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4. Farmacêuticos, formação acadêmica e mercado de trabalho na Bahia

4.3.3 BAHIAFARMA: Uma história que se impõe

Durante a fase de produção de dados o tema relacionado a Bahiafarma foi recorrente nas atas analisadas e também nas entrevistas, exigindo, portanto, uma explanação, foi sem dúvida uma história que se impôs. Embora não tenha sido possível aprofundar muitas questões sobre o tema, pretendemos trazer algumas considerações que julgamos importante sobre a Bahiafarma e que ajudam na compreensão do ‘lugar’ dos medicamentos na história dos farmacêuticos da Bahia.

A Bahiafarma foi a empresa farmacêutica da Bahia, vinculada à Secretaria de Saúde do Estado. Foi constituída em 23 de outubro de 1980 em conseqüência da autorização emitida em Lei delegada n° 10 de 4 de novembro do mesmo ano, dotada de

personalidade jurídica de direito privado sob forma de sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Seu objetivo social discriminado era vinculado à industrialização e comercialização de produtos químico-farmacêuticos que atendessem prioritariamente à população de baixa renda e realização de pesquisas no campo farmacêutico, à formação de técnicos para atuar na indústria e realizar a fiscalização e o controle dos fármacos adquiridos através da área de saúde do Estado (Arquivo do MS).

Essa seria, portanto, a atividade fim dessa indústria que, de fato, durante o tempo de sua existência serviu a esses propósitos até que em maio do ano de 1999, foi extinta no governo de César Borges, através de decreto governamental. Inicialmente, tentou-se a privatização da empresa o que não se efetivou, pois nenhum interessado compareceu ao leilão, encerrando um capítulo na história dos farmacêuticos da Bahia que vai ser retomado em outro contexto político, no ano de 2006, época do atual governo de Jaques Wagner (SANTOS 2003).

As razões para a extinção ainda são contraditórias, mas gostaríamos de destacar o significado desse evento para a categoria farmacêutica no que tange aos profissionais e às suas instituições. A participação do CRF-4 se deu desde o evento da criação e inauguração da Bahiafarma, contudo não se observou uma relação mais expressiva nem com essa entidade, nem com a Faculdade de Farmácia.

Encontramos alguns relatos nas atas mostrando que a relação do CRF-4 com a Bahiafarma era sempre representativa da categoria em eventos, mas que sua participação tinha mais um cunho representativo da entidade, ou seja, sua presença tinha o objetivo de garantir assento num espaço de atuação profissional dos farmacêuticos, no entanto, a participação nas decisões políticas de indicação de cargos, definições técnicas sobre a empresa, não surgiu em nenhum relato como observado abaixo.

“Drº Valdevir (Seixas Dourado) colocou à disposição o seu cargo de Conselheiro da BAHIAFARMA, acrescentando que D. Eulália dispõe de uma pasta sobre o assunto e esclarecendo que a BAHIAFARMA funcionará no C.I.A.(referência ao Centro Industrial de Aratu), a partir de Maio, com produção inicial de comprimidos.” (Reunião plenária de 28 de janeiro de 1982)

“Está prevista para o dia 31 de Maio de 1982 a inauguração da Bahiafarma, 1º etapa, com início imediato de produção de soluções e líquidos não injetáveis.” (Reunião plenária de 16/03/1982)

“A BAHIAFARMA enviou ofício convidando para uma reunião no dia 14/07/1982, comunicando que a inauguração será no dia 04 de Setembro.” (20/07/1982)

“Em reunião na BAHIAFARMA, foi proposta a substituição de um representante do CRF-4, por um representante da Faculdade de Farmácia – Departamento de Farmacologia e de Cosméticos. O Dr. Nilmar informou que até aquele momento, desconhecia a decisão tomada, não tendo recebido nenhum comunicado oficial”. (Ata de reunião plenária de 18/10/1983). Encontramos um único relato na reunião plenária sobre uma das reuniões do Conselho Diretor da Bahiafarma. Diferentemente de outras citações a respeito da Bahiafarma, essa mostra a discussão técnica sobre o funcionamento de um dos laboratórios em conjunto com a Faculdade de Farmácia o que demonstra que em algum momento se propôs a participação da Faculdade de farmácia na produção de medicamentos dessa empresa. Não encontramos nenhum outro fato descrito nas atas sobre a efetivação desse convênio.

