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A POLÍTICA IMPERIAL NA ITÁLIA TARDO-ANTIGA

A administração política na Península Itálica, até a irrupção dos longobardos, pode ser definida, em linhas gerais, como sendo a continuidade, ainda que combalida, dos institutos que foram sendo aprimorados no Império Romano na antiguidade tardia. O poder dos imperadores romanos era exercido, oficialmente, em relação a todos os súditos que estavam sobre os territórios imperiais e portanto, utilizava- se o princípio jurídico da territorialidade das leis.

Embora autores modernos tenham dado uma especial atenção ao Edito de Caracala, de 212, porquanto teriam sido estendidos os direitos de cidadania romana para todos os habitantes do Império228, o escopo do imperador perante a famosa crise do século III foi o aumento da arrecadação de tributos e não a equiparação jurídica entre todos os habitantes do Império com os cidadãos de Roma.229 Tendo em

228 Entre os autores que acreditam na revolução político jurídica do Edito: SESTAN, Ernesto.

Op. cit., p. 51-2; CALASSO, Francesco. Op. cit., p. 122.

229 Stefano Gasparri (In: Prima delle nazioni. Op. cit., p. 23-4) explica que a evidência de que

os juristas latinos não davam muita importância para texto do Imperador Caracala é o silêncio das fontes do século III a respeito do Edito, que, se fosse realmente entendido como uma equiparação jurídica entre os romanos, seria um texto revolucionário e

consideração esse fato e a ausência de fontes antigas que atestariam a ideia de “universalismo romano”, Stefano Gasparri lança a hipótese de que os camponeses e estrangeiros – grande parte da população romanizada – não comungavam de todos os aspectos da cultura de Roma, incluindo, neste caso, o Direito.230

Outro indício que aponta para uma diferenciação de institutos jurídicos entre os cidadãos romanos e o restante das pessoas habitantes do Império é a noção de Direito público e Direito privado presente no Digesto do Imperador Justiniano:

D. 1.1.1.2: “Huius studii duae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum ius est quod as statum rei Romanae spectat, privatum quod ad utilitate singolorum utilitatem: sunt enim quaedem publice utilia, quaedam privatim. Publicus ius in sacris in sacerdotibus, in magistratibus consistit. Privatum ius tripertitu est: collectum etenim est ex naturalibus praeceptis aut gentium aut civilibus.”231

inspirador de inúmeros comentários. Outro indício do desconhecimento do texto jurídico - administrativo do século III dos seus contemporâneos é que o Edito foi referido de maneira errada na compilação justinianea, o que mostra que os autores latinos não teriam considerado o impacto dos termos do Edito no que diz respeito à extensão de direitos aos habitantes. Nessa perspectiva, pode-se verificar que no Digesto de Justiniano (In: Op. cit., p.68-9), o nome de Caracala foi erroneamente indicado como sendo do Imperador Antonino: D. 1.5.17 “In orbe Romano qui sunt ex constitutione imperatoris Antonini cives Romano effecti sunt.” [Os que estiverem no Império Romano por uma constituição do imperador Antonino foram feitos cidadãos romanos.] Ainda, sobre o intuito de “tributabilidade” do Imperador sobre todos os habitantes do Império, consultar: BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 58.

230 GASPARRI, Stefano. Prima delle nazioni. Op. cit., p. 26.

231 JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabbatius. Op. cit, p. 19-20. [Direito público é o que se

volta ao estado da res Romana, privado o que se volta à utilidade de cada um dos indivíduos, enquanto tais. Pois alguns são úteis publicamente, outros particularmente. O direito público se constitui nos sacra, sacerdotes e magistrados. O direito privado é tripartido: foi, pois, coligido ou de preceitos naturais ou civis, ou das gentes.] Para Emílio Costa (In. Historia del derecho romano publico. Madrid: Editorial Reus, 1930, p. 03.): “El adjetivo publicus (es dicir populicus de populus) significó propiamente en el linguaje romano la pertenencia a un populus, a una colectividad organizada en civitas, […].” Sobre o assunto, também consultar: MOMMSEN, Teodoro. Op. cit., p. 3; DUBY, Georges. Poder privado e poder público. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (org.).

