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4.3 Espécies de Tabu

4.3.5 Tabu do rei

4.3.5.1 A divindade pela força mágica régia

No percurso da civilização se reconhece a necessidade prática do ser humano de sujeitar o mundo, e onde o animismo41 deve participação nesse esforço, considerando que é de onde se extraem instruções e procedimentos para assenhorear-se de homens, animais, coisas. A despeito da denominação de “feitiço” e “magia”, Freud (2012, p. 125) preferiu o termo “técnica”.

E a força mágica régia advém do mana, a qual coincide com a lembrança da proibição e da tentação de infringir o tabu, tal como a representação ambivalente do contágio e da sua possibilidade mediante um cerimonial para afastar os temores do contágio com o tabu. Acompanhando essa tendência, os reis se tornaram inacessíveis aos demais indivíduos da comunidade com cerimoniais de aproximação e de submissão ao seu poder, pois o toque do rei poderia ser a morte, o remédio, a proteção ou a titulação aristocrática, tal como a vontade dos deuses interferindo nos destinos humanos.

O poder mágico oriundo do mana dava ao rei o poder transcendental e sacerdotal do desconhecido, por isso o súdito devia se proteger do rei e, de forma correlata, era devida toda proteção ao rei com seu isolamento para que ele garantisse o bem-estar de seus seguidores; e

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Freud (2012, p. 144) expõe, ainda, que “o animismo era natural e evidente para o homem primitivo; ele sabia como eram as coisas do mundo, ou seja, eram tal como ele as percebia. Estávamos preparados para saber, portanto, que o homem primitivo deslocava relações estruturais de sua própria psique para o mundo exterior, e, por outro lado, podemos fazer a tentativa de colocar de volta na psique humana aquilo que o animismo ensina sobre a natureza das coisas.[...] A experiência não nos permite dizer muito acerca do pré-animismo, pois ainda não foi encontrado nenhum povo que dispensasse a noção de espíritos.”

mais, toda vigilância a fim de que o rei não se desviasse da razão da sua existência, que deveria ser a sua dedicação ao súdito (FREUD, 2012, p. 86).

Tais conclusões, Freud (2012, p. 87) abstrai, confessadamente, do antropólogo inglês Sir James George Frazer, que publicou em 1910, em quatro volumes, Totemism and exogamy, cujo estudo analisou os reinados primitivos onde o rei existia apenas para os súditos, que o veneravam religiosamente, mas que transformavam sua devoção em ódio, desespero e, geralmente, o executavam como um criminoso para ceder seu lugar a outro rei que executasse divinamente a lei, numa demonstração expressiva de ambivalência em relação ao rei.

A realeza “mística” está presente na história da civilização ocidental como resultante de uma herança mais antiga e perdida na obscuridade da pré-história das realezas bárbaras, muito mal conhecidas por falta de literatura escrita anterior ao cristianismo, que estavam impregnadas de caráter religioso de reis como seres divinos originados dos deuses, de famílias hereditariamente sagradas, que exerciam funções sacerdotais e com poderes sobre a natureza e, inclusive, com o exercício do toque pelos reis bárbaros nas crianças e nos cereais quando concediam a boa progenitura e a boa safra (BOLCH, 1998, p. 71).

La Boètie (1999, p. 30) conta que, por volta de 300 a.C., os súditos acreditavam piamente no dedão de Pirro, rei de Épiro e da Macedônia, que com seu toque fazia milagres e curava doentes e que o povo ainda cultuou o conto de que, mesmo depois da incineração fúnebre do rei, seu dedo continuou intacto; também o rei romano Vespasiano, do século I, endireitava os coxos, tornava clarividentes os cegos.

Noutro exemplo, La Boètie diz que os reis da Assíria e os reis de Medos eram misteriosos e apareciam tardiamente ao público para que cultuassem neles algo de sobre-humano construído pela imaginação sobre o que não se via e que, no Egito, os faraós só se mostravam com ramo ou fogo sobre a cabeça para mascararem a imagem de mágicos para inspirar respeito, admiração e temor nos súditos (LA BOÈTIE, 1999, p. 96).

