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CAPÍTULO 5 O PAPEL DA BIOTECNOLOGIA NO REGIME ALIMENTAR

5.3. O histórico das corporações agroquímicas

As tecnologias em geral não são entidades neutras, uma vez que estão inseridas em determinada estrutura social. Como vimos, as inovações técnicas na agricultura sob

a égide do capitalismo vêm sendo desenvolvidas e utilizadas com o objetivo de transpor os constrangimentos do domínio biofísico que limitam a completa industrialização da atividade agrícola. As entidades e processos naturais extra-humanos assimilados pela indústria capitalista são submetidas à lógica da acumulação incessante, cujo imperativo desconhece preocupações éticas ou humanitárias.

Essa realidade se aplica ao pequeno grupo de corporações transnacionais agroquímicas que domina simultaneamente os mercados de agroquímicos e de sementes em todo o mundo. Em razão do alcance do seu poder, vários nomes têm sido atribuídos ao grupo: cartel do veneno, gene giants ou big 6, formado pelas empresas alemãs Bayer e BASF, as estadunidenses Dow Chemical, DuPont e Monsanto e a suíça Syngenta. Faremos uma breve incursão na história dessas empresas, apresentando algumas das inúmeras controvérsias a seu respeito e como elas têm promovido o paradigma da agricultura biotech.

Originalmente, nenhuma dessas empresas comercializava sementes. Assim como as mega corporações da automobilística e eletrônica, a indústria química cresceu e fez fortuna com guerras ao longo do século XX. De fato, grande parte dos agroquímicos utilizados pela agricultura moderna são subprodutos da indústria de guerra. Na prática, o uso intensivo desses componentes representa justamente isso: uma guerra incessante contra os micro-organismos, plantas, insetos e pessoas que resistem ao avanço da "modernidade". "Desde as origens da agricultura industrial moderna, o agronegócio tem estado em guerra contra toda a vida na Terra, incluindo nós mesmos" (TOKAR, 2002, p.2).

A formação e o crescimento da indústria química estiveram relacionados à busca por alternativas sintéticas a recursos naturais utilizados largamente como insumos industriais, com o objetivo de baratear a produção e dar autonomia a países que careciam desses recursos. A descoberta de corantes sintéticos na segunda metade do século XIX inaugura a nova era do substitucionismo sintético, cujo potencial foi logo percebido pelas companhias químicas alemãs. No início do século XX, um dos recursos almejados por essas indústrias foi o nitrato, insumo básico para a produção de fertilizantes e de pólvora, cuja extração e comércio eram monopolizados pelo Chile.

Com a irrupção da Primeira Guerra Mundial, o bloqueio naval inglês à Alemanha tornou a substituição sintética do nitrato uma questão de sobrevivência para os alemães. Em 1915, a empresa BASF foi bem-sucedida na produção em grande escala do nitrato sintético, que passou a ser utilizado amplamente na forma de explosivos,

renovando o fôlego da Alemanha no conflito (BORKIN, 1979, p. 7). Esse mesmo processo viabilizou a produção em massa de fertilizantes de nitrato sintético, que foram difundidos mundialmente. Outra alternativa bélica frente à escassez de pólvora foi o uso de substâncias tóxicas da produção de corantes, como o gás clorídrico e o fosfeno, na forma de armas químicas. Para viabilizar esse artifício, houve um esforço conjunto das três principais indústrias químicas alemãs, BASF, Bayer e Hoechst, que integraram seus conhecimentos para fornecer os químicos tóxicos e efetuar diretamente os ataques com sua expertise técnica (Ibid., 14).

Após os ataques com armas químicas, os países Aliados tomaram consciência da vantagem militar que o monopólio alemão na produção de corantes sintéticos representava. Os EUA passaram a encorajar empresas privadas a entrarem nesse mercado, recebendo uma resposta positiva da companhia DuPont, a maior empresa química do país e a principal fornecedora de pólvora e explosivos às forças armadas estadunidense - apenas na ocasião da Primeira Guerra Mundial foram 680 mil toneladas de explosivos. Anos mais tarde, a DuPont se tornou uma das principais produtoras dos clorofluorcarbonetos (CFCs), responsáveis pelo buraco na camada de ozônio do planeta (TOKAR, 2002, p.2).

