• Nenhum resultado encontrado

4.3 Espécies de Tabu

4.3.5 Tabu do rei

4.3.5.2 A autoridade do rei

A divinização do rei sugere a autoridade do rei. E a autoridade do rei sugere a submissão do súdito. Com a ascensão da Igreja como instituição a partir da Idade Média, a crença na obediência passou a ser palavra oficial da doutrina cristã, transformando a obrigação da obediência cívica em virtude cristã, como designa São Paulo, na epístola aos romanos:

Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas. Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus institui, e aqueles que assim procederem contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos. Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser pelos que praticam o mal. Você quer viver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá. Pois é serva de Deus para o seu bem. Mas se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal. Portanto, é necessário que sejamos submissos às autoridades, não apenas por causa da possibilidade de uma punição, mas também por questão de consciência. É por isso também que vocês pagam imposto, pois as autoridades estão a serviço de Deus, sempre dedicadas a esse trabalho. Dêem a cada um o que lhe é devido: Se imposto, imposto; se tributo, tributo; se temor, temor; se honra, honra (ROMANOS 13:1-7).

46 A respeito da anotação efetuada por Bloch (1997:411) pelas palavras do Príncipe de Orange, vitorioso da Revolução Gloriosa (1688), tornando-se Guilherme III: “Se algum dia acontecer na Inglaterra uma grande revolução que a faça mergulhar de novo na ignorância, então ela terá milagres todos os dias”.

47

Seguindo o exemplo de Guilherme de Orange, escreveu Voltaire em seu Enssai sur lês moerus: “Virá o tempo

em que a razão, que começa a fazer algum progresso na França, abolirá esse costume” (BLOCH, 1997, p. 260). 48 Conforme registros apontados por Bolch (1997, p. 262), na França, em 30 de maio de 1825, o rei Carlos X se dirigiu ao Hospice Saint-Marcoul e tocou os doentes que aguardavam em fila e ao toque pronunciava amavelmente “o rei de toca, Deus te cure” e, mais tarde, as freiras daquele estabelecimento mandaram lavrar alguns atestados de cura!

A obrigação cristã de respeitar a autoridade constituída foi disseminada pelas palavras de seu mártir à indagação dos faristeus sobre se era certo pagar imposto a César:

[...] Mostre-me a moeda usada para pagar o imposto. Eles lhe mostraram um denário, e ele lhes perguntou: „De quem é esta imagem e esta inscrição?‟ „De César‟, responderam eles. E ele lhes disse: „Então, dêem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus‟ (MATEUS 22:19-21).

Disto se conclui, como Kantorowicz (1998, p. 54), que até a humanidade de cristo também sucumbiu diante da divina potestas de César e esta exaltação harmoniza-se com o ensinamento da igreja em relação à submissão cristã.

A cidade é a aglomeração combinada e equilibrada de instituições que compactaram as paixões humanas. E contando sobre as paixões antes da Igreja Cristã, Aristóteles (1997, p. 14) relata que o povoado veio da colônia, a colônia veio da família em que os filhos são filhos dos filhos alimentados pelo mesmo leite que proporcionou a cidade definitiva e governada pelo rei que simboliza a autossuficiência. O rei era o meio de assegurar a sobrevivência e uma vida melhor, tal como na família o governo é do mais velho e, com isso, também sugeriu o imaginário como fonte fecunda da cidade:

É que Homero diz: „[...] cada um dita a lei aos filhos e às esposas [...]‟, pois eles vivem dispersos (assim se vivia antigamente). Por esta mesma razão todos os homens dizem que os deuses tinham um rei, pois uns ainda são e outros já foram governados por rei (como os homens imaginam os deuses sob forma humana, supõem também que sua maneira de viver é semelhante à deles) (ARISTÓTELES, 1997, p. 14-15).

A monarquia é um governo sobre súditos que concordaram com a submissão de bom grado, e o rei só será soberano se os súditos assim desejarem (ARISTÓTELES, 1997, p. 194). Eis que os tiranos governavam contra a vontade dos súditos, mas os reis exerciam o poder com a lei sobre os súditos que se submetiam pelo consentimento, cujo poder se estendia no comando da guerra, na direção dos sacrifícios e na função judiciária na cidade, mas, depois, Aristóteles (1997, p. 108-109) conta que os reis,

[...] foram abrindo mão de alguns de seus poderes e foram despojados de outros pela multidão, nas cidades em geral somente os sacrifícios ficaram a seu cargo; onde qualquer coisa digna da denominação de governo monárquico sobreviveu, os reis detiveram somente o comando em expedições militares além-fronteiras.