Soa claro que o Direito público era exercido pelos magistrados romanos232 e diziam respeito às coisas sacras. A sacralidade, como um elemento de legitimação do poder nas sociedades da antiguidade clássica tinha como fundamento o território dos antepassados (no âmbito privado) e das cidades sacralizadas, como Roma (a urbs), no âmbito público.233 Nesse caso, as lições jurídicas de Justiniano são expressivas em relação à tradição sagrada vinculada ao solo quando diferencia o direito natural – comum a todos os seres – dos direitos das gentes, sendo que estes caracterizariam as relações dos homens entre si e “ut

parentibus et patriae pareamus.”234

Pode-se pensar que as prerrogativas da sacralidade não se estendiam aos territórios distantes da Urbs, que eram considerados como domínios (províncias235), administrados amiúde por chefes militares designados pelo imperador para garantir as suas conquistas; e não como extensões da patria e das tradições sacro-jurídicas (públicas)

História da vida privada: da europa feudal à renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, v.2, p. 19-20, entre outros.

232

Na obra de Marco Túlio Cícero (106–43 a.C.), (In: Op. cit), pode-se verificar os discursos de exaltação das virtudes pessoais do cidadão de Roma, como a honra e a glória (do pai de família) no sentido de se governar bem a República romana, ou seja, a “pátria”. Neste caso, o “cidadão romano” era aquele que, vitorioso em seus assuntos privados, podia ascender à magistratura, ou seja, vencer – conquistar e domesticar – que era o requisito supremo para a glória.

233 Sobre o assunto, consultar: COULANGES, Fustel de. Op. cit..

234 JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabbatius. Op. cit, p. 20. D. 1.1.2. [a fim de que

correspondamos aos nossos antepassados e à pátria.]

235

Michel Foucault (In. Microfísica do poder. op. cit, p. 158) explica: “O que se deve enfatizar, a respeito de certas metáforas espaciais, é que elas são tanto geográficas quanto estratégicas, e isso é muito normal visto que a geografia se desenvolveu à sombra do exército. Entre o discurso geográfico e o discurso estratégico, pode-se observar uma circulação de noções: a região dos geógrafos é a mesma que a região militar (de regere, comandar) e província o mesmo que território vencido (de vincere). O campo remete ao campo de batalha...”

romana.236 Sendo assim, há mais dúvidas do que certezas a respeito da hegemonia cultural romana na antiguidade tardia, especialmente no que concerne ao Direito Público, pois a tradição jurídica de Roma seria diferente dos mecanismos de resolução de conflitos adotados pelas comunidades existentes nas províncias.237

Por outro lado, um aspecto político expressivo da antiguidade tardia foi o processo de unificação jurídico-administrativo promovido pelos imperadores Diocleciano238 e Constantino239, que lograram êxito

236

Nesse sentido, consultar: ROSTOVTZEFF, Michael Ivanovitch. Op. cit., p. 163-7. O autor salienta que desde que Otávio Augusto, em 27 a. C., conseguiu com que o Senado da República Romana o declarasse Chefe do Senado e Primeiro Cidadão, ou Princeps, com o acréscimo de um título adicional de “Augusto” (Sagrado) em seu nome. Isso, entre outros importantes aspectos, representou também a vitória dos cidadãos romanos sobre as províncias; e a Urbs governada por um ser divinizado deveria ser um território no qual a Itália e os cidadãos romanos fossem os senhores, e os habitantes das províncias apenas servos e súditos.

237

O Imperador Justiniano (Op. cit., p. 22) explica que o direito das gentes nasceu e se desenvolveu nas relações sociais típicas da civilização (reinos, domínios, campos, edifícios, comércios) e, em seguida esclarece: D.1.1.6pr: “Ius civile est, quod neque in totum a naturali vel gentium recedit nec per omnia ei servit: itaque cum aliquid addimus vel detrahimus iuri communi, ius proprium, id est civile efficimus.” [Ius civile é o que não se afasta no todo do direito natural ou do dirito das gentes, bem como não serve a este em todas as coisas. Assim, quando acrescentamos ou subtraímos algo do direito comum, tornamo-lo um direito próprio, isto é, um direito civil.] Neste caso, se observa que o Direito Civil romano era para o povo da cidade de Roma, como um ius proprium e uma imposição a todas as comunidades que povoavam as províncias do vasto Império. Sobre o respeito que os romanos tinham pelos costumes jurídicos dos povos dominados e os diversos direitos locais nos territórios imperiais, consultar: GIORDANI, Mário Curtis. História dos reinos bárbaros/II. Op. cit., p. 125.

