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4. Farmacêuticos, formação acadêmica e mercado de trabalho na Bahia

4.2.2 As particularidades das Análises Clínicas

Santos (1993) aponta que, a área de análises clínicas começa a demonstrar sinais de certa saturação na década de 70, o que pode ter obrigado alguns farmacêuticos a migrarem para outros cenários de prática. Inclusive a valorização da profissão farmacêutica no aspecto da atuação mais voltada para os medicamentos começou a ficar mais forte entre as décadas de 1980 e década de 1990, pois com a criação do SUS, um novo mandato para a profissão é estabelecido. Num contexto de garantia de assistência a saúde integral, inclusive farmacêutica, uma nova posição para a profissão vai emergir juntamente com a criação do Sistema Único de Saúde.

A área das Análises Clínicas apresentava algumas características que discutiremos a seguir. Primeiro, que o exercício das análises clínicas nunca foi exclusivo da farmácia, assim, sempre foi um campo de conhecimento a serviço das práticas médicas, mas que era compartilhado com médicos e posteriormente, na década de 1980, com os biomédicos (discutiremos esse evento no próximo tópico). Assim, sempre foi um cenário de prática marcado por disputas entre várias profissões que procuravam também afirmar um espaço no mercado de trabalho para seus profissionais.

Encontramos nos documentos analisados descrição de tentativas de outras profissões que procuravam militar nessa área. O CRF-4 sempre mostrou-se eficiente nas lutas a favor dos farmacêuticos e contra essas tentativas. Nesse sentido destacamos o movimento da categoria contra dois fatos:

“Considerações sobre o Conselho de Química, que está tomando áreas de atuação do farmacêutico. Relata-se a existência de biólogos no funcionalismo público estadual

fazendo análises clínicas.” (Ata de reunião plenária de 15/06/1976).

Dr. Giovanni relatou sobre o caso da bióloga que seria indicada para assumir a coordenação dos laboratórios de saúde publica da secretaria de saúde publica, disse que conversou com o secretario de saúde do estado, e que após isso foi revogada a portaria que nomeava a mesma, porém esta revogação está causando muita polêmica (grifo meu).

Dra. Inalva disse que foi bastante desagradável a polêmica, pois um farmacêutico teria dito que foi o Sindicato que pediu a revogação deste ato, o que não ocorreu na realidade. Disse também que o Sindicato recebeu oficio do Conselho Regional de Biologia, condenando o ato da revogação. Dra. Inalva sugeriu que fosse tomada uma posição uma vez que houve uma posição tomada pelo conselho, sindicato e faculdade de farmácia, para juntos evitar tal contratação. Dr. Giovanni afirma que vai pedir uma audiência com o Secretario da Saúde para que juntos (sindicato, conselho e faculdade) possam tratar do assunto. (Ata de reunião plenária de 03/07/1986).

A mobilização sobre esses eventos indica que as interferências eram comuns e que a regulamentação profissional era o ponto sobre o qual o CRF-4 argumentava sobre a violação do mercado de trabalho. Em muitos momentos as participações da Academia e do Sindicato ocorriam, mas as discussões sempre eram capitaneadas pelo CRF-4. O caso foi levado às ultimas instâncias e em 29/07/1986 foi registrado que:

Dr. Giovanni falando em relação da contratação da bióloga, disse que o processo se encontra na procuradoria do ISEB e o que consta é que ela foi contratada como laboratorista, com vários cursos em saúde publica. Disse também que fez ver ao secretário de saúde do estado que se essa fosse nomeada nós (conselho, sindicato...), protestaríamos publicamente. Relata também o apoio do Laboratório Central da Bahia (LACEN) (grifo meu). Dr.

Waltez falou que deveríamos tomar providencias, pois existe uma invasão de outros profissionais na nossa área de atuação. Disse que em outros locais no Brasil biólogos podem trabalhar em laboratórios de analises clinicas e que o CFF deveria tomar atitudes mais drásticas em relação a isso. (Ata de reunião plenária de 03/07/1986).

A movimentação em torno das situações demonstra que, os farmacêuticos conseguiam utilizar de forma resolutiva aquilo que a regulamentação permitia para fazer duas coisas: uma conviver da maneira mais harmônica com os médicos (que eram regulamentados para exercer as análises clínicas) nesse mercado de trabalho e a outra em impedir as tentativas de outras profissões não regulamentadas que procuravam ascender a esse mercado.