O pai era o sacerdote supremo no lar doméstico, enquanto o sacerdote do lar público era o rei e esta autoridade cuida do lar de todos com seu próprio sacrifício, pronunciando a

oração e presidindo os banquetes religiosos (COULANGES, 1975, p. 39). Nesse sentido Aristóteles identifica que

O poder sobre os homens livres é, por natureza, diferente do poder sobre os servos; o poder, numa família, é monárquico porque em cada casa há uma só autoridade; o governo de um Estado é exercido sobre pessoas livres e iguais (ARISTÓTELES, 1999, p. 153).

A realeza foi instituída pelo lar, do culto doméstico para a religião da cidade, em que a crença no sacerdote como um guardião emprestado dos deuses sustentava a autoridade do rei num ser sagrado e hereditário do lar. A realeza religiosa (e política) estabeleceu o culto do lar público, em que as cerimônias religiosas são fontes indissociáveis do poder supremo do rei na antiguidade. Confirmando essa assertiva, Fustel de Coulanges (1975, p. 140) fornece inúmeros exemplos, como o rei de Sícion que foi deposto por não mais poder exercer o sacerdócio; que tanto Homero, Virgílio, Demóstenes, Xenofonte descreveram o envolvimento dos reis com sacrifícios religiosos, com exercício simultâneo da magistratura e de comandos militares. Uma consequência consuetudinária que se verificou sobre a fundação de Roma e nos reinados seguintes:

Tal costume tinha sua razão de ser: como o rei seria chefe supremo da religião, e como a salvação da cidade dependeria de suas orações e dos seus sacrifícios, tinham todos o direito de, antes de mais nada, se certificarem de que esse rei era aceito pelos

deuses (COULANGES, 1975, p. 141).

Assim, a cidade constituída por vários povoados e estes por famílias sempre teve na crença e nos tabus a indicação do que era conveniente e do que era nocivo, do que era justo e do que era injusto, o que faz recordar a máxima aristotélica de que a justiça é um hábito que não morre (CHAUÍ, 1999, p. 198). Era assim que se sustentava a submissão, não só pelo alcance propriamente dito da autossuficiência material como necessidade coletiva, mas, sobretudo, por intermédio da expectativa imaginária dessa possibilidade.

Há na imagem simbólica do rei a coincidência com a autoridade divina que se confunde com a autoridade totêmica do pai na horda primitiva. É nesse sentido que Hobbes (1983, p. 122), na obra Leviatã, entre os tópicos sobre o Estado, dispõe um capítulo especialmente sobre o domínio paterno, contrapondo-o ao domínio despótico e correlacionando-o com o poder do rei, como aquele que não pode ser repassado sem seu consentimento; não é passível de alienação; não pode ser acusado de injúria por quaisquer súditos; não pode ser punido por seus súditos; é o juiz da guerra, da paz, das controvérsias; o

único legislador e competente para nomeação de conselheiros, magistrados, ministros, comandantes e demais funcionários; é quem determina recompensas, castigos, honras, ou seja, o rei é o tutor supremo com base na sua autoridade e na sua potencialidade de causar medo, tal como a autoridade do pai, tal como é a autoridade do totem! E para demonstrar essa força, Hobbes (1983, p. 123-124) traduz a analogia entre duas formas de domínio:

a) o domínio por geração ou paterno que advém da relação do pai sobre seus filhos, o que se chama de poder paterno e, com efeito, esse direito não deriva precisamente da geração relacionada com a procriação do pai ao filho, mas sim do consentimento expressado pelo filho durante a sua vida, sendo relevante o poder alimentar em que a criança alimentada deve a vida à mãe. No caso do poder real, se os filhos órfãos escolheram o soberano, além do medo do rei, há, sobretudo, o medo dos filhos órfãos entre si mesmos. Noutras palavras, a preservação da vida é o meio por excelência da submissão de um ser humano a outro. Se o filho estiver submetido à mãe e a mãe submetida ao pai, então o filho estará submetido ao pai, o que se coaduna com várias passagens bíblicas49 conferindo a submissão ao pai de todos e ao rei um status de mensageiro de deus.