238 No governo do Imperador Diocleciano foi inaugurado o chamado Dominato, em que o

poder dos imperadores adquiriram uma potente fundamentação religiosa. No período de seu governo (382-305), o Império Romano foi desmembrado em dois governantes e, posteriormente em quatro (Tetrarquia). O oriente continuou sendo administrado por Diocleciano, enquanto o Ocidente passou a ser governado pelo general Maximiliano. Os dois “Augustos” eram auxiliados por dois “Césares” (Galério e Constâncio Cloro). Nas palavras de Pietro Cerami (In. Op. cit., p. 268): “Nonostante l’apparenza, dunque, com la tetrarchia non si realizzava una divisione dell’impero in due o in quattro parti, né si può parlare della correggenza di quattro imperatori; in realtà, l`impero era e restava unitario, subordinato alla grande autorità di Diocleziano, che diede un’impronta chiaramente assolutistica al suo governo, introducendo un cerimoniale di origine orientale, che, ad esempio, considerava l’imperatore oggetto di adorazione alla stregua di una divinità.” [Não obstante a aparência, com a tetrarquia não se realiza uma divisão do império em duas ou quatro partes, nem se pode falar da corregência de quatro imperadores; na realidade, o império era e restava unitário, subordinado à grande autoridade de Diocleciano, que deu

em inserir todos os habitantes do Império em um quadro administrativo autoritário caracterizado por uma forte centralização do poder político, que coincidiu com a nascente estruturação da Igreja Romana.240

Para Pietro Cerami, o Imperador Constantino possuía uma visão unitária do poder e, para ele, a religião apresentava um dos aspectos desse poder. Exemplo disso é que ele utilizara de sua autoridade imperial para resolver questões internas da Igreja, quando convocou, em 325, o Concílio de Nicéia, no qual foram fixados os mais importantes fundamentos canônicos da Igreja Católica.241 Nas palavras do mesmo autor italiano: “Con ciò, si veniva a stabilire implicitamente se non

proprio che l’imperatore era anche capo supremo della Chiesa, quanto meno una sorta di suo alto tutorato, che refforzava ulteriormente il potere imperiale.”242

No plano da administração da justiça, Teodoro Mommsen revela que a Igreja, nesse contexto, carecia de tudo o que era necessário um marca claramente absolutística ao seu governo, introduzindo um cerimonial de origem oriental, que, por exemplo, considerava o imperador objeto de adoração à semelhança de uma divindade.]

239 Com Constantino (306-337) – e outro Augustus chamado Licínio - a Constituição romana

assumiu uma posição decididamente monárquica. Esse Imperador foi o responsável pelo famoso Edito de Milão, de (provavelmente) 13 de junho 313, que tornou lícito o culto dos cristãos, que antes era tido como um atentado repugnante à ordem moral romana e, por isso, crimen maiestatis. Este ligamento do Imperador com a Igreja se manifestou através de vários procedimentos jurídicos a favor dos ideais cristãos. Sobre o assunto, consultar: BROWN, Peter. Antiguidade Tardia In. ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 243-257; CERAMI, Pietro; et alli. Op. cit., p. 270-1; SURGIK, Aloísio. Gens gothorum: as raízes bárbaras do legalismo dogmático. Curitiba: Livro e Cultura, 2003, p. 35.

240 Nas palavras de Karine Salgado (In. A filosofia da dignidade humana: A contribuição do

alto medievo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009, p. 126): “A formação da Igreja enquanto instituição permeia toda a história do Cristianismo e é de fundamental importância para a compreensão das relações que se estabelecem entre ela e o poder político durante a Idade Média.”

241 Alguns comentários sobre o cenário do Concílio podem ser vistos em em: HAMMAN, A.

Santo agostinho e seu tempo. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 287.

