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DIGESTÃO ANAERÓBIA

2.3. A AVALIAÇÃO DO CICLO DE VIDA

A Revolução Industrial ocorrida no século XVIII foi o ponto de inflexão do balanço entre a antroposfera e todos os demais seres vivos e elementos existentes na Terra; desde então o homem passou a se impor competitivamente no ambiente com o argumento de atender à demanda mercado, explorando de forma cada vez mais insustentável os bens naturais. (AYRES; SIMONIS, 1994 apud LIMA, 2007).

Foi somente na década de 1970 “que a sociedade e os governos começaram a se preocupar com as questões ambientais, procurando discutir ações voltadas para a preservação da natureza” (LIMA, 2007). Um importante acontecimento deste período foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (1972), que segundo Costa, Damasceno e Santos (2012) foi a primeira atitude mundial que objetivou propor diretrizes quanto à preservação do ambiente. O ano de 1992 foi marcado pela Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (conhecida como ECO-92), na qual correntes de opinião colocaram as metodologias de ACV entre as ferramentas mais promissoras dentro das ações de gestão ambiental (JENSEN et al., 1997).

A ACV foi um método desenvolvido para estudar todos os impactos no ambiente e na saúde humana proveniente de um produto, processo ou sistema e assim, o avaliar sistematicamente desde a produção da matéria-prima até o gerenciamento dos resíduos. É conhecida também como “Análise do Ciclo de Vida”, “Abordagem do Ciclo de Vida”, “Análise do Berço ao Túmulo” ou “Eco Balanço” (JENSEN et al, 1997). Dentre suas aplicações estão o auxílio em decisões de como desenvolver, melhorar e produzir produtos, como desenvolver políticas e estratégias

governamentais; e como organizações não governamentais (ONG’s) podem promover orientações ambientalmente sensíveis (UNEP, 1996).

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP, 1996), há três principais razões em se utilizar a ACV: (1) é orientado para

produtos: cobre áreas que não são analisadas em avaliação de risco, avaliação de

impacto ambiental e outras ferramentas não integradas. Seu objetivo é ir à busca de um desenvolvimento sustentável; (2) é integrativa: Permite integrar todos os problemas ambientais decorrentes de um produto/serviço durante todo seu ciclo. Deste modo, evita-se que um conjunto de soluções induza a novos problemas em outras fases do ciclo de vida; (3) é científica e quantitativa: É desenvolvida para promover informações mais objetivas possíveis para suportar o processo de tomada de decisão.

Sua padronização de aplicação, com estrutura e princípios norteadores foi feito pela Organização Internacional de Padronização (ISO, em inglês) a partir da série ISO 14000, uma série de normas com diretrizes para a prática da gestão ambiental que se iniciou em 1996 (MORRIS, 2004). Dentre este conjunto estão as ISO 14040 a ISO 14043 (1997 e 2000), ISO 14048 (2002) e ISO 14049 (2000), que tratam especificamente da condução da aplicação da ACV (no Brasil, foram regulamentadas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT nas NBR ISO 14040 e NBR ISO 14044). Conforme Rebitzer et al (2004) existem duas formas de condução da ACV que implicam no modo como o sistema será modelado: atribucional e consequencial. A primeira descreve os impactos ambientais potenciais que podem ser atribuídos a um sistema ao longo do seu ciclo de vida, é modelado de forma linear; já o segundo descreve uma estimativa das mudanças de poluição e fluxos de recursos de todo o sistema quando há uma alteração no nível das unidades funcionais produzidas, ou seja, o resultado está atrelado à magnitude da mudança.

A ACV é conduzida basicamente em três estágios: (a) identificação e quantificação das cargas ambientais envolvidas, ou seja, materiais e energia usados e também as emissões e resíduos emitidos; (b) análise e avaliação dos potenciais impactos ambientais e (c) análise das oportunidades disponíveis para promover a

melhoria do ambiente (UNEP, 1996). De um modo mais detalhado e seguindo os preceitos da NBR ISO 14040, a ACV pode ser dividida em quatro etapas, a saber: definição de objetivo e escopo, análise de inventário, avaliação de impacto e interpretação (Figura 2. 13).

Figura 2. 13 - Fases de uma Avaliação do Ciclo de Vida. Fonte: ABNT (2001)

A definição do objetivo e escopo consiste na primeira etapa da ACV, é feita a descrição do produto, processo ou atividade descrevendo o contexto no qual a avaliação será conduzida e qual será o público alvo. Para Ciambrone (1997), alguns componentes essenciais devem ser definidos tais como; o produto, processo ou atividade a ser estudada; as razões para conduzir o estudo; os elementos analisados e os que serão desconsiderados e como os resultados serão utilizados.

