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A autonomia da escritura e as problemáticas autorais

CAPÍTULO IV AS MÚLTIPLAS FACES DE BORGES: LEITOR, AUTOR E

5. A autonomia da escritura e as problemáticas autorais

Com a autonomia da escritura por meio da intertextualidade, a obra literária mostra-se aberta à infinitas possibilidades, que poderão atravessar o tempo e atingir novas (re) invenções em várias culturas. Tal procedimento solicita o distanciamento da figura autoral.

É segundo essa perspectiva que se compõe o célebre trabalho de Roland Barthes, A Morte do Autor, publicado em 1968. Ele ali desenvolve a tese que consiste em atribuir autonomia e voz à escritura. Não é mais o autor quem fala, mas o texto. Esse processo resulta no apagamento da identidade autoral:

(...) a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve. (BARTHES, 2012, p. 57).

Dessa forma, passa-se a pensar na escritura por ela mesma, o autor não é mais o viés central de interpretação. Aspectos biográficos, elementos externos ao texto não são relevantes para decifrar um texto, pois ele fala por si só. Barthes propõe o rompimento da voz autoral, seu afastamento da escritura para que seja concedida voz ao objeto literário.

Borges resgata as teorias barthesianas para fortalecer sua proposta de autonomia e de abertura do texto literário para a composição de novas significações. Esse processo advém das diversas culturas que contribuem para o enriquecimento intertextual da literatura, não mais centralizada no autor:

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura. (BARTHES, 2012, p. 62)

Michel Foucault, em sua célebre conferência intitulada O que é um Autor? , proferida em 1969, discute a prática autoral de forma semelhante a Roland Barthes: em sua perspectiva, quem fala é a linguagem e não o autor. O filósofo enfatiza que a marca que o autor deve deixar

no texto é a da sua ausência; o autor deve apagar-se para que a escritura possa ganhar voz. Foucault não questiona essencialmente as instâncias do desaparecimento do autor, mas busca no vazio deixado por ele as funções que lhe são atribuídas.

As perspectivas foucaultianas consideram a função dada ao nome do autor de forma distinta de um nome próprio comum, ou seja, como um mecanismo de legitimação da obra. Foucault discute também a apropriação que a identidade autoral faz de um texto, o que estabelece um sentido de posse do objeto literário, deixando-o preso ao autor. Nesse sentido, a escritura submete-se às instâncias autorais, o que origina no perigo de buscar aspectos biográficos do autor para aplicá-las na tarefa de interpretação do texto. Esse método afasta as possibilidades de busca de sentidos na escritura por si mesma.

Giorgio Agamben, em seu ensaio O Autor como Gesto (2007), a partir das discussões realizadas por Foucault, discorre sobre a perspectiva autoral por meio de um viés que consiste no gesto. Agamben analisa como gesto as funções atribuídas à prática autoral durante a historiografia literária, que são questionadas por Foucault em sua conferência. Pela perspectiva de Agamben, o vazio causado pelo desaparecimento do autor, é preenchido pelo seu gesto:

É possível, então, que o texto de 1982 contenha algo parecido com a chave de leitura da conferência sobre o autor, que a vida infame constitua de algum modo o paradigma da presença-ausência do autor na obra. Se chamarmos de gesto o que continua inexpresso em cada ato de expressão, poderíamos afirmar então que, exatamente como o infame, o autor está presente no texto apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central. (AGAMBEN, 2007, p. 59).

O gesto da teoria de Agamben pode ser conduzido para a prática intertextual, ou seja, como instância para a autonomia da escritura. Com a ausência do escritor, o seu gesto seria uma instância que permite as multiplicidades de significações a serem atribuídas à escritura, em uma cadeia infinita de leituras, sentidos e reformulações da escritura:

(...) o escritor pode apenas imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu único poder está em mesclar as escrituras, em fazê-las contrariar-se umas pelas outras, de modo que nunca se apoie em apenas uma delas; quisera ele exprimir-se, pelo menos deveria saber que a ‘coisa’ interior que tem a pretensão de ‘traduzir’ não é senão um dicionário todo composto, cujas palavras só se podem explicar através de outras palavras, e isto indefinidamente (...) sucedendo ao autor, o escriptor já não possui em si paixões, humores, sentimentos, impressões, mas esse imenso dicionário de onde retira uma escritura que não pode ter parada: a vida nunca faz outra coisa senão imitar o livro, e esse mesmo livro não é mais que um tecido de signos, imitação perdida, infinitamente recuada. (BARTHES,2012, p. 62).

Nesse sentido, no conto de Borges, Pierre Menard legitima sua identidade autoral ao preencher o vazio que acarreta no distanciamento de Miguel de Cervantes de sua obra. O conto destaca as discussões realizadas por Barthes e Foucault acerca da função atribuída ao autor: seu nome atua sobre a obra como um mecanismo de apropriação do objeto literário.

Por outro lado, Pierre Menard confere autonomia à escritura. Assim, adota a perspectiva de leitor modelo e transcende a sua função, ganhando os registros da autoria. Desse modo, a construção de novas significações e de novos sentidos é realizada em duas funções textuais por Menard: leitor e autor, em uma fuga da empiria:

Assim se desvenda o ser total da escritura: um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação: mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor. (BARTHES, 2012, p. 64).

Barthes reconhece o leitor como um receptáculo de experiências, as quais devem ser transpostas por meio de novas (re)significações, ou seja, elas devem compor elementos que alimentarão outros textos, permitindo múltiplas relações por outros leitores. Dessa forma, o texto é a materialização de todos os sentidos estabelecidos pela prática leitora. Cada leitor, dessa forma, enriquece um determinado texto que é resultado de inúmeras leituras anteriores. Esse processo compõe um grande mosaico textual de significações e sentidos.

No âmbito jurídico, a prática intertextual pode ser apreendida como conflituosa. Em 2009, foi publicado o livro El Aleph Engordado, escrito por Pablo Katchadjian, poeta e novelista argentino. A obra adiciona descrições ao texto de Jorge Luis Borges, El Aleph, publicado em 1949. Assim, o texto borgiano ganhou amplo conteúdo e dobrou o número de páginas. O feito de Katchadjian foi aclamado com louvor pelos críticos da literatura, pois sua obra consiste na prática da lição deixada por Borges com relação ao universo literário.

Por outro lado, a viúva de Borges, María Kodama, entendeu que esse tal feito consistiria em um plágio e entrou com um processo judicial contra Pablo Katchadjian, alegando que este estaria se apropriando da obra e intelectualidade de Borges e que utilizou El Aleph sem autorização. A viúva destacou no processo que também tinha a intenção de proteger e preservar a obra deixada por Borges.

Nesse sentido, a autoria parece atuar como uma instância legitimadora de uma obra, ou seja, o nome do autor exerce a função de vincular a obra a um indivíduo e "protegê-la" de publicações "ilegítimas", o que pode bloquear o processo de (re) significações que podem ser realizadas pela transtextualidade. Esse paradigma entra em conflito com os preceitos

defendidos por Borges em toda a sua carreira literária. Assim, tais processos requerem o rompimento da barreira autoral para dar lugar à autonomia da escritura.