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O método Zen e o método da Psicanálise

No documento Da sua inigualdade do sujeito ao objeto (páginas 53-57)

4.2 O(s) Ato(s) de transmissão na experiência

4.2.1 O método Zen e o método da Psicanálise

(…) aliás, não estamos aqui para defender esse método, mas para mostrar que ele tem sentido dialético preciso em sua aplicação técnica. E não somos o único a ter feito a observação de que ele se aproxima, em última instância, da técnica designada pelo nome de Zen, e que é aplicada como meio de revelação do sujeito na ascese tradicional de certas escolas do extremo Oriente. Sem chegar aos extremos a que é levada essa técnica, uma vez que eles seriam contrários a algumas limitações que a nossa se impõe, uma aplicação discreta de seu princípio na análise parece-nos muito mais admissível, na medida em que ela não comporta em si nenhum perigo de alienação do sujeito. Pois ela só rompe o discurso para parir a fala. (LACAN, 1966/1998, pp. 316-17).

Passemos agora a localizar esta questão da relação entre Psicanálise e Zen de modo mais circunscrito, levando em conta as peculiaridades deste “sistema” oriundo do Budismo e o quanto seu método possa ter interessado a Lacan no que se refere a algumas homologias ao método da Psicanálise. Vale lembrar aqui o que afirmamos no início do capítulo 3, que temos clareza de poder ser problemático falar de um “método lacaniano”, pois o fazer do analista não pode ser determinado positivamente, como se poderia esperar de uma abordagem clínica. Como sabemos, em Psicanálise não faz sentido, diferentemente de outras abordagens, construir um guia de intervenções para analistas. Não cabe na Psicanálise um debate

puramente técnico. Mas isso justamente é uma vantagem deste saber clínico em sua prática, considerando aquilo que se propõe como um “objetivo” da análise.

O primeiro ponto que devemos falar é justamente da dificuldade em discursar sobre uma experiência relativa ao vazio. Ora, o vazio tem um sentido "sem sentido". Como falar, como colocar no plano do simbólico algo "sem sentido"? Talvez, pelo menos, apontando para a experiência direta tal como é referida no Zen. Entretanto, essa dificuldade parece culminar justamente no que pode ter serventia para a Psicanálise, já que esta opera com a fala e com a linguagem não se encerrando no sentido ou no significado. Como Lacan afima, “o de que se trata no discurso analítico é sempre isto – ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 43).

De acordo com Humphreys (1977, p. 23), os mestres Zen utilizavam métodos que confundiam e perturbavam a mente do discípulo, mas não conduziam os discípulos a alguma resposta, a não ser pela via de uma elaboração enigmática. Os discípulos Zen chegavam com questionamentos muito pontuais aos mestres, mas estes, por sua vez, respondiam com uma risada ou questionavam de volta de maneira aparentemente sem sentido, levando os discípulos a uma nova busca de sentido, e isto se desenrolando através de muitos encontros com o mestre, até que por fim houvesse a transmissão final do mestre ao discípulo. Essa transmissão final é referida pela palavra Satori, traduzível no português por iluminação ou esclarecimento. Desta feita, os mestres conferiam aos dizeres do discípulo uma possibilidade de giro e deslizamento que operava desatravancando a estaticidade dos significados, o que notamos ser algo muito parecido ao ofício do psicanalista.

Antônio Quinet (2009) dedica uma parte do seu livro “As 4+1 condições da análise” à técnica Zen, elucidando o interesse de Lacan sobre esse saber, localizando o método de transmitir ensinamentos do Zen, especificamente o Koan, como um método enigmático. O processo de deciframento do Koan pelo discípulo era acompanhado pelo mestre em entrevistas breves, e este último conferia como estava o estado do discípulo frente a esta resolução. Neste sentido podemos comparar as sessões curtas da análise lacaniana ao procedimento Zen de entrevistas breves e pautadas no enigma (QUINET, 2009, p. 68).

De acordo com Quinet (2009), o Zen tem como objetivo uma experiência súbita, o Satori (a palavra Satori também se refere a tal experiência), onde a certeza parte deste giro, e não do pensamento. O discípulo tem de chegar a uma experiência que parte desta reviravolta da mente. Nas palavras do autor:

própria”, que, sendo coisa alguma, não é. “Ver dentro da natureza-própria é, portanto, ver dentro do nada”. Ela se reduz ao instante de olhar, que aqui não é vinculado à ação, mas à falta absoluta de representação. [...] O que é visado na doutrina zen é algo que poderíamos situar como o que está fora da cadeia significante do pensamento tanto consciente quanto inconsciente. Essa doutrina é indissociável da técnica zen que vai consistir no meio utilizado pelo mestre de levar o discípulo ao abandono, à libertação da cadeia significante. (QUINET, 2009, p. 67). Prossegue Quinet com o que mais nos interessa destacar aqui, o fato de que a técnica utilizada pelos mestres é o recorte possível de interesse de Lacan sobre o Zen. Em suas palavras: “O que interessa a Lacan no Zen é menos a vivência dessa experiência de iluminação, também chamada de despertar, do que a técnica empregada para alcançá-la. É com esta, e não com a ascese mística, que ele compara o procedimento das sessões curtas.” (QUINET, 2009, pp.67- 68).

Para praticar o Zen, faz-se necessário despojar-se de quaisquer conceitos preestabelecidos. Os mestres Zen visavam a que os discípulos inaugurassem toda experiência possível em relação aos seus atos e à própria utilização da linguagem.