“Dr. Wilson informou que no dia 26 de agosto havia se realizado uma reunião na BAHIAFARMA onde foram debatidos os seguintes assuntos: situação atual de um terreno, de propriedade daquela empresa, atraso de cotas dos cotistas, convênio com a Faculdade de Farmácia da UFBA, para a produção de antídotos, pomadas e injetáveis de pequeno volume. Foi ainda apresentado o balanço de junho e julho de 1983. Dr. Píton esclareceu que o convênio realizado com os Departamentos I e II (Controle de Qualidade) daquela unidade. A BAHIAFARMA atuaria como intermediário, fornecendo os insumos. Seriam utilizados os equipamentos tanto da Faculdade de Farmácia, quanto da BAHIAFARMA. O Dr. Nilmar acrescentou que a BAHIAFARMA não possui as máquinas para pomadas e injetáveis de pequeno volume, existentes, entretanto, na Faculdade de Farmácia. Por este motivo, propôs aos técnicos daquela empresa que utilizassem as máquinas desta, beneficiando a ambos. A empresa aumentaria sua linha de produção e a Faculdade teria a oportunidade de aprender na prática, a fabricação destes medicamentos. O Dr. Wilson falou que foi discutia ainda na reunião, a viabilização da produção de soros e dermossaneantes , além de um possível convênio com o IMUNOLAB, para desenvolver pesquisa no campo da Imunologia, principalmente, no que se refere a anti-alérgicos. (Ata de reunião plenária de 28/07/1983).

Os relatos, no entanto, dos farmacêuticos entrevistados apresentam um outro lado menos participativo da Faculdade de Farmácia nas decisões e deliberações do Conselho gestor da Bahiafarma. Encontramos a descrição de uma Faculdade pouco participativa e que não trazia para as reuniões do departamento de medicamentos as

questões da empresa, nem mesmo daquelas pertinentes à formação de profissionais para ocupar esse mercado.

A relação da Faculdade de Farmácia com a Bahiafarma não demonstrava uma influência política forte e isso parecia estar relacionado à fraca autonomia técnica da escola com relação às questões da produção de medicamentos. Como discutimos anteriormente, isso poderia ter relação com a competência técnica dos professores da área somada à própria divisão interna do departamento que prejudicou o fortalecimento da área dos medicamentos na Faculdade de Farmácia.

Tudo isso pode ter cooperado para a pequena influência política da Faculdade de Farmácia na Bahiafarma, ou seja, a instituição responsável pela formação dos farmacêuticos que poderiam atuar na empresa, não se destacou ao ponto de conquistar uma influencia política na instituição. Notemos o fragmento a seguir:

“... esse Departamento de Farmácia Tecnológica e Administrativa, ele tinha um assento no Conselho Administrativo da Bahiafarma. E era, assim, eleito por um ano. E era assim “olha, vai ser fulano de tal, vai ser não sei o quê, vai ser não sei o quê”. Como eu não tinha nada a ver com a história, eu aceitava, está dizendo que é, é. Mas daí a pouco, você começa ver as coisas, você começa a se inteirar. Aí é que é o parênteses. Na realidade, a pessoa que ia lá... não sei se levava ou não levava. Os anseios do curso quando precisou fazer estágio lá, era assim, um professor, uma professora que ia lá na Bahiafarma, e que às vezes eu acompanhava, era Professora Conceição. Conceição Ferreira. E, então, ela achava, dava estágio, conseguir estágio, etc, e às vezes eu participava disso também. Mas, esse conselho administrativo do qual tinha um professor, tinha assento. Se trouxe, não sei. Agora, o que eu sei, depois eu vim entender, porque é que todo mundo queria “esse ano é meu, esse ano... não, se o ano continuar comigo, esse ano não sei o quê lá”, é que essas reuniões, elas eram mensais. E o Getom (referencia a remuneração por participação), ele era um salário mínimo. Então, era mais um salário mínimo agregado ao vencimento do... por isso, a plebe nunca teve assento. (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009)

A respeito da formação dos estudantes o que se percebia era que os que se habilitavam na área de indústria farmacêutica tinham boa qualificação, a ponto mesmo de conseguir se inserir no mercado de trabalho restrito das indústrias, o que significava atuar nesse mercado em outros estados.

“Mas, olhe só. Até que a Bahiafarma existia, os estudantes de Indústria, eles tinham possibilidade de fazer estágio. E era muito interessante o estágio lá, por que dava-se um conhecimento muito grande. E os profissionais eram muito bem capacitados, gabaritados. Todos vinham ou de fora, ou daqui. eles eram encaminhados pra São Paulo, muito bem treinados, né? E, os estudantes tinham um excelente estágio lá na Bahiafarma, mas poucos, eu acho, que se formavam ,tinham condições de ficar lá. Tanto que eu sei mais de gente que saiu daqui, formado e foi pra FURP, e conseguiu trabalho lá. Alguns saiam daqui e foram para a BioBrás, lá, em Minas, a partir do momento que o estudante se disponibilizava a sair, a procurar outros caminhos. Se era a mesma parte de indústria que ele estava a fim, ele era bem sucedido fora. Era bem

sucedido. (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009)

Interessante notar que a qualificação obtida na habilitação da indústria na época da Bahiafarma conferiu qualificação para atuar em outros eixos do mercado de trabalho, a exemplo da Farmácia Hospitalar onde algumas competências para a produção de medicamentos eram requeridas do farmacêutico. Com a extinção do único campo de trabalho disponível, os farmacêuticos vão migrar para a Farmácia Magistral, um conceito de farmácia que vem se fortalecendo desde a década de 1990 e que apresenta características bem particulares e com muitas diferenças do conceito de farmácia comercial que utilizamos ao longo desse trabalho.

