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CAPÍTULO IV AS MÚLTIPLAS FACES DE BORGES: LEITOR, AUTOR E

2. Borges e a memória da escritura

A obra literária compreendida sob a com a perspectiva de um clássico e aberta à multiplicidade de interpretações, pode ser pensada sob a concepção de Memória. Essa abordagem permite pensar na literatura como um repositório de reminiscências textuais que adquirem novas significações, além de não permitir que essa se perca. A prática intertextual possibilita que a obra seja eternizada em diferentes épocas e culturas. A construção e preservação do cânone também é fator determinante para esse processo de difusão.

A concepção de memória em Borges aparece em um âmbito coletivo, quando se refere à literatura, pois sua construção resulta de inúmeras significações. No sentido particular, ela é assimilada como um elemento enigmático que suscita intensas reflexões, mas deslocada para a instância coletiva. Assim, “Não há memória própria nem recordação verdadeira, todo passado é incerto e impessoal.” (SCHWARTZ,2017, p.363). Essa memória pode ser um elemento obscuro, que por ser deslocada para um viés coletivo, poderá ser manipulada:

Os grandes relatos de Borges giram em torno da incerteza da recordação pessoal, da vida perdida e da experiência artificial. A chave desse universo paranoico não é a amnésia e o esquecimento, mas a manipulação da memória e da identidade. Temos a sensação de havermos nos perdido em uma rede que remete a um centro cuja única arquitetura é cruel. Nesse ponto se define a política na ficção de Borges. (SCHWARTZ, 2017, p. 364).

A memória é justamente o tema paradigmático de seu conto “Funes el Memorioso” que integra o livro Ficciones. Ireneo Funes é um jovem que possui uma grande anormalidade: não consegue apagar ou editar suas memórias. Funes consegue armazenar inúmeras recordações e mínimos detalhes, mesmo que tenha um contato breve com determinado objeto, ambiente ou situação, independentemente do tempo. Em síntese, Funes é um impressionante repositório de memórias, que se amplia a cada dia vivido pela personagem. Importante ressaltar que o emprego frequente do verbo recuerdo ─ não por acaso conjugado no presente do indicativo ─ enfatiza justamente as intensas recordações que o narrador guarda de Funes.

Funes pode ser pensado como a construção de memórias em uma perspectiva individual, e Borges enfatiza a capacidade indispensável que todo indivíduo deve possuir para controlar suas recordações ou, simplesmente, a capacidade do esquecimento. Entretanto, Funes é desprovido dessa faculdade. Para se pensar a memória sob um viés coletivo, é possível recorrer ao conto “La Biblioteca de Babel” ─ há a perspectiva da biblioteca como grande repertório de memórias coletivas que constroem a totalidade e o infinito da literatura, o que ocasiona na formação do cânone:

(...) vislumbra-se um paralelo entre a memória de um homem (em Funes, o Memorioso) e a memória dos livros (em A Biblioteca de Babel), indo ao encontro da própria citação de Borges: de que a literatura é feita de memória, ou seja, para que um livro seja escrito é necessário que ele seja pensado, imaginado e depois tornado real, é necessário que ele seja fruto da memória de um indivíduo. Porém, um indivíduo sozinho não pode lembrar-se de tudo, um indivíduo precisa ser inteligente a ponto de selecionar os registros de sua memória. Deixa-se para que os livros arquivem tudo, afinal, os livros são as memórias dos seres humanos, dos povos, das línguas, das culturas, enfim, os livros são os registros de todas as coisas imagináveis. (KLUG, 2013, pp. 86-7).

Mesmo em circunstâncias catastróficas, Funes interessa-se intensamente pela leitura, o que agrava seu problema com o armazenamento de informações: “esta memória pode, de certa forma, ser considerada não uma memória boa, visto que é uma memória de tudo, é um impedimento de pensar.” (KLUG, 2013, p. 87).

