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3.2 A FORMAÇÃO, DESENVOLVIMENTO E ESAPARECIMENTO

3.2.2.2 A Igreja romana e o trono longobardo

Os principais personagens que atuaram para a conversão de todo o povo longobardo ao catolicismo se revelaram no crepúsculo do século VI, entre eles, no Reino Longobardo, a rainha católica Teodolinda293 que com a morte de seu marido Autari (5 de setembro de

292 Destaques sobre a conversão dos longobardos ao catolicismo e a significativa melhora da

vida dos habitantes da Itália com esse fenômeno político-social, consultar: SESTAN, Ernesto. Op. cit., p. 272-4.

293

A Rainha Teodolinda (570-628), Bávara e de família nobre (Letíngia) até nos dias de hoje é venerada na Itália como sendo a principal responsável pela conversão dos longobardos à fé católica. A rainha, embora amiga do Papa Gregório Magno – do qual recebeu a famosa Coroa de Ferro –, era defensora dos cismáticos dos Três Capítulos. A igreja que mandou construir em Monza – local de seu sepultamento – constitui um dos principais sítios arqueológicos em busca de vestígios da extinta cultura longobarda. Seu nome, conforme a onomástica germânica do século VI, reflete a tradição do povo guerreiro longobardo: “thiod(a) = popolo e linda = tiglio e scudo fatto col legno di tiglio; quindi significa 'scudo del popolo'.” Cf: GALBIATI, Giuseppe. Op. cit., p. 12. [thiod(a) = povo e linda = tiglio e escudo feito de madeira de tiglio; portanto significa 'escudo do povo‟”]. Como exulta Paolo Diacono (p. 172): “Per hanc quoque reginam multum utilitatis Dei ecclesia consecuta est. Nam pene omnes ecclesiarum substantias Langobardi, cum adhuc gentilitatis errore tenerentur, invaserunt. Sed huius salubri supplicatione rex permotus, et catholicam fidem tenuit, et multas possessiones ecclesiae Christi largitus est atque episcopos, qui in depressione et abiectione erant, ad dignitatis solitae honorem reduxit. ” [Também pelo mérito desta rainha a Igreja de Deus obteve grandes benefícios. De fato, os Longobardos, quando ainda eram imersos nos erros do paganismo, apossaram-se de quase

590) acabou reinando sob os longobardos até escolher um outro marido que pudesse se tornar rei.294 A rainha, que era estimada pelo povo longobardo, escolheu para marido Agilulfo, Duque de Turim, que era, todavia, ariano. Nas palavras de Paolo Diacono, este rei “incoante iam

mense novembrio, regiam dignitatem. Sed tamen, congregatis in unum Langobardis, postea mense maio ab omnibus in regnum apud Mediolanum levatus est.”295

Na mesma época (3 de setembro de 590) o Papa Gregório Magno (540-604), uma das figuras mais proeminentes do Ocidente cristão, iniciou o seu pontificado. Tal papa, oriundo de família aristocrata romana, viveu em Constantinopla entre 579 e 585, representando os interesses do seu antecessor no trono de São Pedro, especialmente para obter do Imperador um empresa militar contra os longobardos; tarefa essa que restou inexitosa, porquanto o Império estava debilitado frente aos sucessivos ataques de eslavos e persas em seus territórios no Leste.

todos os bens das igrejas. Mas, movido pelas salutares súplicas dela, o rei se converteu à fé católica e distribuiu também muitas posses para a Igreja de C risto e devolveu a honra habitual os bispos que se encontravam em uma condição de aviltamento e humilhação.]. Porém, Lidia Capo (Op. cit., p 493-4) explica que uma epístola de São Colombano desmente a conversão do rei Agilulfo ao catolicismo, que teria continuado pagão, mas respeitava o clero.

