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2 A AUTORIA E A CONSTRUÇÃO SOCIODISCURSIVA DE SI MESMO:

2.3 AUTORIA E DISCURSO: ALGUNS ENTRECRUZAMENTOS

2.3.2 O autor na atividade estética: a concepção bakhtiniana de autoria

2.3.2.1 A exotopia na criação autoral

Como vimos, para Bakhtin (2003), o autor se constitui dentro da obra artística a partir de sua relação criadora com a personagem, conferindo-lhe certo acabamento e construindo sua imagem externa. Isso dialoga com o princípio da exotopia, que se refere a “um lugar exterior” (AMORIM, 2008, p. 96, grifo da autora), a um olhar externo sobre determinada pessoa ou objeto. Seguindo essa noção, a atuação autoral está ligada a “uma relação de uma tensa distância do autor em relação a todos os elementos da personagem, de uma distância no

espaço, no tempo, nos valores e nos sentidos, que permite abarcar ‘integralmente’ a personagem” (BAKHTIN, 2003, p. 12).

Esse distanciamento em relação à personagem é o que permite ao autor executar um duplo movimento: em primeira instância, o autor criador observa a maneira como a personagem encara determinado fenômeno da realidade e tenta descrever o que ela vê, como ela enxerga o objeto; depois, o autor abandona a perspectiva do personagem e retorna ao seu ponto de vista, relatando como ele próprio enxerga a personagem em seu processo de olhar. Amorim (2008) emprega a metáfora do retrato para ilustrar o que denomina “gesto exotópico do autor” (p. 96):

O retratista tenta entender o ponto de vista do retratado, mas não se funde

com ele. Ele retrata o que vê do que o outro vê, o que olha do que o outro

olha. De seu lugar exterior situa o retratado em um dado ambiente, que é aquilo que cerca o retratado, e em relação ao qual é situado pelo artista. O ambiente é uma delimitação dada pelo artista, uma espécie de moldura que enquadra o retratado. A delimitação do artista dá um sentido ao outro, fornece uma visão do outro que lhe é completamente inacessível. Não posso me ver com totalidade, não posso ter uma visão completa de mim mesmo, e somente um outro pode construir o todo que me define (AMORIM, 2008, p. 96, grifo nosso).

Essa atuação exotópica acarreta alguns desdobramentos fundamentais. Em primeiro lugar, ela nos permite entender que a visão global e acabada do indivíduo sempre passa por um olhar externo, por um excedente de visão8 (BAKHTIN, 2003) que somente um outro, só alguém exterior a ele, é capaz de fornecer por ter acesso a acontecimentos anteriores e posteriores que dão sentido à sua existência. Em se tratando de um autor que exerce uma atividade estética, isso significa que o personagem de uma obra literária só se constitui a partir do momento em que o autor se instala no horizonte concreto desse outro e, depois, retorna a si mesmo para “dar [esse acabamento] de sua posição, dar aquilo que somente sua posição permite ver e entender” (AMORIM, 2008, p. 97).

Assim, o olhar que o autor lança à personagem – e a forma como ele a representa discursivamente – é também afetado pela posição que ele ocupa no mundo, pela empatia que se estabelece entre o ele e o outro indivíduo. É isso que permitirá ao autor “criar para o outro um ambiente concludente a partir do excedente de sua visão, do seu conhecimento, de sua

8 Simas, Prado e Domingo (2018, p. 115) sintetizam o excedente de visão como “a visão que o outro tem do eu e à qual o eu não tem acesso. Por exemplo, o outro é capaz de ver a expressão facial do eu em determinada situação, como está arrumado o cabelo do eu, entre outros aspectos, enquanto o eu só poderá alcançar esses excedentes por meio da devolutiva do outro que o vê”.

vontade e de seu sentimento” (BAKHTIN, 2003, p. 23). O autor, portanto, não é neutro em relação ao que narra: ao assumir posicionamentos valorativos em sua fala/escrita,

o autor ocupa um lugar singular e único que o constrange a se responsabilizar, face ao outro, pelo seu pensamento. Ao assinar seu pensamento ou sua obra, o autor a torna não indiferente: dota-a de valor no contexto [...] A assinatura em Bakhtin é algo que designa a singularidade do autor na relação com a alteridade colocada por um dado contexto social. Ela é, ao mesmo tempo, originalidade e responsabilidade (AMORIM, 2008, p. 101).

Essa singularização do autor no discurso nos leva a entender que “o conceito de exotopia trata da criação individual” (AMORIM, 2008, p. 105) porque aciona, ao mesmo tempo, a sua responsabilidade ética – enquanto indivíduo que fala de si e do outro a partir de um lugar único, porém em permanente interação social – e estética – enquanto criador que constrói um todo artístico de maneira criativa, original. Amorim (2008) corrobora essa tese ao argumentar que o princípio da exotopia implica que “a criação é sempre ética, pois do lugar singular do criador derivam-se valores” (p. 105).

Assim, para Bakhtin, o autor só consegue atuar de forma ética e responsável se houver esse distanciamento entre as duas partes: ele está condicionado a uma atitude exotópica, a uma cisão clara entre quem olha e quem é olhado. Esse viés exotópico da produção autoral é tão relevante para o seu exercício que “se refere à atividade criadora em geral, inicialmente à atividade estética e, mais tarde, à atividade de pesquisa em Ciências Humanas” (AMORIM, 2008, p. 95).

Chamamos a atenção para o fato de que essa interpretação extensiva do princípio da exotopia reverbera no próprio domínio de atuação do autor, antes circunscrito à atividade estética em sentido estrito. Essa extensão reconfigura o pensamento do próprio Bakhtin, tensionando seus limites, e abrindo possibilidades para enxergar o autor criador para além do universo artístico-literário. Assim, entendemos que o exercício da autoria pressupõe a supracitada atitude exotópica também em outras áreas de atuação, como na pesquisa acadêmica em Ciências Humanas, “entendidas por Bakhtin como ciências do texto, pois o que há de fundamentalmente humano no homem é o fato de ser um sujeito falante, produtor de textos” (AMORIM, 2008, p. 98).

Isso nos permite estender a noção de exotopia ao jornalismo, por sua inscrição no grande guarda-chuva das “ciências do texto”, da comunicação interpessoal. Com efeito, quando pensamos nas narrativas jornalísticas, é fundamental enxergar essa separação entre a visão do repórter e a do personagem, essa perspectiva exotópica, para que o texto do jornalista

não silencie o da fonte, nem que o dessa última faça desaparecer o texto do repórter, “como se este se eximisse de qualquer afirmação que se distinga do que diz o pesquisado” (AMORIM, 2008, p. 98).

Finalizamos, por ora, o debate sobre a concepção de autoria em Bakhtin, adiantando que a responsabilidade ética e estética do autor atravessará todo o nosso trabalho como um dos pilares da atuação autoral dentro do campo jornalístico e da reportagem, de maneira mais específica. No momento oportuno, retomaremos a discussão sobre a forma como cada autora aqui estudada se singulariza enquanto tal, levando em conta sua obra e sua produção discursiva enquanto sujeito que fala de si e do outro a partir de um lugar único e responsável, sem deixar de estar inscrito, porém, em um contexto social, espacial e temporal próprios.