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Se, de um lado, é importante considerar a leitura do texto como um todo, observar variações de contexto e de condição de produção para poder ter uma visão mais global do conteúdo, de outro, há também situações em que a otimização do processo se torna essencial. Como afirma Kay,

O mundo está precisando muito de tradutores [...] O número de pares de idiomas entre os quais devem ser feitas traduções e o número e os tipos de documentos envolvidos estão aumentando constantemente. Não há dinheiro suficiente para investir na profissão com o status que ela certamente merece e que atrairia mais pessoas para ela. Porém, temos sorte de sermos filhos da era da computação e, por isso, é aos computadores que naturalmente recorremos. Um computador é um dispositivo que pode ser usado para aumentar a produtividade humana. Se usado corretamente, ele não desumaniza, impondo sua própria marca orwelliana aos produtos de natureza humana e à dignidade do trabalho humano. Porém, ao assumirem aquilo que é mecânico e rotineiro, os computadores libertam os seres humanos para fazerem aquilo que é essencialmente humano. A tradução é uma arte refinada e exigente, mas há muito de mecânico e rotineiro nela e, se essas partes forem feitas por uma máquina, a produtividade do tradutor não só será ampliada, como seu trabalho se tornará mais recompensador, mais empolgante, mais humano. Temos certeza que devemos olhar para o computador. De fato, se a necessidade de tradução é tão grande quanto se diz, o computador é nossa única esperança. (KAY, 1980, p.01).55

Dando um exemplo prático para ilustrar as afirmações de Kay, podemos considerar as repetições de números em gráficos e tabelas. Alguns textos podem trazer muitos números repetidos que não exigem um olhar humano detido toda vez que aparecem em uma tabela, por exemplo. Em situações em que esses números inteiros aparecem isolados, consideramos bastante útil reaproveitar os registros de memória economizando tempo de digitação do tradutor e diminuindo possíveis falhas ou imprecisões humanas, como inversões de dígitos.

55 The world is badly in need of translators [...] The number of pairs of languages between which translations

must be made and the number and types of documents involved is constantly increasing. There is not enough money to invest the profession with the status that would attract more people to it and that it certainly deserves. But we are fortunate to be children of the age of computers and it is to them that we naturally turn. A computer is a device that can be used to magnify human productivity. Properly used, it does not dehumanize by imposing its own Orwellian stamp on the products of the human spirit and the dignity of human labor but, by taking over what is mechanical and routine, it frees human beings for what is essentially human. Translation is a fine and exacting art, but there is much about it that is mechanical and routine and, if this was given over to a machine, the productivity of the translator would not only be magnified but his work would become more rewarding, more exciting, more human. It is altogether right that we should look to the computer. Indeed, if the need for translation is as great as it is said to be, the computer is our only hope.

Logo, concordamos com Kay que a máquina deve assumir aquilo que é mecânico no texto, pois isso sim faz com que o tradutor ganhe tempo em seu trabalho sem prejudicar a precisão e a adequação ao contexto e sem tomar tempo do profissional com a digitação de segmentos nos quais não haverá necessidade de intervenção.

Abaixo vemos um exemplo de texto em que aparecem diversos segmentos com números isolados, ilustrando um caso adequado para reaproveitamento de memória sem qualquer remuneração por releitura, pois claramente não haverá necessidade de alteração na tradução. Aproveitamentos em ocorrências como essas podem fazer com que um único tradutor dê conta de um projeto com um volume de palavras em um prazo que, sem os aproveitamentos, seria impossível de ser cumprido. Sendo assim, fazendo um reaproveitamento que consideramos pertinente por não tomar o tempo do tradutor com conferências nem oferecer riscos de inadequações e imprecisões para o consumidor da tradução, concordamos com Kay que supriremos em parte a falta de profissionais que deem conta do volume de tradução que o mercado demanda.

Fig. 25: Captura de tela – Segmentos com números no MemoQ

Neste exemplo, vemos um texto sendo traduzido usando a CAT Tool MemoQ. Aqui, há uma sequência de números inteiros e símbolos de porcentagem (110%, 52%, 48%, -10%, - 19%) que não devem ser alterados na tradução, logo, devem ser copiados exatamente como estão no texto original. Caso eles já tenham aparecido isoladamente em projetos anteriores ou

caso apareçam mais adiante nesse mesmo texto, sua ocorrência já estará salva na memória de tradução e será replicada automaticamente no documento, evitando que o tradutor precise digitar diversas vezes o mesmo número.

