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CAPÍTULO 4 A TRANSIÇÃO PARA O REGIME ALIMENTAR

4.1. Aspectos gerais da análise dos Regimes Alimentares

A análise dos regimes alimentares nos permite examinar a origem e os efeitos das sementes GM e de seus DPI a partir de uma perspectiva mais abrangente, inseridos na "estrutura de produção e consumo de alimentos regida por regras em escala mundial" (FRIEDMANN, 1993, p. 30). Assim, incorpora-se o fenômeno analisado ao amplo processo histórico de desenvolvimento das relações agroalimentares de poder e de produção no capitalismo, com o objetivo de deslindar seu papel no regime alimentar atual.

Inicialmente, o conceito associava "as relações internacionais de produção e consumo de alimentos com as formas de acumulação que distinguiam genericamente os períodos de transformação capitalista desde 1870." (FRIEDMANN & MCMICHAEL, 1989, p. 95). Essa formulação decorre do contexto em que foi feita, um momento de declínio da política nacional de regulação e ascensão da chamada "globalização". Ela combina o conceito de sistemas-mundo de Warllerstein (1974) com o de regulação da acumulação de capital de Aglietta (1979). Em uma palavra, refere-se à forma como os alimentos são regulados, produzidos e utilizados em escala global para o processo de acumulação.

O projeto dos regimes alimentares surge como uma iniciativa metodológica com o propósito de explicar o papel estratégico da agricultura e dos alimentos na construção da economia capitalista mundial. Ele identifica períodos estáveis de acumulação do capital associados a configurações específicas do poder geopolítico, condicionados por formas de produção agrícola e relações de consumo dentro e fora dos espaços nacionais

(MCMICHAEL, 2009). "Trata-se de uma abordagem intrinsecamente comparativa da

recente história mundial, pois regimes alimentares oscilam em função do reordenamento político em uma dinâmica mutuamente condicionante" (MCMICHAEL, 2016, p. 15).

O conceito de regime alimentar historicizou o sistema alimentar global ao problematizar as representações lineares da modernização agrícola, sublinhando o papel central dos alimentos na economia política global e conceptualizando as principais contradições históricas em determinados regimes alimentares que produzem crises, transformações e transições. Nesse sentido, a análise do regime alimentar traz uma perspectiva estruturada para a compreensão do papel da agricultura e dos alimentos na acumulação de capital ao longo do tempo e do espaço (MCMICHAEL 2009, p. 140, tradução nossa).

Sua principal contribuição como lente teórica é evidenciar os modos pelos quais as formas de acumulação de capital na agricultura constituem arranjos globais de poder, expressos através de padrões de circulação de alimentos. É uma análise chave para compreender a divisão fundamental existente entre o modelo de agroindustrialização, ambientalmente catastrófico, e as práticas agroecológicas alternativas em um limiar histórico marcado pela degradação do solo, impasse energético, mudança climática e desnutrição endêmica (MCMICHAEL, 2009, 141,142; PATEL, 2007).

Para além das relações agrícolas internacionais de produção e consumo, essa análise também trata do papel da agricultura comercial no processo de construção do Estado na era moderna. O regime alimentar abastece a relação entre Estado e mercado. Em cada período, o Estado hegemônico legitima e implementa as demandas da fração de classe dominante na forma de políticas agrícolas e regulações em âmbito nacional e internacional. Já o mercado garante estabilidade aos governos e uma posição geopolítica favorável ao Estado.

Dessa forma, os regimes alimentares têm sido associado às ordens político- econômicas internacionais institucionalizadas durante os períodos de hegemonia das nações britânica e norte-americana e, mais recentemente, no período do domínio da OMC como uma entidade de Estados-membros responsável pela regulação do comércio internacional (MCMICHAEL, 2016, p. 18).

Desse modo, foram definidos três regimes alimentares distintos, de acordo com os agentes hegemônicos que dominam e determinam as regras das relações alimentares internacionais em determinada quadra histórica-mundial. Essas regras expressam formas históricas de exercício de poder por meio de uma ideologia legitimizadora, como o livre-comércio, o apoio ao desenvolvimento e a livre-iniciativa; e definem uma relação de abastecimento alimentar com preço mundial administrado (MCMICHAEL, 2016, 23).

