• Nenhum resultado encontrado

Um enfoque teórico para tratar a relação dos farmacêuticos com os medicamentos

2. Considerações teórico – metodológicas

2.1 O referencial teórico

2.1.4 Um enfoque teórico para tratar a relação dos farmacêuticos com os medicamentos

Os enfoques conceituais sobre o tema produção-consumo de medicamentos, a serem utilizadas no estudo, utilizarão referenciais alternativos aplicados ao estudo do consumo dos medicamentos. Giovanni (1980) realizou um trabalho baseado nas formulações de Marx sobre as relações sociais produção-consumo (matriz sobre a qual se reproduz a sociedade no modo de produção capitalista).

No segundo capítulo de seu livro, Giovanni (1980), trata da questão da comercialização dos medicamentos. A indústria farmacêutica estabeleceu padrões de mercado e de consumo novos e a realização do valor da produção farmacêutica depende tanto da participação do ‘aparelho comercial especializado’ – a ser a farmácia e a drogaria – quanto da intermediação da prática médica e instituições de saúde.

A farmácia ou drogaria interferem no posicionamento dos produtos da indústria farmacêutica como entreposto de vendas e na divulgação privilegiada da qualidade dos produtos. Os médicos por sua vez vão se constituir como um ‘alvo-lógico’ importante, pois de fato é este o grande responsável por boa parte da comercialização dos medicamentos. O autor descreve as estratégias direcionadas a esses alvos-lógicos, dentre elas o propagandista da indústria.

A farmácia é percebida por esse autor como agentes privilegiados da comercialização e indução do consumo dos medicamentos. As farmácias/drogarias sofreram ao longo desse processo uma adaptação histórica à nova estrutura de produção e seguiu perdendo as características de pequeno laboratório de produção para assumir a característica de entreposto comercial de medicamentos industrializados.

Conhecer signos e significados acerca da elaboração da categoria ‘medicamento’ para os farmacêuticos sugere a utilização de referenciais teóricos que possibilitem compreender a construção social e as relações que se estabeleceram entre

este último, os farmacêuticos e a sociedade antes e após o surgimento da indústria farmacêutica.

O clássico trabalho de Fernando Lefévre (1991), afirma que, via de regra, as abordagens acerca da questão do consumo de medicamentos tendem a focalizar a atenção em críticas ao consumo "leigo", "exagerado", "desviante". Para o autor tais análises dão margem ao nascimento de estratégias para a retomada de um suposto "consumo adequado", o que termina por encerrar o medicamento em sua dimensão quimioterápica, em que reina a autoridade médica.

Numa perspectiva mais ampla, este autor analisa o consumo de medicamentos como um problema de saúde pública e não enquanto uma "disfunção social", mas, ao contrário, como uma função mesmo, ou seja, como uma expressão social da hegemonia da mercadoria nas sociedades industriais contemporâneas.

Lefévre (1991) argumenta em seu trabalho que o entendimento da problemática sobre a questão do consumo de medicamentos teria contribuições significativas se o mesmo fosse visto como assumindo três funções importantes e articuladas. Estas funções seriam: uma função quimioterápica, visto que ao mesmo tempo em que cura o medicamento também previne; uma função simbólica, pois o mesmo simboliza aspectos do processo saúde-doença-cuidado e uma função social, pois também aliena e domina.

Numa perspectiva dialética, Lefévre (1991) analisa o medicamento sob três pontos de vista, o da sociedade, o do médico e o do indivíduo. Para aprofundar o sentido que os agentes sociais emprestam ao medicamento, o autor se apóia também na perspectiva semiótica.

Esta associação entre dialética e semiótica confere à obra uma característica interessante, mas nem sempre atingida, por outras análises dialéticas. Ao longo do seu trabalho, o autor apresenta a nossa sociedade não como uma estrutura cristalizada, mas como produto da atividade social concreta, como um processo, algo que se está criando, atualizando, dinamizando, graças às tensões, contradições e à atividade humana em seu interior.

A contribuição sobre as relações simbólicas estabelecidas pelos profissionais de saúde com o medicamento é descrita com maior detalhe a partir do enfoque sobre o médico sem apresentar outro enfoque a respeito de outros profissionais de saúde.

Outro enfoque conceitual sobre os medicamentos, foi realizado por Pignarre (1999). Esse autor trata das relações entre o medicamento e os três níveis por onde ele

circula: a ciência, o mercado e os homens da sociedade. O autor utiliza o ‘efeito placebo’ como uma construção social que tem, por sua vez, importante papel na construção daquilo que ele define como ‘ecologia do medicamento’. Um dos aspectos de sua abordagem traz os atores da intermediação entre medicamento e paciente, são eles o médico (que prescreve) e o farmacêutico (que elabora e que fornece).