A intensidade dessa mágica, resultante do tabu do rei, propagou-se no tempo e submerge nas tragédias shakespearianas. E em relação ao poder taumaturgo e do cerimonial, em Henrique V (1599), o Rei, no prelúdio da Batalha de Azincourt (século XV), desabafa:

HENRIQUE V42 - Recaia tudo sobre o Rei. Que nossas vidas, nossas almas, nossas

dívidas, nossas zelosas esposas, nossos filhos e nossos pecados recaiam sobre o Rei.

42 Henrique de Monmouth, que foi retratado por Shakespeare, nasceu no castelo de Gales e foi criado longe da

corte, uma vez que não era descendente de um pretendente à coroa. Em 1399, o seu pai revoltou-se contra o primo Ricardo II da Inglaterra, acabando por depô-lo e subir ao trono, consagrando-se Henrique IV. Esta mudança conferiu um novo estatuto ao filho Henrique, agora herdeiro da coroa, vindo a tornar-se, com a morte de seu pai, rei da Inglaterra entre 1412 e 1422 (HENRIQUE V, 2014).

Devemos responder por tudo. Oh, que dura condição. Irmã gêmea da grandeza. Sujeita às críticas de qualquer imbecil. À quanta paz deve o Rei renunciar, e os demais podem desfrutar. E o que têm os reis que os demais não têm, exceto o cerimonial? E o que és tu, inútil cerimonial? O que bebes em vez de homenagem doce, senão lisonja envenenada? Adoece, grandeza, e ordena que teu cerimonial te cure! Podes tu, quando mandas no joelho do mendigo manda que tenha saúde? Não, sou altivo que brinca tão sutilmente como o repouso do rei. Sou um rei que te conhece bem e eu sei.

O poder mágico do rei, pela leitura shakespeariana,é repetido em MacBeth (1610):

MALCOLM – Chamam-lhe o mal. Miraculoso feito realiza este bom rei, já presenciado várias vezes por mim, desde que me acho no reino da Inglaterra. De que modo consegue o céu mover, só ele sabe. Mas pessoas tocadas de moléstias estranhas, cheias de úlceras, tristíssimo espetáculo a todos, desespero da medicina, sãs ele tem posto com lhes pôr ao pescoço uma áurea estampa, ao tempo em que murmura santas preces. Dizem também que aos reis seus sucessores transmitirá esse poder bendito de curas realizar. Mas além dessa virtude estranha, o dom possui celeste da profecia, sobre lhe cercarem o trono várias bênçãos que o declaram cheio de graças (SHAKESPEARE, 2000, p. 105-106).

Durante o período medieval, os reis da Inglaterra e da França exerceram o “poder curativo” das escrofuloses, o que foi conhecido como The king‟s evil [o mal do rei] (FREUD, 2012, p. 75).

Em vasto estudo sobre o caráter sobrenatural do poder régio, Bloch (1998) descreve que a escrofulose era a denominação dos médicos da Idade Média para afecções inflamatórias ganglionares de origem tuberculosa. Tal patologia, apesar de não ser fatal, incomodava e desfigurava as faces por meio de supurações repugnantes com odor fétido. E os reis, pelo simples toque das mãos e rituais tradicionais do símbolo da cruz, acreditavam e pretendiam curar os escrofulosos.

A crença nesse poder taumaturgo, tradicional e hereditário entre os reis na França e na Inglaterra, se tornou no pobre mundo dos sofredores um estandarte de fé, com menções no século XI e inúmeros acontecimentos documentados a partir do século XII (BLOCH, 1998). A origem do “toque mágico” nas escrófulas, contudo, deve-se aos ecos das crenças primitivas presentes nos povos selvagens e:

[...] tem, incontestavelmente, parentesco com todo um sistema psicológico que, por uma dupla razão, se pode qualificar de „primitivo‟: porque traz a marca de um pensamento ainda pouco evoluído e todo mergulhado no irracional, e porque o encontramos em estado especialmente puro nas sociedades que convencionamos chamar de primitivas (BOLCH, 1998, p. 69).

Também com fundamento na obra de Frazer, confirmando o sentido de ambivalência própria do tabu manifestado por Freud, Bloch (1997, p. 69) afirma que, nos antepassados

sombrios anteriores ao período medieval, o toque em si (do rei) tenha sido tanto para espalhar a contaminação como para efetuar a cura; mas, com o passar do tempo, caiu no esquecimento o lado maléfico e ambivalente do terrível dom real.