Após a extinção da Bahiafarma esse processo de formação ficou bem comprometido, pois não havia nenhum outro campo de estágio na Bahia que pudesse formar o farmacêutico com essa qualificação. Muitas vezes os poucos estudantes da habilitação em indústria iam estagiar em indústrias que não possuíam característica de produção de medicamentos como observaremos a seguir:

“Teve até uma época, que até o estudante de Indústria, ele tinha até possibilidade com a Bahiafarma. Ele tinha como fazer estágio, ele tinha até campo de trabalho. E vários estudantes ainda iam pra São Paulo, iam tentar São Paulo, e aqueles que retornavam nas férias, eu sei que sempre se deram muito bem. Os de Indústria. Porque eles vinham conversar comigo, porque era professora de Indústria. Mas era assim, uma quantidade mínima de estudantes. Teve um semestre em que eu tive apenas um estudante. Então, eram muito poucos os estudantes. E eles tinham assim, a maior ojeriza, porque eles queriam estar no top, que era Análises Clínicas. E ainda mais, quando Bahiafarma fechou, aí foi outra tragédia. Porque além de falta de estágio, campo de trabalho? Pra onde é que você iria? E nem assim alimentos foi pra frente... E, então, como é que ficou esse profissional? Eram pouquíssimos, pouquíssimos, sem possibilidade de estágio. Então, ás vezes, eles ia fazer um estágio em Feira de Santana, que era numa indústria de ‘penso’... me parece de algodão de... de seringa, alguma coisa assim, de ‘penso’ farmacêutico, acho que eles chamam isso? [...] E na realidade, o que é que acontece? Foi acabando, foi acabando, até que teve uma providência também, porque essa eu participei, é que não deveria mais haver divisão no vestibular. Aí se juntou tudo. Está certo? E a classificação era pela média. Aí, todo mundo que tinha a média alta, ia pra Análises Clínicas, e os que tinham média baixa... não melhorou nada. Ficou igual (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009).

A condição de dificuldade de formar os farmacêuticos dessa área levou a uma natural diminuição do número de estudantes que pudessem se interessar nessa área. A distorção na procura de vagas ocorria no próprio vestibular que já separava os estudantes que iriam se graduar nas diferentes habilitações e conseqüentemente a concorrência para a área de indústria era menor. A Universidade procurou posteriormente corrigir essa distorção fazendo a separação durante a graduação, o que

fazia com que os estudantes com maiores notas fizessem a sua opção pela habilitação e como essa não era uma área preferida, a habilitação em indústria durante um tempo incorporou, em sua grande maioria, os estudantes com menor escore de notas.

No período de fechamento da Bahiafarma, a Faculdade de Farmácia novamente se posicionou de modo tímido:

“Uma das coisas que eu sinto é que a universidade... a faculdade, ela não deu muita importância na hora que a Bahiafarma fechou. Eu sei que a deputada, eu acho que ela era estadual, Alice Portugal, trabalhou bastante para isso. Eu já não estava mais na UFBA, quando a Bahiafarma fechou, então eu só via notícias e fotos. Mas eu não lembro de ter visto nada, nem uma nota contundente da Faculdade de Farmácia, com o fechamento da Bahiafarma. Se teve, eu perdi. Apesar de que tem uma coisa, desde há muito tempo, desde que eu me conheço por gente, eu sempre li jornal. E jornal pra ficar com a mão suja. Então, eu não lembro. Eu lembro sim, de ver faixa da Deputada, que era ainda estadual, Alice Portugal, lembro que ela fez algumas... se a faculdade entrou, ela entrou timidamente, pois não lembro nada. E eu já estava fora, então não participei. Mas tanto que, o espolio da Bahiafarma, ficou pra UEFS. Foi um investimento tão grande que foi feito,e aí fecharam... da maneira que foi fechado. Porque tudo ficou perdido. Isso aí eu sei que...o equipamentos, todos os equipamentos necessários pra fazer a parte de injetáveis, eles estavam encaixotados. E continuam encaixotados até hoje. Se os pregos enferrujarem, algum pedaço de madeira caiu, não sei. Mas estavam tudo encaixotado, as informações que a gente obteve lá pela UEFS. Então imagine o investimento que foi do dinheiro nosso.” (Professora Edesina Aguiar. Entrevista realizada em 20 de dezembro de 2009)

