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CAPÍTULO 5 O PAPEL DA BIOTECNOLOGIA NO REGIME ALIMENTAR

5.1. Origens da industrialização da agricultura

Ao contrário de outros setores da atividade econômica, a agricultura é radicalmente híbrida (nos termos do realismo científico), o que significa dizer que ela é inerentemente fundamentada nos domínios biofísico e social da realidade. As viabilidades e constrangimentos biofísicos são, em certa medida, essenciais e inevitáveis para a reprodução das sociedades humanas em geral. Na produção agrícola, as viabilidades (affordances) são elementos fundamentais para a sua realização, disponíveis na realidade biofísica "pura" ou na dimensão material: água, terra, irradiação solar, clima, oxigênio, plantas, animais etc. Por outro lado, agricultura é organizada e gerida por intermédio da realidade sociopolítica, fruto das capacidades intra-humanas como semiose, consciência e reflexividade. Assim, a atividade agrícola é conduzida por entidades ideacionais, como teorias científicas, cálculos matemáticos, direitos de propriedade; e por entidades sociais: divisão social e internacional do trabalho, divisão de classes etc. Por fim, encontra-se congregada de forma híbrida (domínios social e biofísico) na dimensão artefatual: ferramentas, maquinário, sementes melhoradas/modificadas, animais domesticados, etc. (TILZEY, 2018).

Como observamos no Capítulo 1, a transformação das relações sociais de propriedade da terra e do trabalho humano nos campos ingleses do século XVI em diante assinala o início de uma nova organização social substancialmente distinta daquela que a antecedeu, sendo difundida, gradativa e desigualmente, por todo o mundo. Todavia, a apropriação de novas dimensões da realidade aos circuitos do capital encontrou seus principais limites justamente na atividade agrícola, dada seu elo indissociável com a natureza extra-humana. Enquanto os processos de manufatura foram racionalizados e integrados em fábricas de forma acelerada, os constrangimentos

biofísicos impuseram um forte obstáculo à transformação da agricultura em um ramo da produção industrial. Isso inclui, por exemplo, a dependência de elementos materiais, como o uso da terra, o tempo de crescimento das plantas ou a perecibilidade dos alimentos. Goodman et al. (2008) argumentam que esses obstáculos vêm sendo superados pelo progresso técnico, por exemplo pela substituição da semeadura à mão pela máquina de semear, do cavalo pelo trator, do esterco por produtos químicos sintéticos, etc.

A transformação industrial da agricultura ocorreu historicamente através de uma série de apropriações parciais, descontínuas do trabalho rural e dos processos biológicos de produção (máquinas, fertilizantes, sementes híbridas, produtos químicos, biotecnologias), e do desenvolvimento paralelo de substitutos industriais para os produtos rurais. Este duplo movimento é representado pela emergência dos setores agroindustriais que fornecem insumos agrícolas e pela diversificação para além dos portões da fazenda do processamento e da distribuição dos alimentos (Id. p. 2).

Empregamos a categorização feita por Goodman et al. (2008) na compreensão desse fenômeno. Denominamos assimilacionismo o processo intermitente de eliminação dos constrangimentos biofísicos na produção agrícola para sua transformação em atividades industriais e sua reincorporação na agricultura sob a forma de insumos. Denominamos substitucionismo o processo igualmente descontínuo de redução dos alimentos à insumos industriais e sua substituição crescente por componentes não- agrícolas. Em ambos os casos, o que se verifica são manipulações alocativas do domínio biofísico a fim de reduzir seus constrangimentos à acumulação capitalista.