Porém, diferentemente das repetições de números inteiros, de algumas siglas (ou acrônimos) ou de dados que geralmente não mudam, como a tradução de nomes de países, por exemplo, há diversas situações no decorrer de um trabalho que exigem maior reflexão. Além disso, requerem que sejam levados em consideração aspectos culturais, gramaticais e de contexto específico, algo muito maior do que a pura comparação entre palavras, trechos e segmentos idênticos ou similares. Em situações como essas, defendemos que o tradutor deve dedicar tempo à leitura de todos os segmentos do texto (inclusive das correspondências 100%) e, consequentemente, receber uma remuneração justa pelo tempo dedicado a essas leituras, pois são elas que garantirão a coesão e a coerência das partes novas da tradução com os aproveitamentos de memória. Além disso, a partir dessas leituras, o tradutor poderá identificar imprecisões na análise da CAT Tool, valorizando o contexto específico e as especificidades de cada novo projeto tradutório, evitando que o texto pronto fique truncado, apresente erros ou seja de difícil leitura para o consumidor final.

Portanto, é possível afirmar que os softwares aumentam a produtividade nas repetições simples, porém é preciso ponderar a que custo a produção de textos traduzidos tem sido otimizada e se tal custo vale a pena não somente em termos financeiros, mas também considerando a qualidade final do produto traduzido. Kay finaliza sua fala afirmando que se a demanda por tradução é, de fato, tão grande quanto se diz, o computador seria a única esperança de darmos conta de tamanho volume. No entanto, em nenhum momento, o autor pondera se os trechos que ele classifica como “mecânicos” e “rotineiros” são, de fato, realmente passíveis de automatização, sem nunca haver qualquer necessidade de releitura deles em busca de contexto para a tradução dos trechos que ele não considera “essencialmente humanos”. Sem uma leitura prévia, não haveria garantias de que somente o computador resolveria os problemas apontados por Kay.

Pensando ainda em siglas e números, nos lembramos, por exemplo, que há acrônimos traduzíveis e outros não traduzíveis em português. Há ainda siglas idênticas, porém usadas em contextos diferentes, podendo ser traduzidas ou não. E, em casos assim, o aproveitamento automático da memória, baseado simplesmente na semelhança entre o novo segmento a ser traduzido e um segmento já salvo na memória, pode causar imprecisões.

Em contexto de informática, por exemplo, convencionou-se o uso do termo “protocolo SMTP” também em português, mesmo esse acrônimo sendo originado de um termo em inglês (Simple Mail Transfer Protocol). No entanto, quando usado por extenso, o termo normalmente é traduzido como “Protocolo Simples de Transferência de E-mail”, logo, o tradutor precisa avaliar as circunstâncias em que a sigla aparecerá e será mantida como no original e as circunstâncias em que haverá a necessidade da tradução. O mesmo acontece com o termo “Memória RAM”, sendo o acrônimo originado do termo “Random Access Memory”, que normalmente é traduzido como “Memória de Acesso Aleatório”. FTP (File Transfer Protocol) é outro exemplo de acrônimo que não deve ser modificado, mas que tem sua definição traduzida. Nesse caso, o mesmo acrônimo também pode ter usos distintos dentro de um mesmo ramo da tradução, isso porque FTP também pode significar “Free Trial Period” e aparecer em situações em que somente o contexto poderá indicar se se trata de um “Protocolo de Transferência de Arquivos” ou de um “Período de avaliação gratuita” de um software, por exemplo.

Já siglas como R&D (Research and development) e IT (Information Technology) são normalmente traduzidas para o português como P&D (Pesquisa e desenvolvimento) e TI (Tecnologia da Informação), respectivamente. No entanto, o acrônimo R&D pode também significar “Receiving and Departure” em contextos de transporte e, nesse caso, traduzir o acrônimo como P&D confundiria os leitores do texto final. O mesmo acontece com IT que, mesmo em contextos de informática, pode se referir a coisas distintas, como “Innovative Technology”. Outro exemplo é “VPN”, que pode ser “Virtual Private Network” ou “Virtual Page Number”, ambos em contexto de informática. Nesses casos, caberia uma análise e uma escolha consciente do tradutor para evitar ambiguidades no texto decidindo, inclusive, se deve manter o segmento em formato de acrônimo ou simplesmente traduzi-lo por completo, para que o leitor tenha a clareza de que se trata de coisas distintas.

Trazendo outros dois exemplos da importância de verificar as siglas antes de replicá- las automaticamente, consideramos primeiramente o termo E&OE, bastante recorrente em textos de contexto financeiro. Lembrando que o acrônimo significa, em inglês, “Errors and Omissions Excepted” consideramos relevante que o tradutor observe se se trata de um contexto financeiro e certifique-se de utilizar o acrônimo como ele normalmente é conhecido nesse mesmo contexto em português: EOE (salvo erro ou omissão). Apesar da não tradução do acrônimo, ele aparece normalmente em português sem o símbolo “&”. Logo, por se tratar de um caso com particularidades em seu uso, não é aconselhável que esse acrônimo seja

replicado automaticamente, pois se usado de outra maneira, poderá ficar inadequado àquilo que os leitores de textos de finanças em português estão acostumados a ver.

