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Longobardos versus francos: o fim do Reino Longobardo

3.2 A FORMAÇÃO, DESENVOLVIMENTO E ESAPARECIMENTO

3.2.3 Século VII: a consolidação do Reino Longobardo

3.2.4.4 Longobardos versus francos: o fim do Reino Longobardo

Com a morte de Astolfo, o deposto rei Ratchis deixou o monastério e retornou ao palácio de Pavia, mas uma intensa resistência lhe surgiu com Desidério que, apoiado pelo Papa Estevão II e Pepino, com a promessa de respeitar os tratados de paz e retirar-se dos territórios bizantinos conquistados por Liutprando, subiu ao trono. Morto o Papa Estevão II, seu irmão Paulo I (756-767) assumia o trono de São Pedro, e Desidério aproveitou a situação para prorrogar o cumprimento da promessa de restituir os territórios conquistados por Liutprando e, em pouco tempo, repristinou a posição de força do Reino Longobardo na Itália central e meridional.

Astolfo criou na Bréscia um monastério riquíssimo333 e conseguiu submeter outros da Itália setentrional, formando uma espécie

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Sobre a construção do patrimônio de São Pedro como uma substituição da jurisdição bizantina de Ravenna e, também, como uma tentativa de criar um território anti - longobardo pela Igreja e francos, com a restauração de uma ideia da Res Publica Romanorum na Itália, consultar: TABACCO, Giovanni. Op. cit., p. 107-9.

332

Cf. JARNUT, Jörg. Op. cit., p. 110-116.

333

Cf. JARNUT, Jörg. Op. cit., p. 120. Tal historiador explica: “Nella cittá natale di Brescia il re e sua moglie Ansa avevano fondato nel 753 il monastero di famiglia di San Salvatore, di cui Desiderio fece badessa la figlia Anselperga. Alla giurisizione di questo monastero, dotato com eccezionale ricchezza di mezzi privati e di donazioni provenienti dal patrimonio fiscale, Desiderio sottomisse altri monasteri in Lombardia, Emilia e Toscana, e creò cosi una potente federazione di monasteri, soggetta al suo direito intervento.” [Na cidade natal da Bréscia o rei e sua mulher Ansa fundaram em 753 o monastério de família

de federação de monastérios sujeitos à sua direta intervenção, visando com isso influir politicamente na eleição papal. A morte de Pepino, em 768, representou para o rei longobardo um particular golpe de sorte, pois em 769 estourou um grave conflito entre os irmãos carolíngios Carlos e Carlomano. Nessa época, e com a influência da viúva de Pepino, foi costurada uma aliança entre Carlos e Desidério, na qual o jovem rei franco casou-se, sob protestos do papa, com a filha do rei longobardo, que, dessa maneira, veio a desenvolver um papel importante nos dissídios internos do Reino Franco.

Em Roma, Desidério aproveitou circunstâncias entre facções antagônicas e lutou contra as tropas do franco Carlomano que estavam contra o papa, fazendo com que o rei dos longobardos desempenhasse um papel hegemônico nas potências ocidentais. Todavia, entre 771 e início de 772 duas mortes determinaram uma reviravolta total na situação política da Europa Ocidental, o que foi fatal para Desidério: I) em dezembro morreu Carlomano e Carlos assumiu a integridade do Reino Franco, sem resistência; II) em janeiro morreu o pontífice Estevão IV e os francos conseguiram influenciar na eleição do Papa Adriano (772-795), que liberou os prisioneiros políticos feitos pelo seu antecessor.

Como Carlos via com preocupação o renascimento e força do Reino Longobardo, repudiou a sua esposa e quebrou a aliança firmada com Desidério, feita em uma situação de emergência, e lhe declarou guerra. O rei longobardo agiu rapidamente, dando asilo à viúva de Carlomano e seu filho menor, fugidos de Carlos. Desidério, prevendo de São Salvador, onde Desidério tornou sua filha Anselperga abadessa. À jurisdição desse monastério, dotado de excepcional riqueza por meios privados e de doações provenientes do patrimônio fiscal, Desidério submeteu outros monastérios na Lombardia, Emília e Toscana, e criou uma potente federação de monastérios, sujeita a sua direta intervenção.]

uma situação perigosa, tentou modificar diplomaticamente a aliança entre os francos de Carlos e o papado, mas não teve êxito. O rei longobardo, desiludido em suas esperanças, atacou os territórios do exarcado, reconquistou cidades e ameaçou Ravena, além de constranger o Papa Adriano a ungir os filhos menores de Carlomano, visando uma desordem no reino franco, com uma possível divisão entre o pontífice e Carlos. Contudo, o papa refutou todas as pressões do rei longobardo, fazendo com que Desidério avançasse contra Roma para obter a unção papal aos filhos de Carlomano à força.