Vamos aprofundar nossa análise do assimilacionismo, na medida em que as mudanças promovidas pela biotecnologia estão inseridas nessa dimensão. Em seu sentido mais amplo, o processo de assimilação é a “ação empreendida pelos capitais industriais a fim de reduzir a importância da natureza na produção rural, especificamente como uma força fora de sua direção e controle” (Ibid. p. 3). Por intermédio da ciência o capital explora novas oportunidades de acumulação, reestruturando e internalizando progressivamente o processo de reprodução “natural” das plantas à lógica industrial. Historicamente, duas tendências básicas de assimilação se consolidaram: a mecanização e as inovações químicas/genéticas (fertilizantes e sementes híbridas). Sua separação foi um reflexo das diferentes condições agrárias encontradas na Europa e nos Estados Unidos, definidas, em parte, pelos níveis existentes de conhecimento científico e tecnológico (Ibid. p. 11), mas sobretudo pelos interesses geopolíticos e econômicos desses países e de seus produtores e empresários.

produção da natureza extra-humana, com o desenvolvimento das técnicas de hibridização de cultivos, que se tornaram eixo da integração agroindustrial subsequente. As variedades vegetais produzidas tradicionalmente eram facilmente replicadas e difundidas livremente, inviabilizando sua exploração como inovações industriais de direito exclusivo. Dado o desinteresse empresarial, coube ao Estado a iniciativa de promover e institucionalizar a atividade de inovação biológica e genética, formando uma estrutura de pesquisa agrícola financiada pelo setor público. Esse cenário se modificou com os avanços na teoria genética mendeliana e o desenvolvimento da técnica de hibridização de cruzamento duplo a partir da década de 1930. Isso porque o milho de cruzamento duplo gera descendentes de baixo rendimento e pode ser adaptado a diferentes condições locais, o que viabilizou a produção comercial dessas sementes. “Ao contrário das variedades de polinização aberta, a nova semente tinha que ser comprada a cada ano” atraindo capitais privados “pelas perspectivas de lucros monopolísticos que poderiam advir das sementes híbridas criadas para sistemas ambientais regionais específicos” (Ibid. p. 35).

Como vimos no Capítulo 3, a aprovação do Plant Variety Protection Act nos EUA em 1970 assegurou os direitos de propriedade dos melhoristas, “mas é certo que a hibridização, por si só, constituiu-se num forte incentivo para a entrada neste ramo industrial. É assim que, por volta de meados da década de 1950, o setor privado havia se tornado a fonte principal de pesquisas do novo milho híbrido” (Ibid. p. 35).

A crescente padronização das características e do desenvolvimento das plantas, como “o rendimento, a estrutura, a maturação, a absorção de nutrientes e a compatibilidade com os insumos produzidos industrialmente” (Ibid. p. 39), tornaram os cultivos mais adaptados à mecanização e ao uso de pesticidas e fertilizantes. A hibridização também possibilitou o aumento da concentração de plantas na área de cultivo, provocando a proliferação de insetos, fungos e ervas indesejáveis para o produtor, o que por sua vez estimulou o uso de inseticidas herbicidas e fungicidas em maior escala (Ibid. p. 38). Assim, “os setores químico e de implementos agrícolas abandonaram suas estratégias relativamente independentes e convergiram na direção destas inovações biológicas, criando padrões de apropriação novos e mais interdependentes” (Ibid. p. 11).

Em outras palavras, o desenvolvimento das sementes híbridas permitiu que os avanços no melhoramento (breeding) de plantas fossem incorporados às estratégias de acumulação e crescimento dos capitais agroindustriais já estabelecidos. Desse modo, as

inovações genéticas das plantas foram um instrumento “na convergência dos setores de equipamento agrícola e agroquímico, marcando um novo limiar no processo de apropriação da indústria” (Ibid. p. 38) e estabelecendo o padrão para os “pacotes tecnológicos” associados, que mais tarde seriam adotados na industrialização das operações agrícolas no Terceiro Mundo. Assim, a chamada Revolução Verde foi um dos principais esforços para internacionalizar o assimilacionismo, acompanhado pela difusão de técnicas de melhoramento e produção de cultivos híbridos adaptados às regiões tropicais e subtropicais do planeta, homogeneizando o processo de produção agrícola em torno de “um conjunto compartilhado de práticas agronômicas e de insumos industriais genéricos” (Ibid. p. 39).