Outro exemplo com acrônimos é “ROM”. O termo é bastante recorrente em textos da área da informática e normalmente associado a “Read-Only Memory”, porém, há situações em que o acrônimo “ROM” pode aparecer em textos dessa mesma área nos quais ele apresenta um sentido diferente. Nesse caso, não poderá ser mantido dessa forma na tradução para o português, pois essa omissão prejudicará o entendimento do texto. “ROM” pode estar se referindo a “Random Oracle Model”, termo usado em contextos de criptografia de dados e conhecido no Brasil como “modelo de oráculo randômico”, normalmente não utilizado em formato de acrônimo em português. “ROM” também pode se referir ao “Remote Operations Manager” em contextos de software, podendo ser traduzido como “Gerente de Operações Remotas”, porém normalmente é mantido em inglês. Em casos assim, se o reaproveitamento de memória for feito somente de forma automática, considerando que os segmentos isolados sejam idênticos, perderemos em qualidade no resultado final da tradução. No entanto, um tradutor profissional rapidamente perceberá – lendo o contexto – que há diferenças entre esses acrônimos, logo se o contexto falar em “Read-Only Memory” o texto em português usará “ROM” normalmente, agora, se o contexto for sobre “oráculo randômico”, caberá ao tradutor adequar o segmento àquilo que é usual nesse tipo de contexto em português.

Esses são pequenos exemplos rotineiros nos quais notamos que também em situações aparentemente mecânicas pode haver a necessidade de uma releitura feita pelo tradutor para que não ocorram erros no texto final. Agora, usando um exemplo fictício, propomos um olhar prático sobre como os acrônimos podem ser assumidos de forma incorreta se não houver uma análise de contexto dos aproveitamentos 100%. Abaixo observamos o texto produzido no Microsoft Word.

Fig. 26: Captura de tela – Exemplo de texto com acrônimos

Na figura abaixo, vemos o mesmo texto agora sendo trabalhado em uma CAT Tool que possui o recurso de aproveitamento de memória.

Nesta Figura 27, percebemos que a segmentação feita pela CAT Tool isola os acrônimos “RAM” e “FTP”, pois eles aparecem logo após dois-pontos ou isolados pelo ponto final. Em casos como esse, os acrônimos ficam descolados do seu contexto e podem facilmente ser substituídos automaticamente por uma ocorrência idêntica na memória. Nesse caso, suponhamos que a memória utilizada seja da área da tecnologia da informação, logo, seu contexto estará supostamente alinhado ao contexto em que o texto na Figura 27 se enquadra. Além disso, há duas ocorrências de “RAM” que a CAT Tool sinaliza imediatamente como idênticas (conforme marcação identificada pelas setas pretas).

Para tornar nosso exemplo mais próximo das boas-práticas da tradução comercial desse tipo de texto, suponhamos que haja ainda um guia de estilo acompanhando o projeto de tradução e nele esteja definido que, sempre que houver qualquer ocorrência de um acrônimo usado em sua forma equivalente em português, essa deve ser a opção do tradutor.

Embora essas ocorrências de “RAM” sejam idênticas em seu formato, o seu conteúdo não é. Logo, seguindo o guia de estilo, a primeira ocorrência deve ser mantida como “RAM”, por ser convencionalmente usada assim em português quando se trata de uma forma de armazenamento de dados em um computador. No entanto, a segunda ocorrência de “RAM” refere-se a “Reliability, availability, and maintainability”, ou seja, “confiabilidade, disponibilidade e mantenabilidade”, termo usado para falar em avaliação de sistemas cujo acrônimo “CDM” já é utilizado no Brasil. Sendo assim, o tradutor tem por obrigação seguir o guia de estilo e traduzir a segunda ocorrência como “CDM”. Porém, como vemos logo abaixo, a memória propaga a primeira tradução automaticamente, já preenchendo o campo da tradução do segmento com a segunda ocorrência de forma exatamente igual à primeira.

Fig. 28: Captura de tela – Exemplo de texto com repetição no MemoQ

A Figura 28 mostra que, imediatamente após a confirmação da tradução no segmento 5, o segmento 8 foi preenchido automaticamente de forma idêntica ao anterior. Isso aconteceu porque, como vemos na Figura 29 abaixo, a memória do projeto já tinha uma ocorrência idêntica. Sendo assim, a tradução salva na memória será atribuída automaticamente em todos os segmentos em que aparecer o termo “RAM” isoladamente, cabendo ao tradutor alterar manualmente cada segmento preenchido de forma inadequada.