De acordo com a NBR 14040:2001, devem constar claramente as funções do sistema de produto ou sistema; a unidade funcional; o sistema de produto a ser estudado; as fronteiras do sistema; procedimentos de alocação; tipos de impacto e metodologia de avaliação de impacto, interpretação subsequente a ser usada; requisito dos dados, suposições e limitações, requisitos da qualidade dos dados iniciais; tipo de análise crítica (se aplicável) e; tipo e formato do relatório requerido para o estudo. Comumente, se define a ACV como um sistema: as entradas são os materiais e energia extraídos da natureza sem transformação humana (fluxos

elementares) (ABNT, 2001), as saídas são as emissões para o ambiente (Figura 2. 14).

Figura 2. 14 - Sistema da Avaliação do Ciclo de Vida. Fonte: adaptado de Curran (1996)

A unidade funcional (UF) é uma medida base que permite que o produto, sistema ou serviço possa ser analisado e comparado (REBITZER et al, 2004). Ela funciona como uma referência em que os dados de entrada e saída são normalizados, por isso, é importante que sua escolha seja compatível com o que se pretende estudar. Os sistemas de produtos são um “conjunto de unidades de processo, conectadas material e energeticamente, que realiza uma ou mais funções definidas” podem se conectar por fluxos intermediários e de resíduos para tratamento, com outros fluxos de produtos ou a fluxos elementares (ABNT, 2001).

Já a fronteira do sistema pode ser entendida como o perímetro em que se dará o estudo, ou seja, determina quais unidades de processos devem ser incluídas na ACV. Ela engloba a aquisição de matérias-primas, manufatura de materiais intermediários, manufatura de produtos que estão sendo estudados, uso do produto e a disposição final de resíduos (CURRAN, 1996). A NBR 14004 recomenda que o sistema seja modelado de forma que as entradas e saídas nas fronteiras sejam fluxos elementares, no entanto, caso esses fluxos podem ser omitidos caso não alterem significativamente as conclusões gerais do estudo (MUNIZ, 2012).

A segunda etapa da ACV é a análise de inventário (ICV, inventário do ciclo de vida), na qual dados e procedimentos de cálculo para quantificação de entradas e saídas do sistema avaliado são executados, assim como processos de alocação (quanto pertinente). O resultado desta etapa será uma relação entre as entradas e saídas associadas à unidade funcional. Ressalta-se que este é um processo interativo, pois conforme os dados vão sendo coletados, podem ser identificados novos requisitos ou limitações, resultando numa alteração do procedimento de coleta dos mesmos de modo a permitir que os objetivos da ACV sejam alcançados (ABNT, 2001). Segundo a NBR 14040, a qualidade dos dados deve se basear na cobertura do período de tempo, área geográfica e tecnologia; precisão, completeza e representatividade dos dados; consistência e reprodutibilidade dos métodos utilizados, fonte dos dados e sua representatividade e incerteza da informação.

Assim, o primeiro procedimento a ser feito é a construção do fluxograma do processo, um gráfico qualitativo que representa os processos envolvidos no ACV do sistema estudado, ele é composto por uma sequência de processos ligados por setas (fluxos de materiais). Desta forma, a utilização deste procedimento gera um panorama geral e permite focar nos processos mais relevantes e nas intervenções ambientais necessárias (UNEP, 1996).

É executado então o planejamento da coleta de dados: identificação dos dados

foreground (dados primários específicos do sistema) e background (dados

secundários genéricos para energia, transporte, tratamento de resíduos e materiais) dos processos e dados relevantes e formato da coleta de dados (MANFREDI et al, 2011). Em seguida, é realizada a coleta de dados propriamente dita e o processamento destes como mostra a Figura 2. 15.

Figura 2. 15 - Unidades de processo e conjunto de dados agregados do processo. Fonte: adaptado de UNEP (2011)

A UNEP (2011) esclarece que os dados coletados devem ser transformados em uma forma conveniente, de modo a se ter informações sobre a natureza e quantitativo dos impactos ambientais de cada processo. Deve-se então calcular as quantidades de componentes presentes no sistema e adicionar os impactos decorrentes, gerando uma tabela de inventário.

Quando o sistema gera coprodutos, os fluxos de materiais e energia e as emissões ao ambiente devem ser alocados a cada um dos produtos no procedimento chamado alocação. Ela é feita a partir de relações físicas que mostre a relação entre eles, por exemplo, em massa, ou estequiometria, ou outra relação como, por exemplo, o valor econômico (CURRAN, 1996; ABNT, 2009b). Conforme a ISO 14044, este artifício deve ser evitado sempre que possível tentando subdividir a unidade a ser alocada em dois ou mais subprocessos e coletar entradas e saídas relacionadas a este ou expandindo o sistema de produto a fim de incorporar funções adicionais relacionadas ao coproduto. Pode-se inicialmente fazer uma compilação dos dados em um inventário de ciclo de vida bruto e depois fazer as transformações necessárias (conversões) para adequar todos os dados com relação à UF.

