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A ausência da entidade ‘medicamento’ na formação acadêmica

4. Farmacêuticos, formação acadêmica e mercado de trabalho na Bahia

4.3.1 A ausência da entidade ‘medicamento’ na formação acadêmica

Ao longo da análise dos dados observou-se que para a categoria ‘medicamentos’ não foi possível encontrar referências mais diretas a respeito dessas questões, o que encontramos nas atas de reunião plenária do CRF-4 se restringiu a poucas referências onde o que predominou foram descrições sobre as legislações direcionadas ao controle dos medicamentos, portarias da DIMED (Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde) na Bahia. Porém quando avaliamos os dados das entrevistas, verificamos algumas observações a respeito do ‘lugar’ dos medicamentos na formação dos farmacêuticos.

A Faculdade de Farmácia da UFBA foi até 2002, o único centro formador de farmacêuticos para todo o estado da Bahia. Sua vocação se destacou como uma escola que formava bons analistas clínicos como pode ser destacado no trecho a seguir:

“[...] é que, desde então, e eu acho que até agora, a vocação da faculdade de Farmácia é Análises Clínicas. Então Análises Clínicas sempre foi o top. E eu acho que deve continuar sendo o top, eu acho que é muito importante isso. E uma das coisas que a gente percebia, é que o estudante quando ia pra Análises Clínicas, ele se sentia estudante. E quando eles estava “tronco comum”, ele era qualquer coisa. Ele não tinha estímulo, ele não tinha muita percepção, porque o que ele queria era chegar em Análises Clínicas.” (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009).

Uma das razões para explicar também o pouco destaque da Escola de Farmácia na área de medicamentos esteve relacionada à divisão do próprio grupo dos medicamentos dentro da escola.

“ Olhe bem, nós, lá na faculdade de Farmácia, nós tínhamos três departamentos. Um, de Análises Clínicas, que era o mais forte, o mais poderoso, ele tinha muito respaldo. Então, por vários motivos, pelo fato de trazer recurso de pesquisa. Aí eu acho que tinha um que era chamado de Farmácia Básica. E essa Farmácia Básica eram aquelas disciplinas de Gnosia (Farmacognosia), aquelas todas disciplinas bem... Química Farmacêutica. E depois, tinha um outro grupo de disciplinas que era de Farmácia também, mas eu acho que... eu não lembro nome, mas acho que em termo de Farmácia Aplicada. Porque aí tinha Farmacotécnica, tinha Tecnologia Farmacêutica. Tinha Enzimologia, onde eu entrava, né? Mas eu vou dizer mais ou menos o que é que eu penso disso. Eram mais ou menos dois feudos. Então, o feudo da Farmácia Básica e o Feudo da Farmácia Tecnológica e Administrativa.”. (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009).

A estrutura organizacional da Faculdade de Farmácia passou por algumas modificações, contudo não é pretensão neste trabalho abordar essa questão, mas destacar em um dos discursos analisados uma conformação da organização administrativa onde se apresenta uma divisão interna do poder de um dos departamentos importantes que seria aquele voltado para a área do medicamento.

Existiam na década de 1980 três departamentos, onde o departamento de medicamentos era dividido entre o grupo das disciplinas consideradas básicas na graduação do farmacêutico. Entre estas se incluíam as disciplinas básicas dessa graduação a exemplo da Química Farmacêutica e da Farmacognosia. O outro grupo, considerado o das ciências farmacêuticas aplicadas, incluíam entre outras disciplinas a Tecnologia Farmacêutica75.

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Química farmacêutica é a ciência que estuda as propriedades químicas envolvidas na ação terapêutica e tóxica de fármacos,

bem como seus mecanismos de ação moleculares e a relação entre a estrutura e atividade. A química farmacêutica, modernamente tem sido chamada de química medicinal, dado a grande interdisciplinaridade e complexidade que a ciência adquiriu. A

farmacognosia é o ramo mais antigo das ciências farmacêuticas e tem como alvo de estudo os princípios ativos naturais, sejam

animais ou vegetais. Apenas a partir de 1815 foi introduzido o termo farmacognosia, que deriva do grego pharmakon (fármaco) e

gnosis (conhecimento). A farmacognosia é disciplina obrigatória nas Escolas de Farmácia do Brasil a partir de 1920, sendo uma das

maiores áreas do conhecimento farmacêutico. Tecnologia farmacêutica é o ramo da ciência aplicada que visa obter preparações farmacêuticas dotadas de máxima atividade, doseadas com maior precisão e apresentação que lhes facilitem a conservação e a

As preocupações em torno da manutenção de poder entre os grupos de alguma forma contribuíram para estacionar o crescimento dessa área dentro da faculdade que sequer conseguiu desenvolver uma influência forte em instituições que tiveram vida curta na Bahia a exemplo da Bahiafarma que será objeto de discussão no próximo tópico.

