Rinzai e Soto, como trataremos adiante.

somente no período Kamakura (1185-1333 d.C.) que o Zen se estabeleceu no Japão como uma escola budista independente. “Três homens em particular podem receber os créditos pela introdução precoce do Zen no Japão: Myoan Yosai, em geral conhecido como Eisai (1141- 1215), Dainichi Nonin (que morreu por volta de 1196) e Dogen (1200-1253)” (YOSHINORI, 2007, p. 265).

Daisetz Teitaro Suzuki é reconhecido por ter introduzido o estudo do Zen no ocidente na década de 1950. Professor da Otani University em Kyoto, Japão, participou de diversas conferências em universidades da América e Europa. Segundo D. T. Suzuki (1970/1989), o Zen floresce no Japão do século XIII, sendo herança do primordial Budismo Indiano, que posteriormente migrou para a China através de Bodhidharma – o 28º patriarca do Budismo Indiano –, onde se amalgamou com a cultura chinesa e ganhou um aspecto altamente prático. Se o Budismo nasce na Índia, é na China que ele começa a tomar a forma do Zen.

Uma das características marcantes do Budismo Indiano é sua alta conceitualização filosófica e estrutura lógica, enquanto que o Zen, ao aderir à praticidade dos chineses, começa a tomar uma forma de um “método”. Neste ponto podemos começar a entender porque Lacan possa ter se interessado pelo Zen e o tenha citado enquanto uma certa “inspiração metodológica”, como o faz na abertura de seu primeiro seminário. (LACAN, 1953-1954/1983 p. 9).

Como já citado, foi Bodhidharma quem levou o Budismo da Índia para a China no século V (YOSHINORI, 2007, p. 3), e ele se estabeleceu em um templo Budista. Bodhidharma é também um dos fundadores das artes marciais na China, de forma que a sua prática também era vinculada ao Zen, sendo considerada uma experiência que abarcava a dimensão do vazio. Ao chegar à China, Bodhidharma percebe a defasagem prática dos monges chineses em relação ao conceito de não-violência, que os imobilizava. Bodhidharma então introduz as práticas Zen de artes marciais, admitindo o vazio da forma e possibilitando aos monges defenderem a si mesmos e ao templo.

Trata-se do templo Shaolin, ainda existente na República popular da China, na província de Henan. Podemos perceber desde então a aplicabilidade prática do Zen.De uma maneira geral, ao entrar em contato com o Budismo Indiano via Bodhidharma, os chineses lhe emprestaram (ao Budismo) um alto aspecto pragmático, em detrimento do Budismo Indiano altamente conceitual (CAPRA, 1983, p. 95).

O Budismo Indiano enfatizava a prática de Dhyana (termo sânscrito comumente traduzido como meditação), mas na China se amalgamou com a cultura local e foi altamente influenciado pelo Taoísmo e também pela doutrina de Confúcio. A transliteração do termo

sânscrito Dhyana passa a ser Ch’an (com o equivalente significado de meditação), e na China o budismo ensinado por Bodhidharma se chamará Ch’an. A partir do mestre japonês Dogen, que viajou à China, essa escola de budismo é levada para o Japão adquirindo peculiaridades técnicas próprias, desenvolvidas pelos mestres japoneses. E finalmente é designado como Zen – aqui o termo japonês também é traduzido como meditação (YOSHINORI, 2007).

De acordo com Suzuki, destacam-se dois nomes importantes na história do desenvolvimento do Zen na China: Bodhidharma, o seu fundador e Hui-neng, que ocupou no século VII um importante lugar no Budismo e é considerado o sexto patriarca do Zen (SUZUKI, 1989, p. 9).

Hui-neng é admitido como sexto patriarca do Zen após cunhar20 um verso em resposta

a Shen-hsiu, quando esta seria a tarefa mesma para a eleição do substituto do quinto patriarca.21 O verso de Shen-hsiu é o seguinte:

Este corpo é a árvore Bodhi,

A mente é como um espelho iluminado; Empenhai-vos em mantê-la sempre limpa

Sem deixar que nela se assente o pó. (SHEN-HSIU apud SUZUKI, 1989, p.21). E este é o verso de Hui-neng que o transforma em patriarca:

Não há árvore Bodhi,

Nem o cessar no brilho do espelho, Sendo tudo vazio,

Onde poderia assentar o pó? (HUI-NENG apud SUZUKI, 1989, p.21).