O sentimento geral dos farmacêuticos a respeito da curta existência da Bahiafarma foi desde uma ‘alegria’ pelo campo de trabalho que surgiu para os farmacêuticos até um sentimento de ‘tristeza’ pelo evento do fechamento da Bahiafarma. O que percebemos é que o fato sempre se relacionava com a redução do mercado de trabalho para os farmacêuticos como podemos notar no discurso a seguir:

“... quando a gente foi fazer Assistência Farmacêutica, a Bahiafarma já estava fechada. Vários movimentos foram feitos. Quando a Bahiafarma foi criada, foi assim, pra nós, Farmacêuticos, um campo de trabalho aberto, alegria geral. Muita gente que foi pra lá, que fazia indústria. Então, nós já tínhamos o curso de indústria, colegas mesmo meus, de época, como Jorge. Que hoje é uma pessoa doente, ele foi abalado com essa perda desse emprego. Afastado. O nome dele é Jorge, esqueci o sobrenome, ele mora na cidade baixa. Ele foi para o Rio de Janeiro, foram fazer curso de atualização, dentro da indústria, da produção. Veio muita gente de fora. Conheci muitas pessoas dentro da Bahiafarma. E Professor Carlos Alberto, não o Fonseca, o outro, acho que aquele está na Sesab e Carlos Alberto, acho que era o chefe da produção. E vieram algumas pessoas pra aí... e quando a gente pensou em desenvolver, inclusive a questão tuberculostático, que a gente não tinha problema nenhum aqui no estado, porque era tudo produzido pela Bahiafarma... o elenco básico de medicamentos que era fornecido pra Rede Pública, era pela Bahiafarma. O que aconteceu, é que se houve, se caiu no vermelho, não foi também questão, não acredito que seja só questão governamental, provocou no poder da decisão de fechar. O que se sabe também, é que fechava sempre no fim do ano, muito no vermelho. Não sei se era aí a questão gerencial administrativa, não posso, não tenho fundamentação assim.” (Ademarisa Fontes. Entrevista realizada em 5 de agosto de 2008)

A extinção da Bahiafarma sempre ficou obscurecida para a maioria dos farmacêuticos. Levantou-se a possibilidade de problemas de estrutura, orçamentários e financeiros, mas a questão nunca ficou esclarecida por completo para a categoria. Sobre estrutura e condições sanitárias para funcionamento, reconhecia-se a indústria tinha plena condição de funcionamento dentro da legislação sanitária que vigorava como foi colocado a seguir:

“E também, no período da Bahiafarma, que eu não posso deixar de registrar. Que na época, era a época da CEME, a Bahiafarma era uma, era quem fazia os medicamentos da CEME. Tivemos a oportunidade de trabalhar na melhoria da condição técnica de trabalho da Bahiafarma. Embora fossem ambos órgãos públicos, mas nós tivemos uma intervenção na Bahiafarma, inclusive com o convite de pessoas do Ministério da Saúde, para nós fazermos as inspeções da Bahiafarma... a Bahiafarma tinha áreas extremamente boas, e áreas que precisavam de serem revistas. Eu, particularmente, tive a oportunidade de ir como técnica na Bahiafarma, algumas poucas vezes. Porque, era na época em que eu fiquei assim, mais na área gerencial. Mas tinha áreas muito boas. [...] Eu sei que foi uma tristeza geral. Isso sim, isso foi. Eu me lembro da lá, do todo farmacêutico ter se lastimado da situação. Os detalhes, eu realmente não me lembro. Mas não me lembro mesmo... Foi muito triste que nós tivéssemos perdido esse mercado baiano. (Entrevista com Tônia Falcão, realizada em 29 de agosto de 2008)

A questão da Bahiafarma tem implicações muito importantes na história dos farmacêuticos da Bahia, mas também para a própria história econômica do Estado, tendo em vista que esse importante eixo da economia não avançou e as questões reais que levaram à involução dessa área merecem ser melhor investigadas. Ressaltamos que a posição da Faculdade de Farmácia de permanecer numa postura mais discreta teve conseqüências nesse processo e esse evento mesmo com as mobilizações da categoria, que utilizou a influência de seus representantes na tentativa de reverter a desativação da Bahiafarma não alcançou êxito, demonstrando que alguns desdobramentos devem ser melhor pesquisados.

5. OS FARMACÊUTICOS E SUA RELAÇÃO COM O COMÉRCIO