b) o domínio adquirido ou despótico que advém da vitória militar em que o vencido, para evitar a morte, volitivamente cede sua liberdade e o seu corpo em servidão que passa a ser decorrente do pacto submetido ao vencedor, pois os escravos acorrentados não se submetem por dever, mas para evitar crueldades do cativeiro. O domínio por geração ou paterno e o domínio adquirido ou despótico são os mesmos direitos dos soberanos por instituição,de que a submissão ao rei e ao Estado vem da necessidade de proteção que lhe é concedida. O que difere nessa situações é a direção do medo, pois no domínio despótico o medo é direcionado ao tirano e no domínio por instituição, em que os homens escolhem seu rei, o medo é em relação aos súditos entre si.

À soma das paixões se inclui o medo e se manifestam pelo consentimento. Para Hobbes, conforme Renato Janine Ribeiro (2004, p. 169), o consentimento, mesmo quando coagido, tem valor; é a submissão da vontade, mas também dado em troca de obediência por proteção, pois o consentimento tem o objetivo de preservar a vida:

Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-lo. [...] O fim da obediência é a proteção, e seja onde for que um homem a veja, quer

49 Êxodo 20,19; 1 Samuel 8, 11ss; 1 Samuel 8.19s., 1Reis 3,9; 1Samuel 24,9; Colossenses 3,20; Colossenses 3,22; Mateus 22,2s.; Tiago 3; Mateus 21,28s.; Gênesis 3,5 (HOBBES, 1993, p. 125-126).

em sua própria espada quer na de um outro, a natureza manda que a ela obedeça e se esforce por conservá-lo (HOBBES, 1983, p. 135).

Aqui é possível abstrair duas razões opostas que se juntam, de um lado o exercício do poder do rei que se contrapõe à renúncia dos súditos à liberdade, que é dada em troca da proteção. Tal renúncia está articulada com a vontade e com a razão por meio da adequação da relação meio e fim, por assim dizer, da cessão de direito à preservação da vida, como é o consentimento da criança (RIBEIRO, 2004, p. 170). Por outro lado, a razão do protetor é dar amparo em troca de submissão, ou seja, a proteção é a causa da submissão, em que a criança obedece ao seu tutor, sendo a razão do adulto aceita pelo consentimento presumido da criança, pois o adulto é como Deus para a criança (RIBEIRO, 2004, p. 171) e não esqueçamos, Deus é rei (HOBBES, 1983, p. 211).

A autoridade do rei como a autoridade paterna também foi reconhecida por Coulanges no ambiente doméstico com funções entre o sacerdócio, juiz e senhor, funções que se identificam na cidade: “Encontramo-la na origem de quase todas as sociedades, seja porque, na infância dos povos, só a religião pode obter a obediência, seja porque a nossa natureza sente a necessidade de não se submeter a outra autoridade que não seja a concepção moral.” (COULANGES, 1975, p. 141).

E, possivelmente, em Coulanges o que se vê é a influência de Aristóteles na Política,

ao tratar sobre as relações entre pai e filhos, verbis:

O comando do pai sobre os filhos, por outro lado, é como o de um rei, pois o pai é o comandante tanto por sua afeição quanto por sua idade, características do governo real (por isto Homero chamava apropriadamente Zeus de „pai dos homens e deuses‟, como rei de todos eles). De fato, embora por natureza o rei deva ser superior, ele pertence à mesma espécie de seus súditos, e esta é a relação entre o mais idoso e os mais jovens e entre o pai e seus filhos (ARISTÓTELES, 1997, p. 31).

Assim, a autoridade do pai passava com a hereditariedade ao culto, numa transmissão de poder ao rei, num entrelaçamento da autoridade religiosa com a autoridade política e da submissão no lar à submissão na cidade.