A segunda particularidade era que o mercado de trabalho nas Análises Clínicas era dominado majoritariamente pelos médicos, ou seja, os proprietários da maioria dos laboratórios na Bahia eram médicos, como dito no discurso da Dra. Tônia Falcão e, os farmacêuticos mantinham uma relação de trabalho com estes em que a sua força de trabalho, demonstrava ser qualificada, mas na maioria dos casos a hegemonia médica dominava também nesse mercado.

“... o laboratório Gonçalo Muniz, era um laboratório de Análises Clínicas e de pesquisas também, por seu corpo técnico basicamente de Farmacêuticos, embora seus diretores, até, se não me engano, Dra Ida Costa, foram médicos. A maioria dos técnicos, das pessoas responsáveis pelo Laboratório eram farmacêuticos. Mas o Diretor, era médico. Dr. Figueiredo e ... não sei se Dra. Elza ou Aida. Fui aluna de Dra. Elza Carvalho, Dra. Altina Sodré. Mas eu acho que como diretora do Lacem, acho que Dra. Elza não foi Diretora do Lacem, acho que a primeira farmacêutica (que foi diretora) foi Dra. Aida. Foi Doutor Armando Tavares, médico. Quando eu fui estudar Medicina, até onde eu me lembro, a maioria dos laboratórios eram de análises clínicas, eram de médicos. O laboratório, mais famoso da época era o laboratório Estácio Gonzaga, que o proprietário era Dr Estácio Gonzaga, que é médico. Que o substituiu foi o Dr Estácio Gonzaga Filho, que é médico, Dr Joel Leones que era sócio, médico. Então nós tínhamos a rede de laboratórios predominantemente dominada por médicos. Dr Elsimar Coutinho que trabalhava em laboratório, Dr Alaor Coutinho. Eram médicos, em laboratório. Eram do domínio médico (Tônia Falcão. Entrevista realizada em 29 de agosto de 2008).

A terceira particularidade estava relacionada ao prestígio de graduar-se um farmacêutico bioquímico. Nota-se que mesmo com a formação do ciclo básico profissionalizante que graduava o farmacêutico habilitado para atuar na farmácia comercial existia uma preferência dos estudantes pelas análises clínicas, que optavam pela habilitação, tanto pelo status acadêmico e profissional, quanto pelas opções oferecidas pelo mercado de trabalho que era mais favorável.

“Aí, quando nós ingressamos na faculdade, de lá veio um grande impasse. Porque até aí, a universidade, os farmacêuticos, eles faziam o tronco comum (referencia a formação do ciclo básico profissionalizante que graduava o farmacêutico para atuar na farmácia comercial), então não tinha divisão de farmacêutico e bioquímico. Eles faziam assim, era normal, era corrido como é hoje, a gente fazia o curso, terminava, recebia o diploma de farmacêutico e ia atuar na farmácia, só que a grande maioria da época que nós entramos já fazia um curso voltado pra ser analista clínico. (Entrevista realizada no dia 05 de agosto de 2008, com a Farmacêutica Dra. Ademarisa Fontes)

A preferência dos alunos pela habilitação em Análises Clínicas foi apresentada de maneira interessante em entrevista da professora Maria Edesina Aguiar66, que foi docente na Faculdade de Farmácia da UFBA no inicio da década de 1980.

“Também, uma das situações, desse tronco comum, ser tão incipiente, não dar base pra nada, é que, desde então, e eu acho que até agora, a vocação da faculdade de Farmácia é Análises Clínicas. Então Análises Clínicas sempre foi o top. E eu acho que deve continuar sendo o top, eu acho que é muito importante isso. E uma das coisas que a gente percebia, é que o estudante quando ia pra Análises Clínicas, ele se sentia estudante. E quando eles estavam no “tronco comum”, ele era qualquer coisa. Ele não tinha estímulo, ele não tinha muita percepção, porque o que ele queria era chegar em Análises Clínicas. “ (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009)

A formação deficiente do farmacêutico da área de medicamentos, que já era questionada em reuniões do Conselho de Farmácia, era notada pelos professores, mas a existência de interesses internos da Faculdade cooperou para o fortalecimento da área de Análises Clínicas que, segundo a professora, possuía uma existência à parte na escola.