242 Cf. CERAMI, Pietro. Op. cit., p. 271. [Com isto, se viria a estabelecer implicitamente, se

não propriamente, que o Imperador era também o chefe supremo da Igreja, ao menos como uma medida de seu alto tutorado, que reforçava ulteriormente o poder imperial]

para o exercício de um poder jurisdicional: “Pero esa Iglesia fue

elaborando sucedáneos y sustitutivos de todo esso, y lo fue elaborando con la tolerancia y el reconocimiento del poder supremo de los emperadores.”243 Começava, assim, uma aproximação importante entre o programa religioso universal cristão e os discursos legitimadores do poder político no Império Romano, que tinham no imperador a figura do

princeps legibus solutus.244

Para o reconhecimento e obediência às normas imperiais por todos os súditos habitantes no vasto Império Romano, já não era mais suficiente a violência das armas em manobras militares e a submissão à força dos povos conquistados.245 Em um mundo em que a fé cristã era cada vez mais abrangente entre a população – embora não de maneira coerente e uniforme –, a legitimidade do poder imperial pôde ser reforçada com os textos sagrados cristãos, como pode ser visto na

243

MOMMSEN, Teodoro. Op. cit., p. 197.

244

[O príncipe está está livre das leis]. Como explica CERAMI, Pietro. Op. cit., p. 276-7. “Caratteristica fondamentale della monarchia assoluta è la concentrazione di tutti i poteri nelle mani dell’imperatore. Egli non è più um organo della costituzione, definito princeps, in quanto primo fra i cittadini, ma si pone in un certo senso al di fuori della costituzione, essendo considerato dominus et deus”. [Característica fundamental da monarquia absoluta é a concentração de todos os poderes nas mãos do imperador. Ele não é mais um órgão da constituição, definido princeps, enquanto primeiro entre os cidadãos, mas se põe em certo senso fora da constituição, sendo considerado dominus et deus.] Vale refletir que, com essas características, o Imperador romano deveria ser tratado como um enviado da providência divina e intérprete, na terra, da vontade de Deus. Isso não significava que os seus atos políticos, administrativos e jurídicos viessem diretamente de Deus, mas també m não se negava que esses atos eram promanados Dele. Assim, o Imperador, agora também entre a população cristã em todo o território imperial, se tornou detentor exclusivo do poder legislativo, sendo considerado a única fonte viva de direito, acabando com a produção normativa do Senado e dos Pretores. Em suma, o imperador era o definidor legitimo das leis, e estava colocado além e sobre elas.

245

O uso das legiões romanas, para fins particulares dos imperadores e de seus generais, transformaram a antiga lealdade das tropas à cidade de Roma em soldados mercenários. Por isso, no tempo de Constantino, as tropas imperiais, que nos tempos da República somente poderiam ser integradas por honrados cidadãos romanos, agora tinham pessoas das mais variadas etnias, que lutavam nas fileiras romanas por dinheiro ou para conquistar a liberdade proveniente de um longo período de cativeiro. Sobre o assunto, consultar: ROSTOVTZEFF, Michael Ivanovitch. Op. cit., p. 166-7.

Epístola do Apóstolo Paulo aos Romanos, Capítulo 13, 1-7246, transformando os bispos proeminentes em aliados importantes para a administração das populações cristianizadas das províncias e cooptá-las como súditos fiéis do Império.

A estrutura burocrática para a administração dos territórios do Império no século IV era disposta em uma hierarquia piramidal, na qual o Imperador estava no vértice247, embora, na prática, os generais e funcionários imperiais não fossem tão leais como se deveria esperar. Ademais, a união entre a Igreja Católica e os imperadores não provocou uma imaginada integração das diversas etnias existentes nos territórios