294 Cf. DIACONO, Paolo. Op. cit., p. 172. Diz o autor que: “Regina vero Theudelinda quia

satis placebat Langobardis, permiserunt eam in regia consistere dignitate, suadentes ei, ut sibi quem ipsa voluisset ex omnibus Langobardis virum eligeret, talem scilicet qui regnum regere utiliter possit.” [Quanto à rainha Teodolinda, porque agradava muito aos Longobardos, esses lhe permitiram de manter a dignidade régia, convidando-a a escolher entre todos os Longobardos o esposo que quisesse: obviamente um que pudesse ser útil ao reino.]

295 DIACONO, Paolo. Op. cit., p. 174. [assumiu a dignidade régia já no início do mês de

novembro. Foi, porém, elevado rei por todos os Longobardos reunidos mais tarde, em Milão, no mês de maio.]

O relacionamento entre o Reino Longobardo e o papado é revelado por algumas epístolas296, das quais o pontífice elogiava as atitudes do rei longobardo (Agilulfo) em relação à paz nos campos, além de pedir apoio à rainha Teodolinda para manter o marido no caminho da paz.

Stefano Gasparri comenta que as epístolas de Gregório Magno são praticamente as únicas fontes históricas disponíveis que retratam as relações entre a população itálica dominada e os longobardos na época, como, por exemplo: a escandalização do papa em relação a dois episódios sanguinários em que camponeses itálicos foram dizimados por se oporem a participar de rituais a Wotan; as admoestações aos bispos católicos cismáticos em terras longobardas, com exigências de submissão deles ao papa; o pedido ao rei Agilulfo para preservar os camponeses, pois eles seriam úteis tanto ao clero quanto aos longobardos. Salienta o mesmo autor que no tempo de Gregório Magno se fez uma espécie de trégua entre longobardos e Império, pois a Itália estaria “estavelmente” invadida.297

Bertrand Russell colaciona, em sua obra, trecho de uma epístola de Gregório Magno ao Imperador bizantino em 602, no qual é desvelado o pensamento político da Igreja Católica na aurora do século VII: “Há uma diferença – escreve ele – entre os reis das nações e os imperadores da república: os reis das nações são senhores de escravos, mas os imperadores da república são senhores de homens livres.”298

296

Para Bertrand Russell (In: História da filosofia ocidental. Op. cit., p. 86.), a habilidade de estadista de Gregório Magno foi revelada pelas suas inúmeras epístolas, onde se dirige os destinatários como líder – exceto ao Imperador –, censurando membros do clero e príncipes seculares em suas condutas, além de oferecer-lhes conselhos.

297 GASPARRI, Stefano. Prima delle nazioni. Op. cit., p. 141-4. 298

RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Op. cit., p. 90. Para Ferdinand Lot (In: Op. cit., p. 318): “Face ao imperador, a atitude do papa é deferente, humilde mesmo.

De tal passagem, pode-se conhecer a ideia de legitimidade política na Idade Média, que estaria vinculada ao trono imperial e tal mentalidade mostrou-se retratada na carta do papa. Como o clero fazia parte da res publica299 por ser constituída de homens livres, o

reconhecimento da existência dos reinos bárbaros seria tão somente em relação ao domínio das pessoas dominadas e, portanto, não teriam outro tipo de poder senão a própria força. Tal revelação confirma a tese de que os germanos não tinham noção de poder político oriundo do solo sacro como nas sociedades da Antiguidade clássica300, mas exerciam seus poderes derivados da força de suas armas, como acontecia há séculos na Germânia.301

Nessa perspectiva, a legitimidade do poder político aos reis germânicos, no início da Idade Média, aos olhos da Igreja, somente

As lisonjas que um homem como Gregório o Grande prodigaliza à autêntica besta que é o imperador Phocas ultrapassam todas as medidas.”

