• Nenhum resultado encontrado

A autoridade régia longobarda e os costumes germânicos

2.3 CARACTERÍSTICAS SOCIAIS E POLÍTICAS DOS

2.3.2 A autoridade régia longobarda e os costumes germânicos

Explica Stefano Gasparri que os caminhos propostos pela arqueologia também indicam uma ausência de unidade de “sangue e de solo” entre povos germânicos, que estavam migrando há muitos séculos e não somente entre a antiguidade e a Idade Média.176 Nessa perspectiva, os germânicos, como povos amiúde nômades, não vinculavam o domínio de um território específico ao poder privado de determinadas famílias pelo culto aos antepassados – como em Roma177 – tornando, a princípio, todos os indivíduos livres da tribo como relativamente iguais na vida em comunidade e portadores dos mesmos direitos.

Isso permite conjecturar, por outro lado, que os germânicos tinham como característica principal o exercício do poder de comando diretamente sobre as pessoas – tratadas individualmente – fossem elas membros da própria estirpe ou pessoas dominadas nas batalhas e inseridas nas comunidades. Mas isso somente ocorreria em relação às pessoas não-livres (mulheres, crianças e escravos), que ficavam

176 GASPARRI, Stefano. Prima delle nazioni. Op. cit., p. 61-3.

177 Concernente ao patrio poder como um poder legítimo e absoluto no ambiente doméstico

romano e sua relação com a estrutura política romana, consultar, entre outros: CICCO, Cláudio de. Direito: tradição e modernidade. São Paulo: Ícone, 1993, p. 27; CERAMI, Pietro. Il principato. Op. cit., p. 189-263; CÍCERO, Marco Túlio. Da república. São Paulo: Escala, s/d.; CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1995; DUBY, Georges. Poder privado e poder público. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (org.). História da vida privada: da europa feudal à renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, v.2, p. 19-20; MERÊA, Paulo. Estudos de direito visigótico. Coimbra: Atlântida, 1948, p. 02; MOMMSEN, Teodoro. Derecho penal romano. Santa Fe de Bogotá: Temis, 1999, p. 11; NISBET, Robert. Os filósofos sociais. Brasília: UNB, 1982, p. 48; NOGUEIRA, Jenny Magnani de O.. A Instituição da Família em a Cidade Antiga. In: WOLKMER, Antônio Carlos (Org.). Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey: 2008, p. 105- 120.

submetidas ao poder de um guerreiro, porquanto entre os guerreiros prevaleceria a igualdade entre os homens livres.

Nos tempos de guerra, porém, surgiria uma provisória relação de hierarquia e disciplina tipicamente militar – comando e obediência – e que deveria desaparecerer quando eram tratados assuntos pessoais – alheios à guerra – entre guerreiros.178 Isso explicaria a ausência do rei como um personagem judicante e detentor de um ius puniendi público entre os germânicos na antiguidade, além de permitir a compreensão do direito consuetudinário, que pertenceria à comunidade de indivíduos livres e iguais, e não a potestades políticas pré-definidas e legitimadas por um poder tradicional divinizado.

Jacques Le Goff, ao tentar explicar a figura do rei medieval, que seria ungido e coroado por representantes diretos de Deus, explica que entre os germânicos a idéia de rei era diferente da cristã (hebraica- romana):

A palavra gótica Kuni, que significa “raça, família”, é aparentada à latina gens e dará as palavras King e König. Este é o homem bem nascido, o homem nobre, e o rei medieval recolhe também essa herança germânica do sangue. Ele é definido não somente por uma boa família mas também em termos de aristocracia e nobreza. O rei é o rei de todo o povo, porém permanece sempre especialmente ligado à nobreza e deve respeitar os privilégios dos nobres.179

Os longobardos aprenderam desde cedo – como conta a saga dos winnili – que quem tivesse intenção de ser independente

178 Nesse sentido, consultar: GIORDANI, Mário Curtis. Op. cit., p. 19. 179

LE GOFF, Jacques. Rei. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente medieval: volume II. Bauru: EDUSC, 2006, p. 397.

inevitavelmente teria que ser guerreiro ou seria rapidamente destruído ou dominado outras por outras estirpes.180 Como povo nômade, os longobardos manifestariam o poder político de modo diverso dos romanos, porquanto estes tinham nas tradições de famílias e solo pátrios os principais elementos de legitimação política das autoridades públicas, enquanto que os germanos não tinham um rei permanente, com poderes políticos e sacros em relação aos seus súditos, mas estavam, nas palavras de Michel Rouche, “condenados” a vencer para poder manter sua autoridade perante seus companheiros guerreiros.181

