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3 A REPORTAGEM DE AUTOR: GÊNERO, CARACTERÍSTICAS E

3.3 OS GÊNEROS DO DISCURSO

3.3.3 Construção composicional

Finalizando a explicação sobre os elementos constitutivos dos gêneros do discurso, adentramos o tópico referente à sua estrutura composicional. Para Fiorin (2011, p. 90), “a construção composicional é o modo de organizar o texto, de estruturá-lo”, isto é, a forma como as informações serão dispostas, a partir de que foco narrativo a história será contada, que tom e estilo deverão ser adotados e quais elementos formais caracterizam as formas típicas de gênero.

A organização composicional de um texto encontra-se imbricada a determinado universo temático e a certos traços estilísticos, uma vez que esses três elementos, associados a situações típicas de comunicação que ocorrem no interior de dada esfera da atividade humana, estabilizam “formas típicas de construção do todo” (BAKHTIN, 2003, p. 282). Nos termos do pensador russo,

quando escolhemos um determinado tipo de oração, não o escolhemos apenas para uma oração, não o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oração; escolhemos um tipo de oração do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta à nossa imaginação discursiva e determina a nossa escolha. A concepção sobre a forma do conjunto do enunciado, isto é, sobre um determinado gênero do discurso, guia-nos no processo do nosso discurso [...] O gênero escolhido nos sugere os tipos e seus vínculos composicionais (BAKHTIN, 2003, p. 286, grifo do autor). Ancorando essa noção ao campo jornalístico, pensamos que, para levar um acontecimento de interesse público ao conhecimento do corpo social mais amplo, composto por destinatários dispersos e heterogêneos, a tendência é que o repórter acione um gênero discursivo cujo universo e recorte temáticos estejam relacionados à realidade concreta. Por essa lógica, esse gênero deverá ser escrito em um estilo objetivo-neutro que o aproxima do discurso científico.

A composição, por sua vez, se caracteriza por ser narrada em terceira pessoa, estar em consonância com a norma culta da língua, apresentar personagens, locais e marcos temporais bem definidos e períodos curtos, escritos em ordem direta e com a maioria dos verbos no presente do indicativo ou nos tempos do pretérito, indicando progressão temporal até o momento em que se narra. Por essas propriedades, essa descrição de gênero remonta à caracterização que Lima (1995) faz da notícia, sobre a qual escreve o autor:

[...] A notícia segue as fórmulas de construção que redundam na simplificação do relato em torno dos seus componentes o quê, quem, quando, como, onde e por quê, distribuídos de três maneiras distintas, conforme se opte pela técnica da pirâmide invertida, pirâmide normal ou mista. A estruturação da mensagem jornalística nessa fórmula atende melhor à categoria jornalística que acabou sendo conhecida como jornalismo informativo. Seu papel é informar e orientar de maneira rápida, clara, precisa, exata, objetiva. Em virtude disso, essa prática é muitas vezes criticada como superficial, incompleta (LIMA, 1995, p. 23-4, grifo do autor). É justamente nesse espaço de crítica à superficialidade do gênero notícia que a reportagem ganha força e legitimidade, porque ela é entendida por autores como Muniz Sodré e Ferrari (1986) e José Marques de Melo (1985) como uma ampliação, uma complexificação do relato noticioso para produzir “uma abordagem multiangular, uma compreensão da realidade que ultrapassa o enfoque linear” (LIMA, 1995, p. 26) provido pelo texto noticioso.

Embora apresentem unidades temáticas e traços estilísticos semelhantes, a notícia e a reportagem se diferenciam em suas construções composicionais justamente devido a esse caráter analítico da reportagem em contraposição ao teor mais urgente e conciso da notícia. Segundo Lima, a reportagem, enquanto gênero, apresenta

um certo grau de extensão e/ou de aprofundamento do relato, quando comparado à notícia, e ganha a classificação de grande reportagem quando o aprofundamento é extensivo e intensivo, na busca do entendimento mais amplo possível da questão em exame. Em particular, ganha esse status quando incorpora à narrativa elementos que possibilitam a compreensão verticalizada do tema no tempo e no espaço [...] (LIMA, 1995, p. 27-8). O autor complementa sua definição retomando os atributos estruturais da reportagem propostos por Muniz Sodré e Ferrari (1986): “a predominância da forma narrativa, a humanização do relato, o texto de natureza impressionista e a objetividade dos fatos narrados” (MUNIZ SODRÉ; FERRARI apud LIMA, 1995, p. 28). Essas características integram a organização composicional da reportagem, atuando para atingir o escopo do gênero: informar

sobre um fenômeno da realidade relacionando-o a uma rede de regularidades e dispersões que contribuíram para que ele se apresentasse daquela maneira e não de outras possíveis.