As reuniões de departamento não tratavam de questões mais significativas relacionadas à área dos medicamentos, os temas circulavam em torno de questões menos importantes e que não repercutiam em benefícios significativos para a área como pode ser verificado a seguir:

“Reunião de Departamento se falava de tudo, menos sobre isso. Por exemplo, teve uma vez que eu fiz uma reunião de Departamento e disse que ia começar às oito horas da manhã, e ia até as dez. Porque a gente sabe, é aquele velho chavão “Hoje a gente vai discutir nessas duas horas, porque a gente sabe que se agente passar dessas duas horas, é porque está perdendo tempo”. Foi uma tragédia. [..] Mas, nunca, nunca, nunca vi se discutir absolutamente nada. Teve, por exemplo, uma vez, que disseram, que saiu a representação estudantil, que não queria mais professor x, pra dar aula. E aí, o que foi decidido? Que o professor x... porque o professor x chegava tarde, fazia gracinha. Era o amigão da turma. Mas só que quando iam ver, cadê o conteúdo? Nada. Então, não queriam o professor. O chefe do Departamento acatou a solicitação dos estudantes e disse que não ia deixar o professor no professor, no próximo semestre. Até que, uma besta, eu, levantou a mão e disse “Então, esse semestre, vou fazer exatamente o que aconteceu, porque eu terei o prêmio de no outro semestre não fazer nada”. Exatamente isso que aconteceu. Não se discutia nada, nada, nada, nada. Ta certo? Por exemplo, se lá... eu vou falar da disciplina. Se na Enzimologia e Tecnologia das Fermentações, eu não quisesse fazer nada, ninguém ia atrás de mim. Ninguém, ninguém, ninguém, ninguém. O pouco que eu via lá no nosso Departamento, era exatamente isso. E qualquer atitude lá, que você tomava depois de determinadas situações, aí era sempre assim, o conjunto do “deixa pra lá, não faça isso, se você fizer, você vai...” . Então... Era, não se discutia, absolutamente nada. Então, pra quê vai se discutir o estudante? Por que é que a gente vai se discutir o que é que se fazia lá dentro? Por que é que vai se discutir o profissional lá fora? Nada! Nada, nada, nada, nada. Era bom, porque você fazia do jeito que você queria. Você ou se esforçava ou deixava de se esforçar. E aí, tudo bem, sem problema. Nunca houve cobrança de absolutamente nada, nada, nada.” (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009).

A não existência de uma Farmácia-escola, que pudesse auxiliar aos estudantes a antever o processo de trabalho realizado na farmácia comercial gerou reflexos na formação e na concepção destes a respeito do lugar dos medicamentos nesse cenário de prática. Acreditamos que a concepção dos farmacêuticos sobre a importância desse local

administração. Tem como objetivos, a transformação de produtos naturais ou de síntese tornando-os possíveis de serem administrados aos seres humanos, com fins curativos, paliativos, profiláticos ou de diagnóstico; a definição de diversas formas que pode assumir o medicamento, de modo que possa ser facilitada sua posologia, administração e ação farmacológica; pesquisar o desenvolvimento de produtos visando utilização de um mesmo medicamento em diferentes formas farmacêuticas, que atendam a todas às necessidades humanas.

de trabalho foi fortemente influenciada pelos professores farmacêuticos vinculados ao departamento de medicamentos. Estes por sua vez, não conseguiram alavancar um processo contínuo de desenvolvimento da área que seduzisse os estudantes a atuarem nesse eixo do mercado de trabalho.

“A faculdade não tinha, como não tem hoje, a farmácia-escola. É uma crítica, que a gente tem que fazer, que são 32 anos de formada, e eu não vi na área de medicamentos, a Universidade Federal crescer, dentro da sua estrutura. Porque a gente que tem o conhecimento ta buscando fora? E muito dos nossos colegas andam com as próprias pernas. A universidade tem dado, assim, né? Eu sei pela vivência que a gente tem. Porque é o que a gente tem brigado, acho que as escolas tão formando... Aqueles que não tem mesmo uma vantagem, para fazer aprendizado, eles pegam e negligenciam... A gente ficou, na minha formação, eu fiquei assim, com um monte de informações soltas. Eu não tive gancho, vamos dizer assim.” (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009).

O lugar dos medicamentos na Faculdade de Farmácia ao longo do período destacado não foi um lugar privilegiado. Ao contrário, quando uma das entrevistadas se referia ao lugar dos medicamentos dentro da Faculdade de Farmácia ela afirma:

“Não existia, não existia. Você vai me achar extremamente dura, mas não existia. Houve um professor, daqueles que não era nem substituto, nem o sei quê, nem o sei quê lá, de uma dessas três disciplinas que definem o farmacêutico. Eu estava na coordenação, nessa época, e três ou quatro estudantes vieram conversar comigo, mas informalmente, aquelas coisas que estudantes sabem fazer informalmente muito bem, dizer que o professor, no primeiro dia de aula de uma dessas três disciplinas, ele chegou e deu os pêsames aos estudantes, porque haviam escolhido a pior profissão possível. Eu disse “Escrevam, que eu vou poder fazer alguma coisa”. Mas aí, aquele medo, de que o professor pode reprovar. Mas isso aconteceu, eu posso até dizer, se precisar, sei até a pessoa que me disse isso, veio conversar comigo no colegiado. Então não havia lugar para o medicamento na faculdade de Farmácia. E você sabe, em função de alguns colegas que você tem, você deve ter feito a análise, e você sabe que isso é a realidade. Não tinha, não. (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009).

Essa era a concepção transmitida aos estudantes a respeito da profissão. Um significado de descrédito sobre a mesma e de um contexto desfavorável, onde o medicamento, numa disputa com o mercado, deixou de ser essencialmente entidade quimioterápica e adquiriu características predominantes de mercadoria, sendo completamente estranha para os professores farmacêuticos.

Com uma formação deficiente para atuar na Farmácia Comercial, os farmacêuticos não sabem o que fazer e nem como mudar ou se inserir nessa nova farmácia. Além do que as normas a respeito desse comércio farmacêutico se tornavam cada vez mais abundantes e a fiscalização sobre o comércio de medicamentos nem sempre foi harmônica entre farmacêuticos e os serviços de fiscalização sanitária.

A seguir trataremos sobre essa relação entre farmacêuticos e o controle sanitário dos medicamentos na Bahia.

4.3.2 Os farmacêuticos, os medicamentos e o controle sanitário dos