A capacidade de um armazenamento de memórias infinitas torna-se possível apenas na biblioteca. Nos moldes borgianos, tal lugar é perfeito e construído para tal finalidade, e o ser humano, em sua fragilidade, é incapaz de ter para si aspectos tão vastos como esse. Por esse

motivo, a biblioteca deve ser um instrumento para concretização e armazenamento de suas memórias:

Um indivíduo não pode ser um livro, nem uma máquina. O ser humano não pode lembrar de tudo como os livros. “Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar” (BORGES, 1969). Ireneo guardava tanta informação que isto o sufocou. Morrer de uma congestão pulmonar reforça a idéia de que a memória dos seres humanos é limitada, a memória de um indivíduo deve selecionar as lembranças, deve registrar somente informações fundamentais. (KLUG, 2013, p. 89)

No conto Pierre Menard, autor del Quijote, encenam-se as memórias que o narrador possui do falecido. Ao mesmo tempo, ele reflete sobre a tarefa inusitada de Menard, ao se recordar de seu assombro quando decide compor o “seu” Quixote. A partir das lembranças de suas recordações, o narrador realiza intensa reflexão sobre as dificuldades que a tarefa de Pierre Menard podem trazer.

Por si só, a literatura é um arquivo de inúmeras memórias. Seu vasto repertório pertence a instâncias infinitas, se considerarmos a mesma concepção de tempo adotada por Borges. Graças à intertextualidade, a memória literária é mantida viva, e os debates acerca de determinadas obras permanece ativo, enriquecendo-se de novas significações. Nesse sentido, a literatura pode ser um importante medium de registro de memórias pessoais ou coletivas. Ao se adotar a memória como baliza comum entre os contos, importa assinalar que é graças à leitura que os registros são construídos.

Pode-se atribuir à literatura a função de proporcionar o esquecimento do mundo caótico, real, onde vivemos; ou, ainda, como um mecanismo de transposição de um mundo interior á exterioridade, como é o caso de Dom Quixote, que, por meio de um esquecimento do mundo real, adota o seu locus interior como vivência de sua realidade compartilhada em instâncias coletivas:

A prática arcaica e solitária da literatura é a réplica (seria melhor dizer o universo paralelo) que Borges erige para esquecer o horror do real. A literatura reproduz as formas e os dilemas desse mundo estereotipado, mas em outro registro, em outra dimensão, como em um sonho. No mesmo sentido, a figura da memória alheia é a chave que permite a Borges definir a tradição poética e a herança cultural. Recordar com uma memória estranha é uma variante do tema do duplo, mas é também uma metáfora perfeita da experiência literária.

A leitura é a arte de construir uma memória pessoal com base em experiências e recordações alheias. As cenas dos livros lidos voltam como recordações particulares. [...] São acontecimentos entreverados no fluir da vida, experiências inesquecíveis que voltam à memória, como uma música. (SCHWARTZ, 2017, p. 364).

Ao remontar-se novamente ao contexto quixotesco, o livro como suporte para o registro das aventuras de Dom Quixote como resultado da transposição de seu mundo para a exterioridade é logo requerido. Parece existir a necessidade de registro das suas façanhas e a expansão de sua memória. Como é evidente logo no início do romance, as aventuras de Dom Quixote já estão enraizadas no imaginário popular, mas a todo momento busca-se elementos que registrem sua jornada.

A importância do livro é ressaltada quando se pensa em sua materialidade como um instrumento indispensável de registro. Nesse sentido, remonte-se novamente a Cervantes no que diz respeito à necessidade de buscar documentos que armazenem de forma concreta o que já estava enraizado no imaginário popular: as aventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote. O narrador mostra-se a todo momento atento a qualquer tipo de material que possa lhe fornecer informações sobre as aventuras do Cavaleiro da Triste Figura, pois

o imaginário está entre os livros, está nos livros, não apenas num só, em todos, no entre livros. Visto que cada livro provém de uma memória, de uma imaginação, de uma recordação, o imaginário está em todos eles, a memória está em todos eles. (KLUG,2013, p. 91).

Os primeiros registros encontrados são os documentos intitulados Anales de la Mancha. Mais adiante, são encontrados os manuscritos do historiador árabe Cide Hamete Benengeli, que impressionam pela completude de seu conteúdo. O ápice da importância atribuída à materialidade do livro como manutenção das aventuras de Dom Quixote e Sancho Pança dá-se no momento em que as personagens visualizam tais registros, além da admiração de contemplar a possibilidade de se verem eternizados.

Em Borges e em Cervantes, os livros e a biblioteca são elementos fundamentais para eternizar e inventar memórias. A cada temporalidade e a cada cultura, tais recordações são complementadas e eternizadas pela atividade transtextual. Assim, forma-se uma cadeia infinita de memória literária.