Após fazer um inventário para os processos, é feito então o inventário final com todas as emissões compiladas numa única tabela, ou seja, o resultado final do ICV. Inicia-se a terceira etapa da ACV, a Avaliação do Impacto do Ciclo de Vida (AICV), que faz a análise da significância dos impactos ambientais potenciais a partir da ICV de forma qualitativa e/ou quantitativa. De acordo com a norma ISO, este procedimento associa os dados do inventário com impactos ambientais específicos e tenta compreender estes impactos, assim, o nível de detalhamento e escolha dos impactos e metodologias empregadas depende diretamente do objetivo e escopo do estudo.

A AICV é dividida em quatro passos: (1) seleção das categorias de impacto e classificação; (2) caracterização; (3) normalização e (4) definição de pesos entre categorias quando se compara diferentes alternativas, sendo as etapas 3 e 4 opcionais no estudo (ABNT, 2002). Conforme UNEP (1996), a classificação aponta os problemas ambientais considerados e a caracterização é a quantificação dos impactos das substancias encontradas no inventário (pontuação da categoria de impacto em uma unidade comum, chamada “fator de caracterização”). Conforme dito anteriormente, existem diversas metodologias de AICV que podem incluir análises de midpoint ou endpoint. A Figura 2. 16 mostra algumas categorias de impacto de acordo com a estrutura de midpoint-endpoint para AICV da UNEP/SETAC.

De acordo com Saade, Silva e Gomes (2014), a categoria midpoint são resultados intermediários, uma “modelagem quantitativa a estágios relativamente

iniciais na corrente causa e efeito, a fim de minimizar incertezas (...)” e a categoria

de endpoint é a modelagem até o dano propriamente dito ao ambiente, é o resultado final “modelagem esta que pode, em certos casos, agregar altos valores de

incerteza”. A categoria endpoint está dividida em três áreas de proteção: saúde

humana, ambiente natural e recursos naturais. Já a nível midpoint, existem várias categorias que variam de acordo com o método aplicado, no entanto destacam-se as principais na Figura 2. 16.

Figura 2. 16 - Estrutura midpoint-endpoint para a Avaliação de Impacto do Ciclo de Vida Fonte: adaptado de UNEP (2011)

Existem diversos métodos para midpoint e endpoint como CML (1996, 2001 e 2011), Eco-Indicator (95 e 99), EDIP (1997 e 2003), Impact 2002+, UBP method, Recipe, TRACI 2.0, USEtox e outros (SAADE; SILVA; GOMES, 2014; THINKSTEP, 2016). Devido a uma enorme gama de opções, é importante conhecer os procedimentos de cálculo dos métodos para que satisfaçam da melhor forma possível as necessidades do estudo. Zocchie (2014) concluiu em seu levantamento que o Eco-Indicator 99, CML 2001 e EDIP 97 são os métodos mais utilizados no Brasil. Após a aplicação do método pode ser feita a normalização (transformação das pontuações de cada categoria em uma unidade de referência comum) e ponderação, ou seja, a agregação dos resultados de cada categoria de impacto para valores numéricos de acordo com sua importância relativa. A NBR 14404 recomenda que este processo de agregação de resultados só deve ser feito em casos muito específicos e quando forem significativos para o estudo.

A interpretação final dos resultados é feita na última etapa, na qual são identificadas questões significativas; a verificação da integridade, sensibilidade e consistência do estudo, conclusões, limitações e recomendações (MANFREDI,

2011). UNEP (1996) esclarece que nesta etapa final se deve compilar o que realmente é importante para análises de melhoria do desempenho do sistema, devendo identificar quais processos/substancias são dominantes. Outro fator destacado é que a confiabilidade dos resultados depende diretamente dos dados coletados, sendo a análise de sensibilidade uma forma de identificar a credibilidade dos mesmos. A NBR 14040 ainda explica que os resultados da ACV devem ser reportados ao público-alvo de forma “fiel, completa e exata”, de modo que os resultados, dados, métodos, suposições e limitações “sejam transparentes e com

detalhes para que o leitor compreenda a complexidade e trade-offs inerentes ao estudo” (ABNT, 2009a).

Por fim, cabe apontar que apesar de a ACV ser utilizada extensivamente como ferramenta de avaliação de impacto ambiental, esta também possui limitações como qualquer outra metodologia. Portanto, se observa que estas devem ser esclarecidas aos atores envolvidos no estudo. Conforme Zocche (2014), as principais restrições encontradas na utilização da ACV foram: (a) possível subjetividade na natureza das escolhas e definições estabelecidas; (b) limitações provenientes das suposições dos métodos empregados para a ICV e dos modelos preditivos de AICV; (c) resultados enfocando questões globais podem não ser viáveis para aplicações locais; (d) limitação devido ao acesso e disponibilidade dos dados; (e) a introdução de incertezas nos resultados da ACV pela falta de dimensões espaciais e temporais dos dados inventariados usados na avaliação dos impactos sobre o ambiente.

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