Durante o sistema feudal, tem-se uma ampliação da capacidade do rei, que permeia a definição de sua autoridade por dois momentos. Num primeiro momento, o rei foi o principal latifundiário do reino com a inclusão da corte como instituição para solucionar os conflitos e, num segundo momento, a autoridade pública torna-se inerente ao rei pela sua qualidade de “vigário de Deus”, tornando-se o principal magistrado da lei divina e da reunião desses dois momentos (da capacidade do rei e da corte) instigando os princípios das instituições

constitucionais como conselhos do rei, cortes de justiça e o parlamento que era na essência a corte, tal como salienta Sabine (1964, p. 225-226):

Através dessa evolução, o conceito de autoridade pública emergiu com maior clareza, mas a autoridade jamais se centralizou exclusivamente na pessoa do soberano. A monarquia absoluta constituiu antes fenômeno característico dos Estados modernos do que dos medievais. O rei era obrigado a aturar através do conselho, e as cortes ou algumas de suas ramificações retinham ainda vestígios dos seus direitos feudais de serem consultadas.

No “Discurso da servidão voluntária”, Etinne de La Boètie (1999, p. 17) considerando que, a despeito do amor à liberdade que a humanidade tem em si, questiona como se enraizou essa obstinada vontade de servir, relembrando que a obediência de cada um foi prestada aos seus pais e disto todos somos testemunhas, obedientes aos pais, sujeitos à razão e servos de ninguém. Afirma que a primeira forma de servidão se dá pelo costume e que ela própria é um costume50; e, noutras formas, que a sujeição poderá se dar pela força ou pela

ilusão da própria cegueira (LA BOÈTIE, 1999, p. 20).

Para ter obediência, num primeiro momento, os tiranos dominam pela força, que será o apoio e o fundamento para o exercício do poder, mas não será a força que resguardará o poder, mas a ilusão da força gerada pelos poucos chefes que cercam e bajulam o poder, fomentando a ilusão de um poder mau que é intocável e, por trás desses poucos chefes, haverá uma centena de outros intermediários para distribuir vantagens e a ilusão e o tabu:

Grande é o séquito que vem depois e quem quiser divertir-se esvaziando essa rede não verá os seis mil mas os cem mil, os milhões que por essa corda agarram-se ao tirano agarram-servindo-agarram-se dela como Júpiter em Homero, que agarram-se gaba de trazer a si todos os deuses ao puxar a corrente. Daí se originava o crescimento do Senado sob Júlio, o estabelecimento de novas posições, o surgimento de ofícios; [...] (LA BOÈTIE, 1999, p. 32).

Assim, tanto em volta do rei como do tirano haverá uma reunião de intermediários que se constituirão em tiranetes e que não irão se satisfazer pela obediência, mas pela devoção ao trabalho nos negócios do tirano, atentos às palavras, à voz, aos sinais, aos olhos dele, como se os tiranetes não tivessem vontade, ou melhor, cuja única vontade era saber qual é a vontade dele (LA BOÈTIE, 1999, p. 33). Eles são possuidores de uma estupidez do tamanho da

50 La Boètie exemplifica narrando o caso do legislador espartano Licurgo que criou dois cães irmãos, um na cozinha e o outro nos campos e, querendo mostrar a influência dos costumes aos lacedemônios, expôs em praça pública os cães e diante deles um prato de sopa e uma lebre, soltando os animais, aquele criado nos campos avançou sobre a lebre e aquele domesticado na cozinha avançou para o prato de sopa (LA BOÈTIE, 1999, p. 21).

maldade, de ambição e avareza ardente e notada na velocidade com que se reúnem à volta do rei para desfrutarem do espólio das conquistas (LA BOÉTIE, 1999, p. 101).

Sobre os intermediários, Freud (2012, p. 83) destaca que, no curso da história, os reis ficaram oprimidos pelo fardo da própria santidade, incapacitando-os para o domínio de todas as coisas reais. A solução se deu pela promoção da divisão primitiva administrativa de um poder espiritual e outro secular, para que pessoas menores e enérgicas que estavam dispostas a renunciar às dignidades régias ficassem no domínio secular, ficando o tabu destinado ao rei.

O rei é dotado de tabu e o tabu, além do contágio e da tentação, também significa a renúncia dos súditos à liberdade. Já os tiranetes, como intermediários entre o súdito e o rei, têm uma posição passível de ser alcançada e suportada pelo súdito, ao contrário da posição real. Além disso, a quantidade de inveja e de temor do súdito é muito inferior em relação ao tiranete, que conserva em si uma dose menor de tabu. Este por sua vez, na sua posição hierárquica, atenua a sua inveja em relação ao rei, mas teme o súdito que pode lhe tomar o ofício, por isso o exerce com força e até com tirania para, propositadamente, causar medo no súdito e se proteger com o medo do outro.