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CAPÍTULO 4 A TRANSIÇÃO PARA O REGIME ALIMENTAR

4.3. O Surgimento do Regime Alimentar Neoliberal

Em meados da década de 2000, deu-se início a um debate na literatura dos regimes alimentares sobre o possível surgimento de um terceiro regime alimentar. Analisando as transformações na economia política internacional a partir de 1970, Friedmann (2005, p. 228, 229) sugeriu que estaria em curso a transição para um novo regime alimentar, baseado na apropriação seletiva de demandas dos movimentos ambientais e na centralidade das corporações transnacionais. O surgimento de um regime alimentar corporativo-ambiental representaria a convergência de políticas de regulação ambiental e o reposicionamento das corporações nas cadeias de fornecimento globais. Para McMichael, o novo regime alimentar é um vetor chave do projeto de reestruturação global do neoliberalismo, localizado dentro da dinâmica geral de abertura dos mercados e privatização da esfera pública. Instrumentalizados por essa dinâmica, os Estados tornam-se subservientes ao capital transnacional, seguindo as regras impostas

27 "As crises que instabilizaram a economia mundial na década de 70 foram seguidas de dois movimentos de reafirmação da hegemonia americana no plano geoeconômico (através da diplomacia do dólar forte) e no plano geopolítico (através da diplomacia das armas), que modificaram, profundamente, o funcionamento e a hierarquia das relações internacionais a partir do começo da década de 1980" (TAVARES, FIORI, 1998, p. 55).

pela ideologia do mercado, "um conjunto de regras que institucionalizaram o poder corporativo no sistema alimentar mundial" (2005, p. 273; 2009, p. 153). Recentemente, McMichael também afirmou que o terceiro regime alimentar pode ser definido pela “hegemonia de mercado” e pelo "seu papel em um amplo projeto neoliberal dedicado a assegurar rotas transnacionais de capital e commodities (incluindo alimentos) - transformando pequenos agricultores em uma força de trabalho global informal em prol do capital." (2016, p. 16).

Apesar de sua importante contribuição teórica, a elaboração pioneira dos autores a respeito do terceiro regime alimentar possui algumas limitações ou imprecisões apontadas por outros pesquisadores (GOODMAN, WATTS 1994, 1997; OTERO, 2013; TILZEY, 2018), sobretudo sua abordagem quase funcionalista da lógica de capital, enfatizando os efeitos e preterindo os atores e as causas em sua análise do capitalismo.

A análise de McMichael parece sugerir que a expansão do neoliberalismo é basicamente um processo de imposição "sem agentes", em que anteriormente os espaços políticos que restringiam o mercado são submetidos à lógica de acumulação do regime alimentar "corporativo". (...) O ponto que desejo enfatizar aqui é que o neoliberalismo, a globalização, ou o regime alimentar "corporativo", são de autoria dos Estados, ou mais especificamente, pela hegemonia das frações de classe dentro dos estados hegemônicos. (...) McMichael ignora a agência de classes e o conflito dentro e entre o nexo capital-Estado. Sugiro, portanto, que o papel do Estado ainda é determinado por lutas entre forças sociais localizadas dentro de um nexo específico entre o capital e Estado, mesmo que as forças sociais possam estar implicadas em estruturas transnacionais" (TILZEY, 2018, p. 149, 150, tradução nossa).

Um exemplo disso é a afirmação de McMichael (2016, p. 80) de que, em contraste com os regimes alimentares anteriores, o regime alimentar sob o neoliberalismo institucionalizou uma relação hegemônica onde os Estados servem ao capital. Segundo o autor, esse é o principio organizador que o distingue, pelo qual os direitos corporativos foram elevados acima dos direitos soberanos dos Estados e seus cidadãos, particularmente por meio das regras da OMC.

De fato, o Estado desempenha um papel de favorecer e legitimar os interesses do capital. Não obstante, o capital não se caracteriza por uma classe monolítica com um projeto político coeso, mas por uma classe fragmentada em diferentes frações de classe, cujos interesses por vezes se contrariam. Além disso, o Estado precisa equilibrar sua atuação com as demandas populares, a fim de sustentar a ordem estabelecida. No caso dos DPI sobre sementes, eles só existirão onde o Estado garantir sua efetivação, o que ocorre sobretudo nos países centrais. Não se trata, portanto, de uma sobreposição das corporações transnacionais ao Estado, mas da atuação deste fazendo valer os novos DPI.

argumentamos que é preciso evidenciar os elementos básicos de continuidade do segundo regime alimentar, por vezes omitidos. Entre eles, o fato de que os Estados (do Norte) permanecem sendo os atores de maior proeminência na regulação da agricultura no período neoliberal. Não cabe denominá-lo, portanto, regime alimentar corporativo, na medida em que os Estados continuam tendo um papel decisivo no regime alimentar, ainda que seja na promoção de políticas neoliberais. Por fim, outros aspectos preteridos pelos autores mencionados são a contingência histórica de determinados eventos e as contribuições de outras disciplinas como história, direito internacional, ecologia e biologia/agronomia.

O regime alimentar estadunidense ou "produtivista" legou ao regime alimentar neoliberal a industrialização da agricultura, o recrudescimento da centralização do capital, o fortalecimento das corporações multinacionais, o aumento dos impactos ecológicos e o aprofundamento da dependência alimentar em países periféricos.

A agricultura incorporou um alto grau de mecanização e de utilização de agroquímicos, em virtude da pressão das corporações "a montante" do processo de produção agrícola, e para atender as demandas das indústrias agroalimentares "a jusante" desse processo. A integração e a internacionalização do capital agroalimentar por meio da liberalização comercial e dos avanços nas tecnologias de conservação de alimentos resultaram na ascensão de complexos agroalimentares, especificamente dos complexos do açúcar, do trigo, do milho/soja/pecuária e da produção de alimentos processados; "aumentando a separação e a mediação pelo capital de cada estágio, da matéria-prima ao consumo final" (FRIEDMANN, MCMICHAEL, 1989, p. 113). Assim, a agricultura "deixa de ser primordialmente um produto final, para consumo, e se torna um insumo para a indústria e para a pecuária" (LIMA, 2014, p. 137). Nos países do Norte, a atuação política dos fazendeiros em defesa de seus interesses foi gradualmente perdendo espaço para o lobby das grandes corporações, que passam a ter maior influência nas decisões dos governos. Já no Sul global, a introdução do pacote tecnológico alargou a dependência dos agricultores da compra de insumos externos, enquanto o cultivo de vários alimentos tradicionais foi substituído pelo plantio de commodities para a exportação (BERNSTEIN, 2015, p. 7-9).