299

Paolo Diacono (Op. cit., p. 186-90), colaciona uma das epístolas de Gregório Magno à Rainha Teodolinda, no momento em que o rei Agilulfo estava rumando à Roma para tomar a cidade, depois de ter massacrado alguns duques rebeldes que tinham passado para o lado dos bizantinos como federados: “Salutantes vos praeterea paterna dilectione hortamur, ut aput excellentissimum coniugem vestrum illa agatis, quatenus christianae rei publicae societatem non rennuat. Nam sicut et vos scire credimus, multis modis est utile, si se ad eius amicitiam conferre voluerit.” [Saldando-vos além do nosso paterno afeto, exortamo- vos a fim de que vós ajais junto de vosso excelentíssimo cônjuge para que não renuncie a aliança da rei publicae. De fato, como cremos e que também vós sabeis, é, de muitas maneiras, útil se ele entregar-se à sua amizade.]

300

Nesse sentido, consultar: GROSSI, Paolo. O direito entre poder e ordenamento. Op. cit., p. 46.

301 E, vale dizer, também na Itália dos bizantinos. Nesse caso, Giovanni Tabacco (Op. cit., p.

97) afirma: “Le esigenze di guerra, di una guerra cento volte sospesa e ripresa in ogni parte d'Italia, imposero nelle terre bizantine l'assoluta prevalenza della'autorità militare sui poteri civili,” [As exigências da guerra, de uma guerra cem vezes suspensa e retomada em todas as partes da Itália, impuseram nas terras bizantinas a absoluta prevalência da autoridade militar sobre os poderes civis]. A imitação de poderes políticos militarizados entre os longobardos seria também uma tradição germânica reforçada pela própria prática política bizantina, cujos exarcas seriam chefes militares designados para a reconquista. Os símbolos das autoridades germânicas também demonstravam a origem do poder: brasões com escudos, lanças, espadas, elmos etc.; enquanto que em Roma os mantos, coroas e cetros é que revelavam suas potestades.

poderia proceder de uma formal declaração do Imperador.302 Por isso, uma das características dos Reinos Bárbaros foi a imitatio imperii, dando a impressão de uma “continuidade” da cultura romana no Ocidente medieval303. Porém, como diz Jacques Le Goff: “A evolução do poder imperial e do poder pontifício na Idade Média opera em favor da emancipação do rei e do seu poder, tanto nas relações com o imperador como na relação com o papa.”304

Era a força bélica do populus-exercitus que assegurava o poder aos reis longobardos. Isso pode ser verificado no reino de Agilulfo, porquanto vários duques que lhe obstaram os intentos de centralização política foram perseguidos, eliminados e substituídos pelos aliados ao rei, como revelado no Origo gentis langobardorum.305 Jörg Jarnut explica que os motivos da perseguição do rei Agilulfo aos chefes dos ducados se deu porque alguns deles tinham passado para o lado dos francos, outros dos bizantinos e outros, ainda, representando guerreiros pagãos, que odiavam católicos, viam o rei e a rainha como traidores das tradições da estirpe.306

Assim, a legitimidade política dos reis longobardos se dava tão somente entre seus súditos guerreiros, representantes de uma cultura tipicamente germânica, e ao povo itálico dominado; enquanto que a legitimidade sacra, que poderia dar aos reis poderes de legislador do povo cristão continuava nas mãos de seus principais inimigos políticos: a Igreja e o Império. Por isso, não é correta a crença de que a Igreja teria

302

Sobre o assunto, consultar: BALARD, Michel. Bizâncio visto do Ocidente. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente medieval: volume II. Bauru: EDUSC, 2006, p. 130-1.

303 Cf. BIBIANI, Daniela; TÔRRES, Moisés Romanazzi. Op. cit., p. 8. 304 LE GOFF, Jacques. Rei. Op. cit., p. 398.

305

ORIGO GENTIS LANGOBARDORVM. Op. cit., p. 57.

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assumido o poder político na Itália após a queda de Roma e tampouco é verossímil que os reis germânicos representariam poderes religiosos, com apoio de eclesiásticos, desde o início da Idade Média. A separação entre poder político, legitimidade sacra e administração da justiça entre os súditos ficaria evidenciada nas regulamentações normativas longobardas dos séculos VII e VIII.