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A incorporação de novos paratextos ─ textuais e imagéticos em Dom Quixote

CAPITULO II A TRANSTEXTUALIDADE EM MIGUEL DE CERVANTES

9. A incorporação de novos paratextos ─ textuais e imagéticos em Dom Quixote

Juntamente com a Bíblia, Dom Quixote é uma das obras mais traduzidas do mundo. Ao longo do tempo, inúmeras edições e traduções de Dom Quixote foram publicadas em todo o mundo ─comemorativas, editadas, completas, adaptações para o público infanto-juvenil, editadas, completas, entre outras. A maior parte das edições trazem diversas notas, ilustrações, prólogos, anexos e etc., com a principal função de situar e instruir o leitor.

A intenção do presente estudo não é realizar uma comparação entre essas edições, mas sublinhar a relevância da presença de paratextos inseridos em diversas edições da obra, seja por editores, seja por tradutores. No presente estudo, utilizou-se a edição de Francisco Rico, um dos maiores estudiosos do Siglo de Oro espanhol e um dos maiores especialistas de Cervantes. Suas edições são consideradas “verdadeiras enciclopédias cervantinas”, conforme destaca a crítica espanhola na ocasião de seu lançamento e de sua publicação, devido à amplitude de estudos presentes em suas edições. A edição traz um repertório de estudos: uma extensa nota complementar, com trechos de capítulos adicionais da obra; anexos contendo um extenso prólogo de Rico de estudos da obra; uma nota ao texto, que possui reproduções fotográficas de documentos escritos por Miguel de Cervantes e de páginas de Dom Quixote; outros estudos sobre a edição; uma longa biografia de Cervantes, organizada cronologicamente; observações

sobre a língua de Dom Quixote, considerando grafia, morfologia e sintaxe; orientações bibliográficas sobre estudos da obra; ilustrações contendo mapas, armadura usada por Dom Quixote, capas de algumas novelas de cavalaria, uma pintura do Quixote feita por Joaquín Ibarra em 1780; por fim, uma lista de expressões e ditos populares da época que aparecem na obra. Esse repertório pode auxiliar o leitor no entendimento mais profundo da obra.

Geralmente, a maioria das edições de Dom Quixote traz a portada, ou seja, a capa da obra como publicada em sua primeira edição, constituindo um paratexto visual, canônico, e importante documento histórico:

Fig. 1: Portada da primeira parte de Dom Quixote

Como era frecuente en la época, todos los elementos de la portada se presentan sintácticamente enlazados entre sí (‘El ingenioso hidalgo,… compuesto por…, dirigido a…, véndese…’), pero distinguidos por los tipos y tamaños (mayúsculas, cursiva, etc.).

La composición tipográfica se centra en torno a un emblema utilizado por diversos impresores, desde el siglo XV: un halcón en la mano del cazador y con la

cabeza cubierta por un capirote que se le quitará cuando llegue el momento de acometer su presa; al fondo, un león dormido con los ojos abiertos; el lema en latín (‘Tras las tinieblas espero la luz’) procede del libro de Job, XVII, 12.

El emblema es una de la varias marcas empleadas en la imprenta de Pedro Madrigal (+1593), que durante unos años (hasta 1607) estuvo regida por Juan de la Cuesta, yerno de la propietaria. El editor de la obra fue el librero y negociante Francisco de Robles, especializado en publicaciones oficiales y obras jurídicas; y fue Robles quien determinó y financió todos los aspectos del volumen, que Cuesta se limitó a confeccionar materialmente.” (RICO, 2009, p. 2).

Fig. 2: Portada da segunda parte de Dom Quixote

Cervantes, que jamás llama al protagonista ‘ingenioso caballero’, había dado al Quijote de 1615 el título de Segunda parte de don Quijote de la la Mancha (por más que, de seguir la pauta de 1605, le habría correspondido el de Quinta parte del ingenioso hidalgo…). La forma que aparece en la portada responde a razones de conveniencia editorial, por el deseo de mantener la continuidad y a la vez establecer una diferencia respecto al primer Quijote y respecto a la continuación apócrifa de Avellaneda (1614), que se presentaba como Segundo tomo del ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha, que contiene su tercera salida y es la quinta parte de sus aventuras.

En 1615, por otro lado, Juan de la Cuesta llevaba siete años huido de Madrid, pero la propietaria de la imprenta mantuvo su nombre en la denominación comercial de la casa.(RICO, 2009, p. 536).

