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A pluralidade de vozes narrativas e a importância da escritura

CAPITULO II A TRANSTEXTUALIDADE EM MIGUEL DE CERVANTES

5. A pluralidade de vozes narrativas e a importância da escritura

A busca por elementos que legitimem Dom Quixote como cavaleiro dá-se pelo diálogo com as novelas de cavalaria. Nesse sentido, o exercício intertextual consiste uma vez mais na relação entre realidade e ficção e com obras canônicas do gênero. A transfiguração da personagem e a construção de sua identidade ocorrem pela prática intertextual:

Puesto nombre, y tan a su gusto, a su caballo, quiso ponérsele a sí mismo, y en este pensamiento duró otros ocho días, y al cabo se vino a llamar ‘Don Quijote’; de dónde, como queda dicho, tomaron ocasión los autores de esta tan verdadera historia que sin duda se debía de llamar ‘Quijada’, y no ‘Quesada’, como otros quisieron decir.

Pero acordándose que el valeroso Amadís no sólo se había contentado con llamarse ‘Amadís’ a secas, sino que añadió el nombre de su reino y patria, por hacerla famosa, y se llamó ‘Amadís de Gaula’, así quiso, como buen caballero, añadir al suyo el nombre de la suya y llamarse ‘don Quijote de la Mancha’, con que a su parecer declaraba muy al vivo su linaje y patria, y la honraba con tomar el sobrenombre de ella. (DQ, I, p. 32).

O processo de representação feito por Dom Quixote ultrapassa os limites do que seria estabelecido pelos livros. Primeiramente, encontra nas novelas de cavalaria uma espécie de estatuto que o legitima como cavaleiro. Em suas aventuras, refere-se a diversas obras, modo de novamente autorizar suas experiências. A construção de seu imaginário fundamenta-se no seu vasto repertório oriundo da leitura intensa das novelas de cavalaria. Esse mundo imaginário é transportado para o mundo real, mas não é compartilhado em âmbito coletivo; é visualizado somente por Dom Quixote, mesmo que em alguns momentos Sancho Pança se torne cúmplice ao integrar esse mundo imaginário.

Alonso Quijano, ao assumir a identidade de cavaleiro andante e viver intensas aventuras ao incorporar o engenhoso fidalgo Dom Quixote, traz para o protagonismo a questão dos livros, e buscará responder questionamentos acerca da relação entre o mundo real e a realidade dos livros: “Leitor exemplar, o engenhoso fidalgo porá essa verdade à prova, arriscando-se a descobrir, à sua própria custa, a ambiguidade das relações entre vida e literatura.” (CANAVAGGIO, 2005, p.232). Dom Quixote parece alcançar a autenticidade que tanto busca nas novelas de cavalaria. Ao mesmo tempo, estabelece um marco nesse processo de representação, pois, como bem observa Michel Foucault,

com suas voltas e reviravoltas, as aventuras de Dom Quixote traçam o limite: nelas terminam os jogos antigos da semelhança e dos signos; nelas já se travam novas relações. (FOUCAULT, 2007, p. 63).

Transcende, pois, o aspecto representativo e rompe com as tradições literárias vigentes, em uma espécie de emancipação dos moldes que lhe seriam atribuídos. Assim, Dom Quixote é herói singular, mesmo que vinculado à escrita que lhe confere legitimidade:

O livro é menos sua existência que seu dever. Deve incessantemente consultá-lo, a fim de saber o que fazer e dizer, e quais signos dar a si próprio e aos outros para mostrar que ele é realmente da mesma natureza que o texto donde saiu. Os romances de cavalaria escreveram de uma vez por todas a prescrição de sua aventura. E cada episódio, cada decisão, cada façanha serão signos de que Dom Quixote é de fato semelhante a todos esses signos que ele decalcou.

Mas se ele quer ser-lhes semelhante é porque deve prová-los, é porque os signos (legíveis) já não são semelhantes a seres (invisíveis). Todos esses textos escritos, todos esses romances extravagantes são justamente incomparáveis: nada no mundo jamais se lhes assemelhou; sua linguagem infinita fica em suspenso, sem que nenhuma

similitude venha jamais preenchê-la; podem ser queimados todos e inteiramente, mas a figura do mundo não será por isso alterada. Assemelhando-se aos textos de que é o testemunho, o representante, o real análogo, Dom Quixote deve fornecer a demonstração e trazer a marca indubitável de que eles dizem a verdade, de que são realmente a linguagem do mundo. Compete-lhe preencher a promessa dos livros. Cabe-lhes refazer a epopeia, mas em sentido inverso: esta narrava (pretendia narrar) façanhas reais prometidas à memória; já Dom Quixote deve preencher com realidade os signos sem conteúdo da narrativa. Sua aventura será uma decifração do mundo: um percurso minucioso para recolher em toda a superfície da terra as figuras que mostram que os livros dizem a verdade. A façanha deve ser prova: consiste não em triunfar realmente- é por isso que a vitória não importa no fundo-, mas em transformar a realidade em signo. Em signo de que os signos da linguagem são realmente conformes às próprias coisas. Dom Quixote lê o mundo para demonstrar os livros. E não concede a si outras provas senão o espelhamento das semelhanças.

(...) Os rebanhos, as criadas, as estalagens tornam a ser a linguagem dos livros, na medida imperceptível em que se assemelham aos castelos, às damas e aos exércitos. Semelhança sempre frustrada, que transforma a prova buscada em irrisão e deixa indefinidamente vazia a palavra dos livros. (FOUCAULT,2007, pp. 64-5).

A escritura constitui-se, assim, em uma instância que conforma o mundo, e não o inverso; ela é capaz de suscitar verdades que são transpostas para a sua exterioridade. Em Dom Quixote, evidencia-se que a sua existência torna-se um desafio para a representação escritural, pois sua engenhosidade transcende o suporte que poderá registrar as suas façanhas. Assim, a linguagem dos livros, tida como indefinidamente “vazia”, se impõe francamente como linguagem da verdade e do mundo, e do mundo da verdade.

O mundo ilusório de Dom Quixote promove o esvaziamento da escritura, pois a realidade vivida nas novelas de cavalaria é incapaz de ser representada na experiência da personagem. Ao conquistar autonomia em sua prática de representar as novelas de cavalaria, Dom Quixote parece esgotar a escritura: inicialmente, quando o cânone das novelas de cavalaria parece não conseguir ser capaz de atender à prática da personagem, considerando a magnitude de suas aventuras e de suas virtudes heroicas; e a forma como tais façanhas alcançam ao ponto de começarem a surgir documentos escritos por figuras que se interessam por sua história, sendo os de Cide Hamete Benengeli os mais importantes. A escritura deve, então, ser composta para atender à demanda de representação de suas aventuras, o que resulta em uma inversão de papeis: Dom Quixote passa a ser elemento a ser representado.