Aqui formulamos exemplos simples e curtos, somente para ilustrar o funcionamento da ferramenta, porém, se considerarmos que existem projetos com uma quantidade gigantesca de segmentos, situações de substituição automática que prejudicam o sentido do texto ou causam inconsistências podem ocorrer mais de uma vez ao longo do projeto e passar despercebidas, caso o tradutor não acompanhe segmento a segmento o contexto daquilo que está traduzindo.

Retornando ao caso de tradução de número, vejamos uma simulação de tradução em que há números de capítulos (usados em português com o ponto como separador) e também unidades de medida (usadas em português tendo a vírgula como separador). Seguem abaixo os elementos a serem traduzidos em formato de tabela do Microsoft Excel.

Fig. 30: Captura de tela – Exemplo de números no Microsoft Excel

Olhando para a tabela na Figura 30, temos a referência visual de quais são os números de capítulos (Coluna A) e de quais são os números usados representando as unidades de medida (Coluna B). Porém, o mesmo texto, se traduzido em uma CAT Tool, aparecerá da seguinte maneira para o tradutor:

Nesse formato visto na Figura 31, por exemplo, nas linhas/segmentos 9 e 10, o tradutor precisa verificar (e isso é feito conferindo o arquivo original da tradução, no caso desse nosso exemplo, trabalhando com a tabela do Microsoft Excel aberta) qual número faz referência a que no contexto. Somente considerando todo o contexto e, em muitos casos, acompanhando o material de referência, o tradutor conseguirá adequar seu texto às regras da língua portuguesa, usando 1.0 no segmento 9 (pois esse é o Capítulo 1.0) e 1,1 milhão no segmento 10 (pois essa é a unidade de medida).

Na Figura 32 (abaixo), observando os segmentos 27 e 28, vemos que eles são idênticos, logo, a memória de tradução da CAT Tool os preencherá automaticamente também de forma idêntica. No entanto, se voltarmos ao Excel (Figura 30), veremos que o segmento 27 se refere ao “Capítulo 4.2”, já o segmento 28 se refere a “4,2 milhas”. Sendo assim, se simplesmente aceitarmos a propagação sinalizada na CAT Tool – conforme marcação em cor de laranja na Figura 32 – fatalmente teremos um erro no texto final.

Fig. 32: Captura de tela – Exemplo de repetição de números no MemoQ

Exemplos como esses acontecem porque a CAT Tool propaga automaticamente tudo o que for idêntico e já existir em sua memória. Vale ressaltar novamente que esses segmentos considerados idênticos pela CAT Tool não entram na contagem de palavras do escopo de trabalho. Sendo assim, o tradutor desse texto de exemplo receberá somente pela tradução do

segmento 27 e não pela tradução do segmento 28. No entanto, notamos que será necessário fazer uma revisão e ajustes no segmento 28, uma vez que ele, mesmo idêntico, não poderá ser mantido com o ponto, já que a regra do português exige que, nesses casos, o separador seja a vírgula.

Enquanto traduzimos esses segmentos, observamos as sugestões contidas na memória de tradução e nos deparamos com o seguinte padrão na ferramenta MemoQ:

Fig. 33: Captura de tela – Exemplo de repetição na janela de memória do MemoQ

Na captura de tela na Figura 33 vemos a memória operando na CAT Tool. Esse recorte foi feito durante a edição do segmento 28 e mostra que a ferramenta optou por preencher automaticamente este segmento (usando a opção preenchida em vermelho – primeira linha), pois considerou ter em seus arquivos uma correspondência total do conteúdo dele. Nesse caso, vale ressaltar que a CAT Tool sinaliza 101%, pois considera que há correspondência também de contexto entre o registro contido em seu banco de dados e o novo segmento a ser traduzido.

Nessa mesma visualização da memória de tradução vemos mais duas linhas. A segunda linha mostra que a CAT Tool faz aproximações e, considerando que o segmento 25 fora traduzido trocando o ponto pela vírgula e é bastante semelhante (correspondência 99%) à ocorrência no 28, esse tipo de sugestão aparece para que seja avaliado caso a caso pelo tradutor. Já a terceira linha, mostra que a CAT Tool, quando operando em traduções com linguagem de destino configurada como português (Brasil), busca alguns padrões e regras da língua que foram previamente configurados nela por seus desenvolvedores. Logo, sempre que tivermos a ocorrência de um número com separador marcado por ponto, o software sugerirá a

substituição desse ponto por uma vírgula. Porém, novamente, essas sugestões exigem revisão do tradutor.

Aqui nos detivemos a diversos exemplos para mostrar que mesmo em situações aparentemente bastante simples existem particularidades e o olhar humano pode evitar imprecisões. Logo, uma leitura mais atenta do tradutor durante o seu trabalho com o texto fará diferença na qualidade final do projeto. Sendo assim, reforçamos nossa defesa do pagamento proporcional ao tradutor pelas partes prontas ou pelos reaproveitamentos de memória.