Como os militares francos não conseguiram convencer Desidério a deixar o seu intento, Carlos marchou contra os longobardos, a fim de que não fosse minado o próprio prestígio de protetor do papado. Nos primeiros ataques, muitos longobardos mostraram-se infiéis ao seu próprio rei e fugiram para o Reino Franco, como traidores; outros duques submeteram-se a Roma. Enquanto tropas francas iam conquistando regiões do norte da Itália, a família de Carlomano caia nas mãos dos soldados francos comandados por Carlos e desapareceriam da História.

As conquistas territoriais dos francos não escondiam o fato que Carlos não conseguia conquistar Pavia, mas depois de um longo assédio de seis meses, em março de 774 uma grande tropa franca marchou para Roma para comemorar a Páscoa, onde o rei franco renovou as promessas de doações territoriais oferecidas por seu pai Pepino ao papa. Após as festividades, os francos retornaram a Pavia e conseguiram conquistar a cidade, que estava combalida pela fome e epidemia. Carlos

aprisionou Desidério e sua mulher e enviou-os para o reino franco, onde foram encerrados em um convento.334

Em Pavia, Carlos se declarava “gratia Dei rex francorum et

langobardorum” da qual não se sabe se teve lugar uma eleição formal.

O seu novo título demonstrou, porém, que o Reino Longobardo continuou com o povo longobardo335 e a partir daquele momento os territórios foram anexados em uma espécie de união pessoal com o rei franco (e longobardo), que, no Natal de 800, foi declarado e coroado Imperador Romano pelo Papa Leão III, emancipando a Igreja e os territórios submetidos ao Reino Franco do Império Bizantino.336

Os francos não conseguiram submeter jamais ao próprio poder o grão-ducado de Benevento – o qual conseguiu conservar sua independência apoiada na tradição longobarda – que se situava em um ponto de interseção entre as influências bizantinas e sarracenas, até quando, na metade do século XI, o último território autônomo longobardo caiu vítima da expansão normanda na Itália meridional.337

Enfim, não se encontra no Reino Longobardo provas de que a legitimidade dos reis teria sido decorrente e dependente do discurso religioso da Igreja Católica, ao revés, a administração do reino teve um cunho eminentemente militar e, de maneira geral, foram mantidas as

334

Cf. JARNUT, Jörg. Op. cit., p. 120-25.

335 A administração política passou para os nobres francos mas o Direito longobardo foi

mantido na Itália, junto com o Direito romano dos eclesiásticos e algumas capitulares carolíngias destinadas ao Regnum Italiae. Somente a partir do século XI, com o estudo do Direito Justinianeu é que as tradições jurídicas italianas sofreram importantes modificações, que podem ser consultadas em: CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in europa. Op. cit., p. 66-77. Para Heinrich Brunner (In. Op. cit., p. 56), em 774 Carlos Magno se chamou “rex Francorum et Langobardorum ac patricius Romanorum”. Continua dizendo que “Después de la coronación imperial, el titulo de Patricius cedió ante el emperador.”

336

Sobre o assunto, consultar: BALARD, Michel. Op. cit., p. 131-2.

337

características germânicas nos ritos de escolha dos reis, que necessitavam de seus súditos nobres e povo-guerreiro para se manterem no trono.

4 O DIREITO LONGOBARDO

As regulações normativas do povo longobardo, seguindo as características dos povos germânicos, eram transmitidas oralmente de geração em geração e, como visto nos capítulos anteriores, os dados da antiguidade sobre os longobardos só aparecem em fontes latinas em relação à belicosidade e participação deles como guerreiros contra os romanos. Não havendo registros sobre um ordenamento jurídico propriamente germânico na antiguidade torna-se muito difícil afirmar que as normas escritas na Idade Média são “germânicas” ou “romanas” em sua origem, isso porque não há continuidade nem ruptura de tradições jurídicas, mas constantes adaptações normativas epocalmente situadas.

Por isso, as normas escritas no século VII não se prestam para reconstruir tradições de povos sem escrita que migravam há pelo menos 5 séculos nas terras do Ocidente Europeu, mas constituem uma importante fonte para se compreender os discursos que tratam das experiências jurídicas próprias de sua época. Como diz Jacques Le Goff, a “Idade Média é inseparável dos manuscritos. Ela os produziu. E também foi produzida por eles.”338

A seguir, serão expostas e analisadas as discussões a respeito das regulações jurídicas escritas no Reino Longobardo e seus possíveis destinatários com o objetivo de se verificar em que circunstâncias sociais e políticas as leges langobardorum foram redigidas para, em seguida, se compreender os legitimados a exercerem o ius puniendi em casos de conflitos intersubjetivos.

338

LE GOFF, Jacques. Em busca da idade média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 34.