Aos padres, por exemplo, eram por muitos considerados com uma espécie de mágicos, venerados ou odiados por mau presságio como responsáveis por intempéries e contágios, a ponto de alguns, ao se depararem com os padres, se benzerem com o sinal da cruz (BLOCH, 1997, p. 81), ou seja, tudo que era sagrado era temido e tudo que era temido tinha poder de matar ou de curar. Da mesma forma a eucaristia e a água benta foram consideradas rituais mágicos maléficos na prática da bruxaria medieval (BLOCH, 1997, p. 331).

Com Carlos Magno (742-814), rei dos francos, expandiu-se o Império Carolíngio, deu-se um renascimento das artes, da religião, da cultura, da tradição romana e do poder da Igreja Católica. Um exemplo desse poder é a sagração de soberanos pela atividade eclesiástica, que aproveitou os ritos dos reinos bárbaros como a unção43, um processo religioso que envolve a aplicação de substâncias oleosas em partes do corpo.

A crença impunha a fantasia de que tal revestimento era a capacitação sobrenatural dada por Deus para que o ungido pudesse desempenhar algo permanente como expressão de autoridade e poder, tanto que a Bíblia, ao dizer sobre a consagração sacerdotal, expõe a unção como ritual44, ao que Bloch afirma (1997, p. 75): “Foi a Bíblia o que enfim fornece o meio de reintegrar na legalidade cristã a realeza sagrada das idades antigas.”

E essa assertiva lançada por Bloch se eleva a partir da leitura da passagem bíblica das recomendações de Samuel, em que o povo, contrariando-o e incorrendo em riscos, insistia em ter um rei para serem julgados como as demais nações45.

43 Bloch (1997, p. 76) registra que, além da prática da unção entre os reis bárbaros, o seu primeiro registro data de 1500 a.C. na sagração do faraó Amenófis IV.

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Êxodo 29, 21: Pegue, então, um pouco do sangue do altar e um pouco do óleo da unção, e faça aspersão com eles sobre Arão e suas vestes, sobre seus filhos e as vestes deles. Assim serão consagrados. Ele e suas vestes, seus filhos e as vestes deles.

45 Samuel convocou o povo de Israel ao Senhor, em Mispá, e lhes disse: “Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: „Eu tirei Israel do Egito, e libertei vocês do poder do Egito e de todos os reinos que os oprimiam‟. Mas vocês agora rejeitam o Deus que os salva de todas as suas desgraças e angústias. E disseram: “Não! Escolhe um rei para nós. Por isso, agora, apresentem-se perante o Senhor, de acordo com as suas tribos e clãs”. [...] E Samuel a todos “Vocês vêem o homem que o Senhor escolheu? Não há ninguém como ele entre todo o povo”. Então gritaram: “Viva o rei!” (1Samuel 10:17-19, 24) [...] Quando, porém, vocês viram que Naás, rei dos amonitas, estava avançando contra vocês, então me disseram: „Não! Escolha um rei para nós‟, embora o Senhor deu um rei a vocês. Se vocês temerem, servirem e obedecerem ao Senhor, e não se rebelarem contra suas ordens, e, se vocês e o rei que reinar sobre vocês seguirem o Senhor, o seu Deus, tudo lhes irá bem! Todavia, se vocês desobedecerem ao Senhor e se rebelarem contra o seu mandamento, sua mão se oporá a vocês da mesma forma

Com a Renascença (fins do século XIV e início do século XVII) advém o declínio da obscuridade das instituições da Idade Média, inclusive em relação à crença do milagre régio, devido tanto à Reforma religiosa, que trouxe a hostilidade protestante ao milagre monárquico46, como pela dúvida ao milagre estrangeiro, que passou a se estender ao milagre nacional; e pelas concepções racionais vinculadas às instituições políticas, como a supressão dos rituais sagrados da realeza pelo regime parlamentar47. A própria fórmula do “toque mágico e curativo” sofreu alteração e passou a ser adotada pelos monarcas milagreiros pela pronúncia das palavras santas e devotas como o rei te toca, Deus te cura enquanto “benziam” os doentes pelo sinal da cruz (BLOCH, 1997, p. 93), o que denuncia a redução da crença na “mágica” que não mais era realizada pelo simples toque do rei, mas pela benção posterior de Deus48.