246 BÍBLIA SAGRADA. Tradução: Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Erechim: Edelbra,

s.d., p. 1009. “Todo o homem esteja sujeito aos poderes superiores: porque não há poder que não venha de Deus; e os que há esses foram por Deus ordenados 2. Aquele pois que reside à potestade, resiste à ordenação de Deus: e os que resistem, a si mesmos trazem a condenação 3. porque os príncipes não são para temer quando se faz o que é bom, mas quando se faz o que é mau. Queres tu pois não temer a potestade? Obra bem! E Terás louvor dela mesma 4. Porque o príncipe é o ministro de Deus para bem teu. Mas se obrares mal, teme: porque não é debalde que ele traz a espada. Porquanto ele é ministro de Deus, vingador em ira contra aquele que obra mal 5. É logo necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo temor do castigo, mas també m por obrigação de consciência 6. Porque por esta causa pagais também tributos: pois são ministros de Deus, servindo-os nisto mesmo 7. Pagai pois a todos o que lhes é devido: A quem tributo, tributo: a quem imposto, imposto: a quem temor, temor: a quem honra, honra.” Na versão oficial – em latim – da Igreja Católica Apostólica Romana, temos a Vulgata, publicada por volta do ano 400, por São Jerônimo (disponível em <http://www.bibliacatolica.com.br/09/52/13.php>. Acesso em 19 de janeiro de 2011): “1.omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit non est enim potestas nisi a Deo quæ autem sunt a Deo ordinatæ sunt 2.itaque qui resistit potestati Dei ordinationi resistit qui autem resistunt ipsi sibi damnationem adquirunt 3.nam principes non sunt timori boni operis sed mali vis autem non timere potestatem bonum fac et habebis laudem ex illa 4.Dei enim minister est tibi in bonum si autem male feceris time non enim sine causa gladium portat Dei enim minister est vindex in iram ei qui malum agit 5.ideo necessitate subditi estote non solum propter iram sed et propter conscientiam 6.ideo enim et tributa præstatis ministri enim Dei sunt in hoc ipsum servientes 7.reddite omnibus debita cui tributum tributum cui vectigal vectigal cui timorem timorem cui honorem honorem […].” Sobre a Igreja como instituição com a maior legitimidade entre os cristãos, consultar: WOLKMER, Antônio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antigüidade clássica à modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 42.

247

Cf. CERAMI, Pietro. Op. cit., p. 278-9. No mesmo sentido: CALASSO, Francesco. Op. cit., p. 122.

do Império248, constituindo uma automática relação de mando e obediência sobre uma comum base política, jurídica e espiritual associando povos de origem histórica muito diversas (gauleses, africanos, gregos, hebreus etc.), como imagina Ernesto Sestan ao se referir a um hipotético sentimento de romanità anterior à queda de Roma.249 Deveras, disputas entre grupos religiosos cristãos rapidamente envolveram as forças bélicas imperiais, iniciando fervorosos e violentos litígios entre os súditos/fiéis que, reiteradamente, eram resolvidos em concílios eclesiásticos impingindo a desagradável declaração de hereges a determinados grupos de súditos, acarretando, por vezes, a declaração de inimigos do poder territorial legítimo, representado pelo imperador.250

Quase um século antes da queda de Roma, o mundo romano já estava fragmentado por infindáveis disputas internas entre os próprios romanizados e não se pode acreditar que apenas as transformações administrativas e religiosas operadas pelos imperadores iriam resguardar a unidade política do vasto território.251 Nessa perspectiva, Willian

248 Nesse caso, Karine Salgado (In: Op. cit., p. 144-5) ressalta que na época de Constantino

houve uma centralização entorno de Constantinopla, dando “início a um período de enfraquecimento da igreja romana que perde seu papel central.” Isso teria reflexo no Concílio de Nicéia, momento em que a participação de Roma, em questões religiosas, foi pequena. Tais informações reforçam a ideia de que o Ocidente teria sido esvaziado de importância política pelos próprios “romanos”, que concentraram suas riquezas e virtudes da civilização na parte Oriental o Império a partir do século VI.

249

SESTAN, Ernesto. Op. cit., p. 48.

250 Sobre o assunto, Stefano Gasparri (In: Prima delle nazioni. Op. cit., p. 30-55) apresenta

detalhes sobre movimentos étnicos e religiosos populares que ocorreram após o Edito de Milão contra os romanizados, especialmente em relação aos donatistas – heresia surgida no Norte da África e que seus rigorosos sectários seriam “anti-romanos” - e as becaudae, que seriam revoltas camponesas na Gália e também na Espanha, promovidas por grupos de pessoas marginalizadas e contrárias a Roma mas que não eram germânicas, demonstrando que, longe de uma integração ideológica e pacífica entre os habitantes do Império, há muitos indícios de que o “universalismo romano” é criação discursiva de autores modernos.

251

Não se deve imaginar uma unânime, automática e passiva admissão do povo romanizado ao discurso dos papas em substituição à tradição secular de culto ao Imperador. Fato que

Carroll Bark sintetiza o fim do Império Romano do Ocidente afirmando que a crise do século III destruiu as bases do Império e que os Imperadores Diocleciano e Constantino, “numa situação extremamente complicada, exigindo visão extraordinária, finura e estímulo ao talento