Existe na transmissão do Zen momentos de passagem como este, momentos de conclusão via de regra não estando aprisionados no sentido, como a poesia, ou a um gesto que flerte com a função do vazio. Desta forma, é entendido o primeiro ato de transmissão do Zen, como estando para além do conceito ou do sentido, e se localiza em uma passagem acerca do Buda histórico, Shakyamuni.

Nesta passagem Buda estava perante uma plateia de discípulos no Monte dos Abutres, quando simplesmente sem dar qualquer explicação, levantou um buquê de flores. O discípulo Mahakashyapa sorriu e diante deste gesto Buda afirma que apenas Mahakashyapa pôde

20 De acordo com a maioria dos relatos, na verdade Hui-neng pede para que outra pessoa escreva o verso

enquanto este é ditado, uma vez que ele era um simples camponês e não sabia escrever. Este fato, ao nosso ver, revela a total ausência de erudição no Zen, onde a eleição do patriarca desde Hui-neng leva em conta aspectos como o vazio em detrimento do sentido argumentativo, por exemplo. Demonstra mais uma vez o aspecto de ruptura do Zen perante o Budismo vigente até em sua época.

21 Os historiadores do Zen estão certos de que o quinto patriarca levou em conta também e principalmente o

compreender o ensinamento (DOUBLEDAY; SCOTT, 1944/2000, p. 37). Esta é mais uma historieta clássica entre a grande maioria de escritos sobre Zen. Buscamos estas passagens para apontar a leitura do Zen em relação a seu método de transmissão específico, não estritamente preso à razão, às palavras, à teorização ou ao conceito.

O Budismo Zen apresenta, assim como o Budismo em geral, um vasto compêndio de escrituras. Existe no Budismo o Tripitaka, ou três cestos, que é a somatória de todos os discursos do Buda histórico (Shakyamuni), e todos os escritos elaborados por mestres posteriores a ele. No Zen há a concordância com tais escritos, porém a novidade é que no Zen a transmissão destes conhecimentos subverte a metodologia clássica até então aplicada no Budismo, e passa a dispensar tais escritos em favor da própria experiência, ou da fala em favor da experiência direta, o que o torna “meio sem sentido”.

Os mestres Zen desenvolvem então uma nova metodologia de transmissão, não meramente amparada nas escrituras, o que não quer dizer que as ignorem ou que os escritos não tenham parte importante no Zen. O Zen também se baseia no Sutra da Perfeição da Grande Sabedoria ou Maha-prajna-Paramita (sânscrito),22 Sutra atribuído a Nagarjuna, e que

aborda o vazio, o Sutra do Lótus (DRAGONETTI; TOLA, 2006) ou Saddharmapuṇḍaríka- Sutra e no Sutra Diamante23 Vajracchedika-Prajnaparamita-Sutra (TEMPLO TZONG

KWAN, 2001). Tais Sutras têm em comum a novidade da linguagem utilizada em sua escritura, tal qual os escritos do mestre Dogen no Shôbôgenzô ou no seu Shinji Shôbôgenzô24.

Mas a questão em relação às outras escolas de Budismo é que, como foi dito, no Zen o método de transmissão desses Sutras não se focará na transmissão via palavra (escrita ou falada). O mestre Zen buscará que seu aluno experiencie tais ensinamentos, mais do que simplesmente saiba repetí-los verbalmente.

