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3 A REPORTAGEM DE AUTOR: GÊNERO, CARACTERÍSTICAS E

3.3 OS GÊNEROS DO DISCURSO

3.3.2 O estilo

O segundo elemento constitutivo do gênero é o estilo, que diz respeito à “seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua” (BAKHTIN, 2003, p. 261) visando singularizar e dar acabamento a certo enunciado. O componente estilístico também está relacionado à noção de escolha, a uma maneira específica de se dizer algo, que tanto pode se referir às propriedades efetivamente sintáticas, semânticas e lexicais quanto à “escolha de um

certo gênero de discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 282) para alcançar um propósito dentro de um campo da comunicação discursiva. Nesse sentido, deve-se ter em mente que

o estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos da relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro etc. (BAKHTIN, 2003, p. 266).

Em outras palavras, as escolhas estilísticas têm de levar em conta não só a “intenção discursiva do falante” (BAKHTIN, 2003, p. 281), como também as especificidades do campo em que elas se realizam. É por isso que, para tratar a questão do estilo em jornalismo, convém observar os vieses coletivo e individual que o estilo assume no interior dessa esfera.

Para Amoroso Lima, “o estilo comum precede o estilo próprio. É uma preparação para aquele” (1969, p. 56). Se é assim, antes de se exercer em um estilo próprio em jornalismo, é necessário estar inserido em uma ordem do discurso amparada em alguns elementos típicos desse campo profissional. Esse estilo comum pode ser definido como “objetivo-neutro, em que há uma identificação entre o locutor e seu interlocutor, como nas exposições científicas, em que se usa um jargão marcado por uma ‘objetividade’ e uma ‘neutralidade’” (FIORIN, 2011, p. 91).

Isso nos remonta à consolidação do jornalismo enquanto campo profissional. Em poucas palavras, para se legitimar enquanto atividade digna de credibilidade, o jornalismo buscou alicerçar o seu discurso nos mesmos pilares que sustentavam o discurso científico em fins do século XIX e início do século XX: imparcialidade, precisão, concisão, circunscrição aos aspectos empiricamente observáveis da vida (ver item 1.2.3).

Além disso, as atividades do campo sempre funcionaram, em regra, à luz de uma lógica de mercado, com rotinas profissionais que impõem limites exíguos de tempo e de espaço, bem como por diretrizes editoriais conservadoras. Como bem observou Tuchman (1983), esse quadro pode ser relacionado à atuação do jornalismo ao longo da história enquanto prática capitalista legitimadora do status quo e mantenedora da estrutura social e das práticas discursivas vigentes. Mais do que os padrões institucionalmente consolidados dentro do campo,

estariam em jogo, então, não apenas a linguagem, a personalidade, o ritmo dos textos e as técnicas redacionais, mas também a angulação das matérias, o lugar de onde se fala. Incidem também aspectos idiossincráticos, corporativos, ideológicos e influências histórico-contextuais (CHRISTOFOLETTI, 2004, p. 169).

Entretanto, em que pese esse caráter conservador do estilo jornalístico, devemos lembrar que há também uma dimensão individual do estilo que coexiste com a sua orientação coletiva, com os traços típicos do campo e dos gêneros que nele circulam. Este viés individual se sustenta no aspecto singular e irrepetível de cada enunciado,

na utilização de uma língua natural para representar fenômenos, de vez que ‘o mesmo fato’ pode ser representado de numerosas maneiras, cada uma delas com uma relação não só com o discurso precedente e subsequente, mas com os efeitos e consequências diversos, mais ou menos marcados, mais ou menos relevantes, sobre os interlocutores, em especial sobre o sujeito do discurso, que se individua, que exibe sua subjetividade, ao privilegiar determinado modo de semiestruturação do real, para os efeitos da situação em que se fala (POSSENTI, 2008, p. 223-4).

Apesar disso, sabemos que o estilo objetivo-neutro é dominante na maioria dos textos que circulam na esfera jornalística, o que faz com que essas expressões individuais sejam menos explícitas e frequentes do que em outros campos da atividade humana. Entretanto, é precisamente “na tensão entre atender a norma e se distanciar dela – não perdendo de vista a adequação do texto à ocasião e ao propósito que lhe deu origem – que se consegue marcar um estilo, deixar marcas” (CHRISTOFOLETTI, 2004, p. 161).

Trazendo esse entendimento para a reportagem de autor, endossamos a tese de Christofoletti (2004, p. 163) de que “para ser autor, é necessário marcar um estilo, deixar traços do que pode vir a se tornar marcas para novos padrões”. Esses indícios estão relacionados às operações que o jornalista executa para se singularizar na linguagem, demarcando algumas regularidades que possam ser identificadas em seus textos como recorrências temáticas, lexicais ou o uso de determinados esquemas narrativos para construir suas reportagens.

A existência do estilo em qualquer linguagem decorre do fato trivial de que

nenhuma linguagem é o que é por natureza, mas sim como resultado do trabalho de seus construtores/usuários. O estilo resulta de uma escolha

como resultado do trabalho de representar um fenômeno preferencialmente de certa maneira e para produzir certos efeitos em relação a outros possíveis. Além disso, essa escolha implica uma certa inserção, o que significa certa preferência que acaba por revelar, inclusive, o estilo do trabalhador, sua experiência e seus objetivos (POSSENTI, 2008, p. 234, grifos nossos). Essa inserção singular no discurso está relacionada ao já citado fato de que cada um de nós enuncia a partir de uma posição única no mundo, o que confere uma responsabilidade

ética ao que falamos. É precisamente por isso que Christofoletti alega insistir “na expressão exercer um estilo. Porque é um empreendimento, uma iniciativa, uma ação deliberada, resultado de uma vontade, de desejos” (2004, p. 163, grifo do autor). Esse exercício do estilo também está relacionado ao trabalho do autor com determinadas palavras e não outras, com a abordagem de certos assuntos e a exclusão de outros, isto é, a um determinado modo de organizar os discursos com vistas a produzir certos efeitos de sentido.