Preocupadas com a competição trazida pela questão militar, as companhias químicas alemãs se uniram em um único interessen gemeinschaft (comunidade de interesses) com o objetivo de fortalecer sua posição em um mundo pós-guerra, formalizando a cooperação iniciada no esforço de guerra para a produção de armas químicas (BORKIN, 1979, p.16). Em 1925 todas as empresas químicas alemãs se uniram, formando uma única entidade gigantesca chamada IG Farben - a maior empresa química do mundo. O principal objetivo de seus diretores era produzir gasolina a partir do carvão para superar um dos gargalos que havia levado a Alemanha à derrota na Primeira Guerra (Ibid., p. 35).

Na década de 1930, com o fortalecimento comunista nas eleições legislativas, os principais industrialistas e financistas alemães apoiaram publicamente a campanha política de Hitler, cujo principal doador foi a IG Farben. Anos mais tarde, trabalhando em parceria com a polícia secreta alemã (SS), a empresa se tornou a base da produção de guerra nazista, utilizando prisioneiros dos campos de concentração como cobaias de experimentos e mão de obra escrava. A IG Farben testou em humanos, fabricou em larga escala e vendeu ao exército nazista o Zyklon B, um inseticida à base de cianeto usado no Holocausto para aniquilar mais de um milhão de pessoas nos campos de

concentração de Auschwitz, Birkenau e Majdanek. Em 1946, após o término do conflito, o Tribunal de Crimes de Guerra de Nuremberg concluiu que a sem IG Farben a Segunda Guerra Mundial não teria ocorrido (Ibid. p. 42, 74, 101).

De acordo com o Procurador-Geral, Telford Taylor:

“Esses criminosos da IG Faben, e não os nazistas fanáticos, são os principais criminosos de guerra. Se a culpa por seus crimes não for trazida à luz e se eles não forem punidos, eles representarão uma ameaça muito maior para a paz futura do mundo do Hitler, se ele ainda estivesse vivo... O indiciamento acusa esses homens de grande responsabilidade por lançarem sobre a humanidade a guerra mais abrasadora e catastrófica da história humana. Eles são acusados de escravizar, saquear e assassinar pessoas em massa. Essas são acusações terríveis; nenhum homem deve subscrevê-las frívola ou vingativamente. (Ibid. p. 106, tradução nossa).

O Tribunal de Nuremberg ter indiciou 24 executivos e membros do conselho da IG Farben por crimes contra a humanidade e condenou 13 à prisão - anistiados em 1952 pelo governo da Alemanha Ocidental. A empresa retornou à sua configuração anterior e a Bayer continuou a ser administrada por criminosos de guerra (Ibid.). Com o fim da Segunda Guerra Mundial, as empresas químicas que haviam se expandido durante o conflito voltaram seu interesse para agricultura, a fim de empregar sua capacidade produtiva ociosa e ampliar o tímido mercado de agroquímicos.

A indústria agroquímica definiu a agenda para mudar as práticas agrícolas, dominando a formulação de políticas agrícolas e as informações disponíveis para os agricultores. Também forjou alianças estratégicas com as empresas globais de comércio de grãos emergentes, como a Cargill, ConAgra e Archer Daniels Midland. [Assim] as receitas totais da produção de inseticidas aumentaram de US $ 10 milhões em 1940 para US $ 100 milhões em 1950 para mais de US $ 1 bilhão no início dos anos 2000 (TOKAR, 2018, p. 6, tradução nossa).

Atualmente, a gigante farmacêutica Bayer se tornou a maior empresa de sementes e de agroquímicos do mundo, após adquirir a Monsanto por 66 bilhões de dólares em 2018, cujo histórico é igualmente infame. Fundada em 1901, a Monsanto foi percussora na produção de substâncias explosivas e gases venenosos, como as dioxinas. Dioxinas são compostos extremamente tóxicos, que inibem o sistema imunológico, além de terem efeito cancerígeno e teratogênico (provoca má formações congênitas) (Ibid. p. 4). Essas substâncias estão presentes no herbicida 2,4,5-T e são um subproduto do herbicida 2,4-D. Juntos, esses dois agroquímicos formavam o "agente laranja", usado na Guerra do Vietnã para desfolhar florestas tropicais e tornar as tropas vietnamitas visíveis. A Monsanto foi a principal produtora e vendedora dessa substância para o exército dos EUA, que pulverizou 75 milhões de litros do agente laranja ao longo de dez anos (1961-72) sobre 4,8 milhões vietnamitas. Em 1976, 4 anos após o fim da

guerra, as dioxinas foram proibidas nos EUA (STELLMAN J.M., SETELLMAN S.D., 2018, p. 726).