“... Estávamos uma vez discutindo, discutindo sobre a matriz, que não era eficiente, que era muito deficitária, que ela precisava ser melhorada, e aí vem uma idéia do grupo de Análises Clínicas. Eles eram fortes, quase só doutores, e então o que é que eles queriam? Eles queriam que o grupo que fosse para Análises Clínicas não tivesse Farmacognosia, Química Farmacêutica e Farmacotécnica. Exatamente as três disciplinas que definem a profissão farmacêutica. Eles queriam retirar essas disciplinas, porque era perda de tempo para o estudante, que ia fazer Análises Clínicas. Pra que saber essas coisas? Ate que um dia, eu perguntei: “Vocês querem mesmo tirar essas três disciplinas? Então, tudo bem. “Tirem, mas saiam da faculdade de Farmácia, porque os intrusos são vocês.” E aí foi aquela “oh, que horror”. Mas tudo bem, como eu agüentava muita coisa, eu fui pra frente. (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009)

Dessa forma constatamos que o desvio da formação do farmacêutico para as análises clínicas foi um fator que contribuiu efetivamente para a desvalorização daquele que atuaria na farmácia comercial. Mesmo com iniciativas do Conselho de fortalecer essa formação, ao longo da década de 1980, período no qual se verificam vários ataques ao principal cenário de prática do farmacêutico - a farmácia comercial - se constatou a necessidade de investir na formação de um profissional que pudesse atuar efetivamente nesse cenário. Ao contrário, não se observou nenhuma iniciativa mais incisiva para contribuir com essa formação por parte do único centro de formação de farmacêuticos da época na Bahia.

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Professora Edesina Aguiar é farmacêutica graduada pela USP em 1969. É doutora em Bioquímica e foi professora titular na Faculdade de Farmácia das disciplinas de Bioquímica e Tecnologia das Fermentações da habilitação em Indústria. Foi coordenadora de Colegiado na década de 1990 e membro do departamento de medicamentos.

“... E só pra concluir isso, pra ver como era forte, vários estudantes ansiavam terminar o mais rápido possível, o famigerado tronco comum. “Vamos terminar rápidos e rasteiros... sem eira nem beira, não quero saber disso aí.” E quando terminavam, já começavam a fazer a arrecadação para a formatura, e um grupo, pra ver como isso daí era tão arraigado no estudante, um grupo que iria fazer a formatura lá na frente era “Analistas, graças a Deus”. Eu passava por aqueles cartazes, eu tinha vontade de destruir. Então, a minha, porque eu to sempre achando que eu tenho que me contrapor. E a hora que eu li “Analistas, graças a Deus”, eu dizia assim “Graças a Deus, que eu não sou Analista”. Então era isso, eu acho que define bem o que era a faculdade, a faculdade era um caos. Por quê? No sentido que não davam formação nenhuma! Mas também quem era o farmacêutico comercial? O que é que precisava fazer? Sair correndo do balcão pra pegar o medicamento na prateleira e voltar? Era isso, era isso... E alguns professores, que se condoíam mais, eles aí diziam “olha, venha que eu ajudo a fazer o livro de psicotrópico”. Que eram os livros pretos desse tamanho, que a gente via estudante de cá pra lá, andando com aqueles livros, e um outro professor se dispunha, depois do menino formado,a ensinar o que era aquilo. Eu nunca poderia ensinar absolutamente nada daquilo porque eu também estava fora, e eu não sei nada disso. E agora, eu acho que é até informatizado, né?” (Entrevista com Professora Edesina Aguiar, realizada no dia 20 de dezembro de 2009)

Essa verificação leva à constatação de que o desvio da formação do farmacêutico para as análises clínicas foi um fator que contribui efetivamente para a desvalorização da formação do farmacêutico das demais áreas de atuação. A profissão vai perder significativamente um espaço nesse mercado de trabalho para os biomédicos, ainda no final da década de 1970.

Especificamente, a atuação dos farmacêuticos no serviço público - seja atuando nas análises clinicas, ou na área dos medicamentos - sempre foi marcada por conflitos, pois ao contrário do que deveria ocorrer, os serviços de Farmácia deixavam a desejar no que se relacionava às questões de efetiva implementação das exigências legais de funcionamento desses serviços. Além disso, os serviços de fiscalização sanitária não conseguiam organizar esse quadro de irregularidade no setor publico por questões que na maioria das vezes decorriam de dificuldades estruturais ou ainda políticas. Sobre essas questões discutiremos a seguir.