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2 A AUTORIA E A CONSTRUÇÃO SOCIODISCURSIVA DE SI MESMO:

2.4 UM OUTRO OLHAR: AS HIPÓTESES DE AUTORIA

2.4.4 A autoria se apoia em uma atitude exotópica

Essa discussão aponta para a última hipótese que levantamos sobre a atuação autoral: a sua propriedade exotópica. Como falamos no item 1.2.1.1, a posição exotópica do autor é o que permite a ele enxergar como o outro observa determinado fenômeno, o que ele vê quando encara outra pessoa, outro objeto ou outro “quadro” da realidade. Não se trata de sentir o que outro sente, de viver a experiência completa do outro, pois, retomando Bakhtin (2003, p. 21- 2), os sujeitos são historicamente singulares e insubstituíveis, não podendo uma pessoa ocupar o espaço de outra na existência concreta. A postura exotópica está mais próxima do que propõe a famosa expressão idiomática americana “to walk a mile in someone else’s shoes”, traduzida como “caminhar uma milha com os sapatos do outro”, uma metáfora que simboliza a necessidade da prática permanente da empatia nas relações interpessoais.

Bakhtin estende essa visão para a atividade criadora, falando sobre a relação entre autor e personagem na obra artística:

Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele (BAKHTIN, 2003, p.23). É nesse registro que joga a exotopia: na coexistência entre a visão singular do autor e a do outro (seu personagem), em que somente a perspectiva externa é capaz de dar uma visão global do sujeito observado. Lembramos que, nos termos de Amorim (2008), a atitude exotópica não se restringe ao domínio estético e deve alcançar outras esferas da cultura, como a pesquisa em Ciências Humanas e o campo jornalístico, funcionando como uma matriz norteadora da relação repórter-personagem.

Desenvolvendo essa ideia, entendemos que a postura exotópica aplicada à prática jornalística mantém o mesmo funcionamento que possui dentro da atividade estética (relação autor – personagem) e da pesquisa em Ciências Humanas (relação pesquisador – sujeito pesquisado). Significa dizer que existem, no texto jornalístico, pelo menos duas consciências distintas: a do jornalista e a de sua fonte, as quais não se fundem e mantêm “o caráter de diálogo, revelando sempre as diferenças e a tensão entre elas” (AMORIM, 2008, p. 100). Se é assim, é somente por meio de sua posição exterior ao que retrata, materializada em uma narrativa exotópica, que o jornalista consegue “emprestar um suplemento de visão” (AMORIM, 2008, p. 101) à sua fonte, dando a ela uma imagem acabada e fixando, ainda que precariamente, certa visão sobre aquela pessoa ou fenômeno da realidade.

É importante dizer que, ainda que tenha consciência de sua posição exotópica em relação ao personagem, o jornalista-autor precisará trabalhar o tempo todo um difícil e frágil equilíbrio entre as suas singularidades e as de suas fontes, de forma que ele exponha seus pontos de vista, a sua visão, mas também – e principalmente - seja capaz de mostrar o outro em suas complexidades, sem deturpar suas ideias, nem espetacularizar suas vidas.

No embate entre as vozes, a tendência é que a voz do autor, da pessoa que fala, se sobreponha às dos personagens, as pessoas sobre quem se fala. Instaura-se, assim, um regime de visibilidades que frequentemente reproduz as hierarquias existentes no mundo extradiscursivo, no “mundo da vida”: quem tem o direito/poder de dizer o faz, vira sujeito e invade a esfera do outro com seu discurso; quem não, vira objeto de fala, é falado, em voz passiva.

Essa tensão entre autor e personagem se coloca como um dos aspectos mais delicados para se pensar em uma “ética do autor” na contemporaneidade, porque conserva desigualdades, silencia vozes dissonantes e endossa formatos históricos de representação dos sujeitos nas narrativas midiáticas. Na maioria dos casos, estes não são representados discursivamente como indivíduos únicos, complexos e insubstituíveis (independentemente de sua vulnerabilidade financeira, afetiva ou social), mas, sim, como meras extensões ou instrumentos de comprovação do ponto de vista do autor. Também são comumente representados na forma dos já citados estereótipos, dos modelos cristalizados de representação discursiva do sujeito pelas vozes sociais.

Esse desafio de “orquestrar as vozes” em seu discurso torna urgente a prática da exotopia em qualquer exercício autoral que se pretenda ético e responsável. É nessa pluralidade de egos, nesse painel de subjetividades que o autor delineia o seu espaço e o do outro no mundo, na vivência coletiva. Reflete, também, sobre outras subjetividades possíveis, dissidentes, não hegemônicas. Isso porque

o modo como eu vivencio o eu do outro difere inteiramente do modo como vivencio meu próprio eu; isso entra na categoria do outro como elemento integrante, e essa diferença tem importância fundamental tanto para estética quanto para a ética [...] Para o ponto de vista estético é essencial o seguinte: para mim, eu sou o sujeito de qualquer espécie de ativismo: do ativismo da visão, da audição, do tato, do pensamento, do sentir etc.; é como se eu partisse de dentro de mim nos meus vivenciamentos e me direcionasse em um sentido adiante de mim, para o mundo, para o objeto (BAKHTIN, 2003, p. 36, grifo do autor).

Esse direcionamento para o outro exige uma abordagem exotópica e que entenda a alteridade – em poucas palavras, “o horizonte intersubjetivo que funda a relação, qual seja, do eu para mim, do eu para o outro e do outro para mim” (CORDEIRO, 2017, p. 27, grifos da autora) - como um traço fundamental para a construção sociodiscursiva de si mesmo. Sabendo disso, é preciso enxergar esse outro com olhos “estrangeiros”, porém abertos a uma troca efetiva, a um encontro no sentido primeiro do termo, o de confluência, de descobrimento de algo ou alguém.

3 A REPORTAGEM DE AUTOR: GÊNERO, CARACTERÍSTICAS E