Alguns elementos paratextuais foram incorporados às edições de Dom Quixote, ganhando status de cânone, como é o caso das ilustrações do artista francês Gustave Doré (1832-1883) que se tornaram indissociáveis da obra de Cervantes em várias edições. Seus desenhos constituem o principal registro visual do universo quixotesco. O artista representa a personagem cervantina por uma perspectiva romântica. Doré é conhecido por ser um dos desenhistas mais produtivos do século XIX. Interessado pela literatura, o artista realizou ilustrações de várias outras obras literárias, tais como Contes drolatiques, de Honoré de Balzac; Divina Commedia, de Dante Alighieri; Paradise Lost , de John Milton; o conto de Edgar Alan Poe, The Raven; além de várias cenas bíblicas e contos de fadas, como a Cinderela, O gato de Botas, Chapeuzinho Vermelho e A Bela Adormecida. Tais ilustrações contribuem para a construção de paratextos ilustrativos. Muitas vezes, é difícil pensar seu trabalho dissociado da obra cervantina. Nesse aspecto, há uma espécie de posse da obra, que permite a sua reinvenção por meio de outro suporte. Eis alguns de seus desenhos:

Na imagem, Doré procura representar não somente a imensa biblioteca de Alonso Quijano, mas a transposição do universo ficcional para o real, graças à incrível imaginação que possui, transformando-o no engenhoso fidalgo Dom Quixote. Ressalta-se, ainda, a perspectiva de leitor ativo: os livros espalhados pelo chão, Alonso Quijano empunhando uma espada enquanto lê (provavelmente em voz alta) as novelas de cavalaria. A infinidade de figuras imagéticas que o rodeiam são a representação do mundo ficcional que, habitado em seu interior, será transposto para o mundo externo e tornará real. O artista traz para o protagonismo o livro e a importância da leitura, instância central do romance cervantino: “As aventuras de D. Quixote começam, é claro, numa biblioteca e movem-se frequentemente, em pensamento ou em palavras, e mais uma vez em ação, em torno dos conteúdos dessa biblioteca; mas é igualmente notável que o mundo para o qual ele sai em excursão esteja cheio de manuscritos e impressos.” (ALTER, 1998, p. 108).

Donzelas em perigo, seres malvados, grandes batalhas travadas por cavaleiros valentes que desejam provar sua honra e valor são representados pelo artista; a grande cabeça à esquerda, que pode constituir a representação de um gigante que foi derrotado. Todo o universo dos romances de cavalaria aparece representado pelo artista por meio da imaginação de Alonso Quijano.

Na imagem que retrata a primeira saída do Quixote, ao fundo é possível perceber a busca (como na imagem anterior) de reproduzir o imaginário do cavaleiro: grandes batalhas, o reconhecimento por sua valentia e honra, auxiliar os fracos e oprimidos. Agora, Alonso Quijano é Dom Quijote: parte para viver as mais incríveis aventuras e conquistar o amor de sua amada Dulcineia. É possível associar essas imagens ao contexto vivido por Cervantes, principalmente no que se refere às batalhas pela expansão do território e da fé cristã.

Fig. 5: Dom Quixote e Sancho Pança

A imagem representa Dom Quixote e seu fiel escudeiro, Sancho Pança. Pode-se pensar que Dom Quixote fala ao seu escudeiro sobre as incríveis aventuras que os aguardam e as promessas de alcançar honra e glória com tais aventuras. Em várias passagens do romance, Sancho Pança insere-se nesse mundo imagético de Dom Quixote intensamente, tornando-o também o seu mundo.

Fig. 6: Dom Quixote e a célebre batalha dos moinhos de vento

A imagem representa a aventura dos Moinhos de Vento, um dos episódios mais famosos do Romance. Ao fundo, é possível perceber a aflição de Sancho Pança. A representação não traz figuras imagéticas de Dom Quixote como nas anteriores: Doré não representa os gigantes,

mas os próprios moinhos de vento. Nesse sentido, o artista preocupou-se em apresentar uma perspectiva verossímil ao episódio.

A obra de Cervantes tardou em ganhar ilustrações. Alguns artistas haviam composto várias ilustrações, mas nenhuma delas foi incorporada como as obras de Doré o foram. O contexto de produção das ilustrações de Doré é digno de nota: o artista decidiu viajar até a Espanha com o intuito de “encarnar” em seu trabalho a essência de Cervantes e todo o universo quixotesco. Chame-se a atenção ao aspecto heroico e à imponência da figura de Quixote nas representações de Doré pois que, no texto cervantino, a descrição de sua personagem corresponde àquela da figura de um velho louco e raquítico. Mesmo Rocinante, descrito por Cervantes como um “rocin flaco”, é apresentado como um belo cavalo alado.

Além disso, Gustave Doré é a principal influência utilizada por outros artistas para a produção de outras obras ilustrativas do Quixote. Dessa forma, Doré incorpora também a sua leitura do Quixote, enriquecendo a paratextualidade já iniciada por Miguel de Cervantes.