A convivência dos guerreiros longobardos com tropas bizantinas no século VI permitiu a inserção dos reis longobardos nas práticas políticas latinas.182 O oitavo rei mencionado na tradição oral longobarda, Wacho, consolidou a situação de federado bizantino quando, entre outras contribuições bélicas, seus guerreiros participaram da guerra greco-gótica. O papel político de destaque para os longobardos no século VI é sintetizado por Jörg Jarnut:

Nel corso di un regno quasi trentennale Vacone riuscí a fare dei Longobardi i signori di una grande dominazione che si estendeva dalla

180 Como diz Claudio Azzarra (in. Op. cit., p. LI) “Nella società longobarda la capacità

giuridica dell'individuo è strettamente legata alla capacità di portare le armi: pertanto, essa non solo non viene riconosciuta ai membri del vasto gruppo dei non liberi (che appare fortemente stratificato al proprio interno), ma nemmeno alle donne, le quali sono perpetuamente sottoposte alla protezione (mundio) di un uomo, sia esso il padre, il marito, un altro familiare o persino, in casi estremi, lo stesso re.” [Na sociedade longobarda a capacidade jurídica do indivíduo é estreitamente ligada à capacidade de portar armas: portanto, isso não só não vem reconhecido aos membros do vasto grupo dos não-livres (que aparece fortemente estratificado internamente), mas nem mesmo às mulheres, as quais são colocadas à proteção (mundio) de um homem, seja este o pai, o marido, um outro familiar ou até, em casos extremos, o próprio rei.]

181 Cf. ROUCHE, Michel. Alta idade média ocidental. Op. cit., p. 406.

182 Sobre a política-administrativa militarizada implantada na Itália bizantina, oposta aos

programas enunciados por Justiniano em relação aos aspectos jurídicos civis e militares, consultar: TABACCO, Giovanni. Op. cit., p. 97-8.

Boemia, dove ancora nel secolo IX erano visibili i resti del suo palazzo regio, all'Ungheria: una dominazione che dopo la caduta del regno turingio costituiva, accanto a Bisanzio e al regno dei Franchi, una delle piú importante potenze europee.” 183

Após a morte de Wacho, o seu filho (Walthari) reinou por sete anos e em seguida Audoíno usurpou o trono da linhagem dos letíngios.184 Uma cena interessante sobre a força da tradição germânica é contada por Paulo Diacono, porquanto Alboíno, filho do rei Audoíno, após ter matado um dos filhos do rei gépida (Turisindo) em batalha185, fora levado por guerreiros longobardos para sentar-se à mesa do rei, nas celebrações da vitória: Quibus Audoin respondit, se hoc facere minime

posse, ne ritum gentis infringeret. “'Scitis”, inquit, “non esse aput nos consuetudinem, ut regis cum patre filius prandeat, nisi prius a rege gentis exterae arma suscipiat.”186

Alboíno, então, teria ido à corte do derrotado rei gépida, com quarenta acompanhantes e explicado a razão de sua aventura. Fora recebido em um grande banquete e, embora tivessem os longobardos que suportar as provocações dos demais guerreiros gépidas, que quase terminou em briga, o rei intercedeu dizendo que “non esse victoriam

183 DIACONO, Paolo. Op. cit., p. 17-8. [No curso de um reinado de quase trinta anos Wacho

consegue fazer dos Longobardos os senhores de um grande domínio que se estendia da Boêmia, onde ainda no século IX era visível os restos de seu palácio régio, até a Hungria: um domínio que depois da queda do reino turíngio, constituía, junto com Bizâncio e ao reino dos Francos, uma das mais importantes potencias europeias.]

184 Cf. DIACONO, Paolo. Op. cit., p. 18. 185 Ano de 551.

186 DIACONO, Paolo. Op. cit., p. 44. [Mas Audoino respondeu a eles que não poderia,

absolutamente, fazê-lo, para não infringir o costume de seu povo. “Sabeis”, disse, “que não é costume junto de nós que o filho do rei coma com o pai, se antes não tiver recebido as armas do rei de uma nação estrangeira.”]

Deo placitam, dicens, cum quis in domo propria hospitem perimit.”187. E assim, o rei gépida entregou as armas de seu filho morto para Alboíno “eunque cum pace incolomem ad patris regnum remisit. Reversus ad

patrem Alboin, eius dehinc conviva effectus est.”188

Tal passagem, além de se harmonizar com a tradição de hospitalidade germânica relatada séculos antes por Tácito, desponta a importância da observância dos costumes entre eles que, ao contrário das potestades romanas da antiguidade tardia189, os reis não definiam os costumes, mas eram símbolos de sua continuidade e, portanto, a legitimidade dos reis germânicos estaria estreitamente ligada à observância e confirmação das tradições de suas estirpes perante seus pares guerreiros. Isso seria refletido nas normas jurídicas longobardas dos séculos VI e VIII.