Embora, esses trabalhos sejam de grande relevância e sejam utilizados predominantemente como referenciais teóricos nas análises que tratam da temática dos medicamentos, é de fundamental importância que essa problemática seja discutida também numa dimensão histórica e antropológica. Pois as atividades do sujeito, tomado como indivíduo ou grupo, tem marcado papel na elaboração de signos e significados sociais.

Ou seja, a representação social é uma construção do sujeito enquanto sujeito social. Sujeito que não é apenas produto de determinações sociais nem produtor independente, pois que as representações são sempre construções contextualizadas, resultados das condições em que surgem e circulam. As representações são interpretações da realidade. Dito de outra forma, a relação com o real nunca é direta; é sempre mediada por categorias histórica e subjetivamente constituídas.

Assim, utilizaremos uma abordagem para a compreensão dos signos e significados acerca da elaboração da categoria ‘medicamento’ para os farmacêuticos utilizando como referencial teórico as representações sociais de maneira a possibilitar novas dimensões sobre a compreensão da construção social das relações estabelecidas entre o medicamento e os farmacêuticos e a sociedade antes e após o surgimento da indústria farmacêutica.

O conceito das representações sociais que será adotado nesse trabalho faz referência ao “tipo de saber, socialmente negociado, contido no senso comum e na dimensão cotidiana, que permite ao indivíduo uma visão de mundo e o orienta nos projetos de ação e nas estratégias que desenvolve em seu meio social”. (QUEIROZ, 2000 e 2003). Nesse sentido, assumiremos as representações sociais como um conceito dinâmico, sintetizador de estruturas cristalizadas, mas com possibilidades de reinvenção, que opera na mediação entre estruturas objetivas e a reconstrução da ordem simbólica, subjetiva.

Compreender a relação dos farmacêuticos com os medicamentos prescinde de uma pontuação sobre o ciclo do medicamento e de que forma ocorre a inserção do mesmo nesse ciclo.

O ciclo do medicamento inclui importantes atividades inerentes aos farmacêuticos. Nele se inclui atribuições para o farmacêutico que vão desde a produção até a distribuição do medicamento. Durante a etapa de pesquisa de um novo fármaco o farmacêutico desempenha importante função desde o desenvolvimento da molécula até a etapa dos testes que avaliam a efetividade e segurança destes (PIGNARRE, 1999).

Após a concepção do medicamento este vai para os órgãos sanitários que são responsáveis por fornecer um registro que representa a garantia da qualidade do produto tornando então o medicamento um produto passível de comercialização. O que se destaca nessa etapa do ciclo é que ocorre uma participação habitual dos farmacêuticos que atuam no setor regulador (COSTA, 2004).

Após o registro do medicamento este será finalmente distribuído para as unidades onde serão dispensados, mais uma vez esse procedimento ocorre com a exigência da supervisão e responsabilidade do farmacêutico de maneira que a qualidade do produto registrado seja mantida até o seu destino final. Após o processo de distribuição os medicamentos necessitam da tutoria de um responsável técnico farmacêutico para então serem comercializados ou dispensados nas farmácias e/ou drogarias de natureza pública ou privada.

Após a comercalização/distribuição os farmacêuticos também se responsabilizam pelo processo de uso desses medicamentos através da Prática da Atenção Farmacêutica10 (HEPLER e STRAND, 1990). No entanto o uso dos medicamentos na população produzirá resultados relacionados à segurança dos mesmos que serão avaliados também por farmacêuticos da farmacovigilância11 e até mesmo no descarte dos resíduos de medicamentos os farmacêuticos têm papel de suma importância, tendo em vista que recentemente estes têm sido apontados como os responsáveis pela elaboração de planos que gerenciem os resíduos de medicamentos e insumos farmacêuticos (COSTA, 2004).

Sendo assim, essa matriz teórica possibilitará compreendermos como as representações sociais dos farmacêuticos em relação aos medicamentos foram historicamente construídas e quais as possibilidades de transformações nesse campo e

10

Na década de 1990 do século XX, surge uma nova missão de prática profissional denominada de Atenção farmacêutica, onde o farmacêutico passa a incorporar um conjunto de competências e habilidades necessárias à identificação, resolução e prevenção dos problemas relacionados ao uso dos medicamentos. Essa nova missão de prática profissional decorre dos alarmantes números relacionados à morbidade e mortalidade relacionada à farmacoterapia (CIPOLLE, MORLEY, STRAND, 1998).O marco temporal desse trabalho, não inclui as atividades mais recentes a exemplo da atenção farmacêutica, mas a compreensão dessas atividades atuais explicita a importância que os medicamentos possuem para profissão na atualidade.

11

Ciência relativa à detecção, avaliação, compreensão e prevenção dos efeitos adversos ou quaisquer problemas relacionados a medicamentos.

ainda compreender essas representações enquanto produto das relações entre significados, socialmente construídos, em torno dessa categoria de profissionais de saúde e da relação que este estabelece com a sociedade e seu aparelho de formação profissional.