Em se tratando do signo linguístico, tal qual estruturado por Ferdinand de Saussure e subvertido por Lacan30, o despojamento conceitual do Zen soa familiar em relação ao

conceito de significante e letra para a Psicanálise lacaniana. “Através da nomeação proporcionada pelo simbólico, o significante poderá, também, adquirir outros efeitos além de significar. O significante, como letra, possui também uma ex-sistência para além e fora do fazer sentido” (COSTA et al., 2007, p. 123, grifo do autor).

O Zen se esquiva das conceitualizações, categorizações, intelectualizações ou racionalizações de um modo tão radical que, ao ser interrogado acerca do Zen, não raramente o mestre de tal escola se calaria ou quem sabe responderia com um latido, ou arremessaria o discípulo contra um lago. O que num primeiro momento pode parecer absurdo, é porém um método utilizado pelos mestres, que buscavam para além das palavras que os discípulos chegassem às respostas por si próprios.

Um dos métodos de transmissão do Zen, denominado mondo, consiste de pequenas conversas entre mestre e discípulos. Em um desses mondos:

Fu-Ch´i (o mestre) exclamou: Ó irmão! – e o monge respondeu: – Sim, mestre!; o monge perguntou: – Onde está o Vazio?; O pobre monge ainda estava à procura de imagens conceituais e fracassou completamente ao conceber uma idéia sobre o paradeiro do Vazio. Então, fez novo pedido: – Tenha a bondade de me falar sobre

30 O conceito de signo linguístico para Saussure “une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma

imagem acústica” (SAUSSURE, 2008, p. 80). Sabe-se que em seu conceito de signo, Saussure dá primazia ao conceito em detrimento da imagem acústica.

isso mestre; O mestre não tinha mais o que dizer; mas, enigmaticamente, conclui: – é como um persa31 provando uma pimenta vermelha. (SUZUKI, 1989, p. 116). Em um outro mondo: “O discípulo para o mestre: Todos os sons são sons de Buda?; Mestre – Sim!; Discípulo – Posso te chamar de macaco?; O mestre o acerta com uma pancada.” (SUZUKI, 1989, p. 70). Esses mondos aparentemente sem sentido contêm em si a derrogação da lógica binária, fundamentam-se no pressuposto do vazio, da lógica do sim e não ao invés da lógica do sim ou não. Justamente por isso interessam à Psicanálise, pois em seu Seminário XV “O ato analítico”, Lacan (1967-1968/ inédito), irá utilizar um estudo da lógica muito específico que possa ser coerente à lógica Psicanalítica.

Em um outro mondo, ainda:

Um monge perguntou a Pai-Chang Hui-Hai, o fundador do mosteiro Zen: Quem é o Buda?; Chang – Quem és tu?; monge – Sou fulano de tal; Chang – Conheces esse fulano de tal?; Monge – é claro!; Chang então levantou o seu hossu32 e disse – Estás

vendo?; Monge: – Estou vendo!; O mestre nada mais disse. (SUZUKI, 1989, p.70). Temos de pano de fundo a ideia de que o Zen busca a experiência direta e não apenas racionalizações ou verbalizações. Podemos arriscar uma comparação, uma homologia, entre os mondos e a sessão analítica, situando ambos como apontamentos que partem da linguagem, mas sempre para situar o seu para além, o seu impossível.

Vimos que o mestre Zen (Cf. Capítulo 3) não se ampara exclusivamente no simbólico e no sentido como via de transmissão de seu saber, ou deveríamos dizer, de seu saber-fazer. O mestre Zen irrompe no sem-sentido, e com o uso dos Koans e dos Mondos ele vislumbra um enfrentamento dos discípulos perante seus saberes e dizeres, obrigando-os a reformular o falar e o agir tendo em vista a inserção da dimensão do vazio nestes fazeres.

Na psicanálise não se trata exatamente do vazio tal qual o Zen, mas sim do objeto a e da operação feita por um sujeito em sua análise em relação a este a, este resto, este dejeto. Tal operação é conduzida por um analista que, para aquiescer tal posição deu cabo a sua análise, o que quer dizer que este terminou o processo analítico encerrando-se como analisante e iniciando-se como analista (o que é diferente de afirmar que este tenha esgotado seu inconsciente).

31 Os persas seriam os estrangeiros.

32 Artefato dos mestres Zen budistas, uma espécie de bastão de mais ou menos 30 cm de comprimento que conta

em sua ponta com pelos de Iaque. Os mestres usavam para afastar moscas mas também para simbolizar a transmissão do ensinamento (dharma).

No seminário Mais, ainda... (1972-1973/2008), Lacan trata da questão do gozo e nesse seminário, ele se serve de um exemplo do mestre Zen, apontando que o mestre Zen, diante de um questionamento aborda esse saber "para além das palavras". Diante de um questionamento racional que visa ao saber com palavras, o mestre responde com um mugido. Lacan neste momento faz alusão a um famoso Koan Zen, o Koan Mu de Joshu (Cf. nota de rodapé, a primeira da seção a seguir.).

Como veremos adiante, com a utilização dos Koans, os mestres derrogavam da fala a dimensão do sentido. Ao derrogar o sentido da fala do discípulo, o mestre Zen, assim como o psicanalista, confere um outro valor ao dito, ultrapassando o representar e o significar. E assim traz uma dimensão de Ato, de ruptura, de fissura no discurso. Estando para além do sentido, apenas desta forma, segundo Lacan (1970/1992, p. 108), um discurso poderia se colocar do lado da verdade, já que esta é entendida como castrada, tendo a estrutura de um enigma e de um semi-dizer.

No documento Da sua inigualdade do sujeito ao objeto (páginas 53-57)

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