• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5 O PAPEL DA BIOTECNOLOGIA NO REGIME ALIMENTAR

5.2. A biotecnologia no cerne da industrialização da agricultura

Como analisamos no Capítulo 2, os avanços em genética molecular feitos nos anos 1950 e 1960 encetaram o advento da biotecnologia moderna, “um avanço generalizado na capacidade dos capitais industriais de manipular a natureza” (Ibid. p. 86); acompanhado pelo aumento do seu controle, na medida em que a descoberta no campo biomolecular passou a ser considerada uma invenção passível de DPI. “Indústrias importantes, cujo desenvolvimento tecnológico tinha sido até então virtualmente separado, descobriram repentinamente que possuíam bases tecnológicas superpostas ou, pelo menos, contíguas.” (Ibid. p. 87). As aplicações da biologia molecular alcançam “todas as indústrias que usam ou poderiam usar materiais biológicos em lugar de recursos não renováveis. Essas incluem as indústrias energéticas, químicas. farmacêuticas, alimentares e de bebidas, agrícolas e de tratamento de dejetos.” (Ibid. p. 87). A biotecnologia, em um sentido estrito, pode ser caracterizada como um "complexo" de técnicas inter-relacionadas, cujas aplicações se estendem sobre um amplo espectro de atividades intersetoriais.

O grande salto tecnológico do ponto de vista do potencial de assimilação do domínio biofísico ao processo industrial é a técnica do DNA recombinante. Superando o horizonte das técnicas mais antigas de mutagênese e de seleção de linhagens, esse método permitiu que segmentos do DNA de um organismo fossem incorporados e expressos no DNA de um outro ser vivo, transpondo as fronteiras entre espécies. Isso permitiu uma abordagem mais unificada, “quebrando a especificidade dos métodos de pesquisas usados anteriormente nos diferentes campos da microbiologia aplicada” (Ibid. p. 90).

Na engenharia genética de plantas a transgenia se tornou o principal instrumento de apropriação industrial da agricultura. O processo “natural” de fertilização sexual já não é o único caminho para obter cultivares com características desejáveis. Não obstante, ele continua sendo fundamental no melhoramento de cultivos para obtenção de variedades mais produtivas, nutritivas ou resilientes, visto que a modificação genética laboratorial tem se concentrado na produção de variedades resistentes a “pragas” ou a aplicação de agroquímicos pertencentes à empresa melhorista. Desse modo, as biotecnologias vegetais são usadas para aprofundar a dependência da produção agroalimentar de agroquímicos sintéticos tradicionais.

Nesse sentido, definimos o conceito de biotecnologia não como um aglomerado de técnicas baseadas na biologia molecular, mas como um paradigma científico, jurídico e ideológico que relativiza o valor imanente da vida em razão do seu potencial econômico (SHIVA, 2001). Nesse sentido, apesar de biotecnologia exceder em muito a transgenia vegetal, abordamos especificamente essa técnica em razão de sua posição central na assimilação da agricultura pela indústria no contexto do regime alimentar neoliberal. As sementes GM se tornaram o ponto de convergência dos demais setores de assimilação produtiva, sobretudo o agroquímico, além de integrar outros setores da cadeia agroalimentar, como veremos adiante.

É possível dizer que a transgenia vegetal inicia uma segunda Revolução Verde, na qual os cultivos GM formam o núcleo de "pacotes tecnológicos", assegurando que os fazendeiros fiquem ainda mais cativos de fertilizantes, sementes e agroquímicos patenteados. Assim como ocorreu no caso das sementes híbridas, o Estado se ocupou de duas funções: num primeiro momento, deram início ao processo de prospecção e desenvolvimento técnico, incorrendo em custos proibitivos para viabilizar a reprodução em escala industrial. Após o domínio da técnica por parte das empresas interessadas no mercado, criaram um cobertor institucional-jurídico para legitimar a assimilação das sementes pela indústria (movimento alocativo) e sua apropriação na forma de direitos de propriedade (movimento autoritativo). Nos EUA, agências federais como os Institutos Nacionais de Saúde e a Fundação Nacional de Ciências adotaram um sistema de financiamento para projetos nas áreas de interesse na biotecnologia, direcionando substancialmente as pesquisas em universidades públicas. A redução desses recursos ocorreu no mesmo momento em que empresas privadas perceberam o potencial econômico da biotecnologia, oferecendo contratos de longo prazo e o potencial de sucesso financeiro para cientistas universitários. Assim o complexo universidade-

indústria encerrou o fluxo de conhecimento no setor privado, alavancando o desenvolvimento técnico e a margem de lucro das grandes corporações.

Muitos laboratórios, anteriormente instituições que produziam conhecimento de uso comum na sociedade - consumidores, trabalhadores, agricultores e empresários - tornaram-se cativos de uma única corporação. O resultado é que a base de conhecimento livremente utilizável é encolhida, e isso pode levar a uma falta de informação para aqueles que não podem comprá-la. O frenético cortejo da indústria por gestores universitários e professores dispostos a vender quase tudo parece particularmente inapropriado, já que esses mesmos administradores são incumbidos da responsabilidade de agir pelo bem da ampla comunidade universitária, e a universidade tem a obrigação autoproclamada de servir o bem maior da sociedade (KENNEY, 1986, p. 245, tradução nossa).

As grandes corporações utilizaram-se de sua experiência em P&D, seus vastos recursos e métodos flexíveis de financiamento para dominar a biotecnologia comercial e a direção da pesquisa básica. A centralização da modificação varietal em poucas mãos do setor privado permitiu às companhias de sementes empregarem estratégias monopolistas de preços na difusão de variedades patenteadas.

Essa dominação, que estende-se ao espectro das biociências, foi conseguida pela aquisição de lotes de ações ou controle integral de firmas de pesquisas genéticas, formação de joint-ventures ou sociedades limitadas de P&D, pelo financiamento, com capital de risco, de firmas privadas que investem em biotecnologia, contratos de pesquisas com universidades e expansão de suas próprias atividades de P&D (GOODMAN et al., 2008, p. 96).

As aquisições começaram ainda no início da década de 1970, estimuladas por estratégias de integração vertical, especialmente no caso das companhias agroquímicas cujos produtos frequentemente são específicos para certas culturas ou mesmo variedades. Nesse mesmo período, a viabilidade comercial foi reforçada pelo PVPA (1970) e pela convenção da UPOV (1978), posteriormente garantida em 1985 na disputa

ex parte Hibberd, que legalizou o patenteamento vegetal, seguida pela UPOV 1991 e o

acordo TRIPS em 1995, atestando a importância dos movimentos autoritativos em tornar a assimilação industrial em apropriação. Como resultado, no ano de 1990, a maior parte das empresas de P&D mais avançadas em biotecnologia e até mesmo a maioria das companhias relativamente pequenas de biotecnologia, eram, efetivamente, transnacionais “em termos de âmbito de ação e impacto de suas atividades, direta ou indiretamente, através de ligações com transnacionais que operam em todo o mundo” (GOODMAN et al., 2008, p. 97).