Cada Regime demonstra como o controle da produção (o que, como e onde se produz) e da distribuição de alimentos em escala mundial foi determinado pelos agentes político-econômicos dominantes: Inglaterra (1870-1930), EUA (1940-1970), OMC e grandes corporações (1980-); como instrumento para garantir o processo geral de acumulação na indústria agroalimentar.

As dietas ocidentais resultaram em um comércio de uns poucos tipos de grãos disseminado por todo o planeta. A reestruturação agroalimentar desencadeou poderosas forças integradoras, padronizando processos entre regiões ou reconfigurando relações

espaciais como elementos diferenciados de um processo global compartilhado "Isso resultou em alimentos cada vez mais baratos para os trabalhadores urbanos (acalmando estômagos revoltosos) e liberou braços empobrecidos do campo, transformando o alimento cada vez mais em uma mera mercadoria" (MCMICHAEL, 2016, p. 2, 3, tradução nossa).

A análise dos regimes alimentares estabelece como determinados complexos alimentares (da tecnologia de sementes, passando pelo cultivo até o processamento/ manufatura de alimentos) e rotas alimentares sustentam o exercício de certas formas de poder ao expandir e sustentar esferas de mercado e de seu domínio ideológico. A análise não se circunscreve, portanto, à agricultura ou à geografia rural em si, mas examina como estas compõem uma totalidade orgânica cujo fenômeno é a acumulação de capital em escala global.

O primeiro regime alimentar, irradiado pela hegemonia Britânica (1870-1930), organizou-se na exportação de gado e de trigo da Europa para as colônias e na importação de produtos coloniais como açúcar, chá, café, bananas, óleo de palma, amendoim, etc.; suprindo as classes industriais europeias emergentes e abastecendo a "oficina do mundo" britânica com produtos tropicais. Em meados do século XIX a Grã- Bretanha terceirizou sua produção de gêneros de primeira necessidade, explorando o solo virgem do "Novo Mundo". Ao estabelecer setores de agricultura comercial nos EUA, Canadá e Austrália, "moldou o "desenvolvimento" no século XX como uma dinâmica articulada entre setores agrícolas e industriais domésticos." (MCMICHAEL, 2009, p. 142; 2016, p. 19).

O regime alimentar seguinte, centrado na hegemonia dos EUA (1940-1970), implementou políticas agrícolas subsidiadas, produzindo excedente de alimentos e garantindo os mercados e a lealdade anticomunista de determinados países terceiro- mundistas. O modelo estadunidense de agroindustrialização nacional foi internalizado por algumas economias em desenvolvimento, mediante a adoção do pacote tecnológico da Revolução Verde; estendendo as relações de mercado ao campo.

Nesse contexto, o agronegócio criou vínculos transnacionais entre setores agrícolas nacionais, subdivididos em uma série de agriculturas especializadas ligadas por cadeias de suprimento global. Exemplo: o complexo transnacional de proteína animal, que liga grãos/carboidratos, soja/proteína, laticínios e a engorda de animais em confinamento. Desse modo, o modelo nacional de desenvolvimento econômico se tornou uma chave para a estruturação do sistema estatal após a descolonização, fazendo

surgir uma nova divisão internacional do trabalho na agricultura em torno de complexos transnacionais de commodity (MCMICHAEL, 2009, p. 142; 2016, p. 19).

A emergência de um terceiro regime alimentar a partir do final dos anos 1980 aprofundou esse processo, incorporando novas regiões às cadeias de proteína animal (por exemplo, China e Brasil), consolidando cadeias de fornecimento diferenciadas: produtos intensivamente processados para consumidores pobres, e frutas, vegetais frescos e peixes para consumidores privilegiados do Norte e elites do Sul.

Na literatura da área não há consenso sobre os agentes hegemônicos e outras características estruturantes do terceiro regime. Ele vem sendo alternativamente denominado neoliberal (OTERO, 2013; TILZEY, 2018), corporativo (MCMICHAEL, 2009) ou ambiental-corporativo (FRIEDMANN, 2005). Abordamos essa discussão na Seção 4.3 desse trabalho.

Argumentamos que a criação de sementes GM e sua apropriação por meio de DPI (difundidos pela OMC) integra o processo de reestruturação agroalimentar ocorrido no regime alimentar neoliberal, sobrepondo os direitos das corporações agroquímicas à soberania alimentar em todo o mundo, sobretudo dos agricultores em países periféricos. Desse modo, o objeto desta pesquisa pode ser localizado nas relações internacionais agroalimentares, considerando seus aspectos históricos e sua dimensão ecológica.