Existem basicamente quatro subdivisões da escola de Budismo Zen, sendo as principais: a Rinzai e a Soto. As outras duas escolas que ainda existem no Japão são a Obaku e a Sambo Kyodan. Como já foi demarcado, focalizaremos neste trabalho aquelas a que mais se assemelham aos exemplos dados por Lacan em seu ensino: o Zen da escola Rinzai e da escola

22 Os Sutras têm seus nomes originais em sânscrito, que era a língua utilizada nas escrituras indianas antigas,

hoje chamada de língua morta, mas ainda muito presente nos estudos das escrituras indianas clássicas. Os Sutras relacionados a nomes em sânscrito fazem parte do compêndio antigo do Budismo indiano, o qual também e principalmente é utilizado pela escola Zen.

23 O nome original do Sutra Diamante é Vajracchedika-Prajnaparamita-Sutra. Nesta edição dele, aqui citada,

tive a oportunidade de acompanhar e auxiliar na tradução ao português, no Templo Tzong Kwan, situado em São Paulo, tendo sido publicado no ano de 2011.

24 O Shinji Shôbôgenzô escrito pelo mestre Dogen, é uma valiosa coletânea de trezentos Koans escritos em

japonês, mas que não pudemos contar no presente trabalho, pois não encontramos uma tradução para o inglês ou para o português. Contamos, no entanto, com uma tradução de um conjunto de escritos do importante mestre Zen Dogen organizada por Tanahshi (1985/1993).

Soto.

Para Gonçalves (1976), as escolas Soto e Rinzai são as duas escolas mais importantes ainda hoje no Japão. A escola Soto dá ênfase ao método da meditação, sentar-se em silêncio (Zazen), enquanto que a escola Rinzai dá ênfase à prática dos Koans, que são anedotas e passagens enigmáticas oferecidas pelos mestres. O Koan “é um absurdo, um paradoxo insolúvel pelo intelecto e pela lógica, como por exemplo: — ‘você pode ouvir um ruído de suas duas mãos batendo uma na outra; ouça agora o ruído de uma mão só’ (...).” (GONÇALVES, 1976, p. 25). Tais escolas enfatizam uma prática ou outra, o que não quer dizer que no Zen Rinzai não exista a prática da meditação ou no Soto Zen não exista a prática dos Koans, vale ressaltar.

É dada uma grande importância à prática da meditação em todas as escolas, pois se trata de uma medida de solapar a mente racional e os pensamentos. Neste caso, poderia esta prática se assemelhar ao processo de associação livre da Psicanálise? É o que sugere Alan Watts, um importante estudioso do Zen:

O Zen não é um mero culto da ação impulsiva. A intenção de mo chih ch'u não é eliminar o pensamento reflexivo, mas sim eliminar o “bloqueio” tanto na ação como no pensamento, de modo a que a reação seja sempre como uma bola num rio da montanha, um pensamento após o outro sem hesitação. Algo de semelhante se encontra na prática psicanalítica das associações livres, utilizada como técnica para libertar dos obstáculos a corrente de pensamentos do inconsciente. (WATTS, 2000, p. 152).

Traçadas essas pinceladas sobre o Zen Budismo, e esboçada como se concebe a transmissão desse saber para além do sentido, abordaremos no próximo capítulo o conceito de ato, buscando articular alguns pontos de contato entre o método da Psicanálise e o método do Zen.

4 DOIS MÉTODOS PARA ALÉM DO SENTIDO: A DIMENSÃO DO ATO

Antes de iniciar este capítulo, julgamos importante salientar que localizaremos o ato inicialmente via genérica enquanto atos de transmissão possíveis de serem localizados tanto no Zen quanto no processo de análise e, posteriormente, o ato no seu sentido stricto sensu, ou seja, o ato analítico da alçada específica da Psicanálise. Como observa Guimarães (2007), o ato, nesse contexto, tem como principais características o poder significante, o corte subjetivo, a instauração do novo e a mutação do sujeito, “mas somente na medida em que elas são assimiladas, assumidas e afirmadas pelo sujeito agente, que no movimento dessa afirmação passa de analisando a analista.” (GUIMARÃES, 2007, p.13). Com essa perspectiva, iremos tratar nas linhas a seguir algumas abordagens sobre o ato, suas modalidades e relações entre ato analítico, atos de transmissão no Zen e na Psicanálise.

No documento Da sua inigualdade do sujeito ao objeto (páginas 43-48)

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