Esses elementos composicionais da reportagem estão inter-relacionados e operam em conjunto – sem deixar de lado as unidades temáticas e os componentes estilísticos - para produzir os textos do gênero. Isso pode ser observado se pensarmos que esse formato narrativo das reportagens é precisamente o que permite aos repórteres engendrar digressões – para melhor situar os eventos em uma cadeia de antecedentes e subsequentes - e mudanças no foco narrativo a partir do qual constroem seus relatos. Ao deslocar o ponto de vista de terceira pessoa – forma típica do campo jornalístico por produzir efeitos de sentido de objetividade – para o de primeira pessoa, o repórter se instala no fio do discurso como testemunha e/ou participante dos fatos que narra, conferindo um teor impressionista, singular, ao seu discurso.

É bom enfatizar que tal atributo essencial de portar a voz de uma ‘testemunha ocular’ dos fatos permitirá a concessão ao desempenho de uma atitude individualizada, centrada na figura do eu que reporta, o que insinua a presença de marcas de pessoalidade na forma expressiva. É o que permite circunscrever a reportagem na viabilidade da realização de um estilo, ou seja, de uma forma verbal que comporta a marca da individualidade. Daí dizer-se que a reportagem é o ambiente mais inventivo da textualidade informativa. Na dilatação do evento noticioso, a reportagem pode estender- se como uma realização descritiva, na composição astuciosa de um personagem ou na coloração de um cenário. Ou desdobrar-se plenamente na narratividade, em que estão implicados personagens em processo de mudança de estado. É desse modo que ela ensaia alguma proximidade com realizações da prosa de ficção ou transporta marcas da própria literariedade (BULHÕES, 2007, p. 45).

Esse caráter testemunhal que o repórter pode assumir é essencial para pensarmos a reportagem de autor porque aciona a representação discursiva de uma singularidade, de um posicionamento deste eu que reporta. Para Faraco (2009, p. 89), “é esse posicionamento valorativo que dá ao autor criador a força de constituir o todo”. Significa dizer que, por mais que o jornalista esteja submetido às formas típicas do gênero reportagem e às diretrizes profissionais do campo jornalístico, “qualquer texto tem, como seu ponto de partida e com seu elemento estruturante, um posicionamento axiológico, uma posição autoral” (FARACO, 2009, p. 90, grifo do autor).

Na reportagem, essa posição autoral pode se manifestar de diversas maneiras: seja na instalação do repórter dentro da narrativa como testemunha dos fatos, seja no estilo empreendido por ele a partir de escolhas lexicais, sintáticas ou semânticas ou no modo como ele organiza discursivamente a sua narrativa. Com efeito, “o autor criador é quem dá forma ao

conteúdo: ele não apenas registra passivamente os eventos da vida (ele não é um estenógrafo desses eventos), mas, a partir de certa posição axiológica, recorta-os e reorganiza-os esteticamente” (FARACO, 2009, p. 90).

Essa afirmação de Faraco corrobora o que entendemos como o caráter sociodiscursivo da autoria porque situa o autor no mundo concreto, o mundo do ato, com o qual ele interage continuamente no processo de elaboração de seu discurso. Esse processo, aliás, não se dá apenas nas linhas escritas ou nas imagens construídas pelo autor, pois ele é o tempo todo atravessado por instâncias extradiscursivas (políticas, sociais, econômicas, afetivas) que moldam o seu dizer.

Todas essas interações produzem um agir avaliativo, uma tomada de posição que se manifesta em diversos aspectos da criação autoral, como na atuação ética e na imersão do repórter no mundo dos sujeitos pesquisados, por exemplo. Com isso em mente, abordaremos a seguir as características sociodiscursivas da reportagem de autor, algumas oriundas do “flerte” com o Jornalismo Literário, outras com o universo da criação estética e outras da permanente relação discurso-autor-mundo da vida.