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A busca do rendimento esportivo e o afastamento da educação integral

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5. CAPÍTULO III A (des)integração Oriente-Ocidente: judô e o processo

5.2 A busca do rendimento esportivo e o afastamento da educação integral

O processo de esportivização do judô não surge de imediato. Ele foi se desenvolvendo gradativamente e aos poucos se aproximava ao modelo de esporte moderno proveniente da Inglaterra.

A migração do modelo educativo de Kano, que ainda resguardava princípios e valores do Oriente, para o modelo ocidental de esporte moderno em parte já estava sendo traçado por ele em especial por seu envolvimento com o movimento olímpico de Pierre de Cobertain.

Kano sabia que este processo de migração desvirtuaria o judô de seus pressupostos originais e, por este motivo colocava-se numa posição neutra em relação à inclusão do judô no movimento olímpico.

De fato ele já previa, e de certo modo, estava preocupado com o destino do judô como esporte.

Em uma passagem Kano (apud WATSON, 2011, p. 31) diz:

Tenho sido questionado por várias pessoas de diversos setores quanto ao sentido e a possibilidade do judô ser introduzido nos Jogos Olímpicos. Minha opinião sobre este assunto é um tanto passiva. Se esse for o desejo dos membros de outros países, não tenho objeção, mas não me sinto inclinado a tomar nenhuma iniciativa. Por um único motivo: o judô na realidade não é um mero esporte ou jogo. Eu o considero um princípio de vida, arte e ciência.

Este trecho foi retirado de uma carta sua enviada a Gunji Koizumi em 1936 para evidenciar que ele não desejava ver o judô transformar-se num esporte como os outros.

Porém Koizumi foi um dos líderes que protagonizaram a organização esportiva do judô na Inglaterra com a criação da União Européia de Judô (WATSON, 2000, p. 137)

Diante disso cabe questionar: a característica principal do desenvolvimento do judô como prática esportiva de alto rendimento, constituída de valores filosóficos ou morais que reforçam as características do homem na modernidade, ligados ao capitalismo, reflexo do pensamento ocidental, aproxima ou distancia a possibilidade educativa da formação integral do ser humano?

Norteados por esta questão, podemos analisar as implicações educativas presentes na adoção da prática do judô de alto rendimento como modelo metodológico e filosófico a ser seguido.

Parte desse processo de análise foi feito por Carvalho (2007, p. 24-26) que ousou questionar a manutenção de uma prática pedagógica cuja ideologia está fundada nos processos hierárquicos irrefletidos que favoreceram a “estabilidade

da sociedade capitalista”, ou seja, a ideologia dominante que claramente retrata o

Segue dizendo que velhas concepções de mundo e velhos paradigmas devem ser repensados e que as práticas pedagógicas judoísticas não devem estar baseadas no “simples educar para a obediência, submissão e aceitação voluntária

da servidão dos interesses de uma classe dominante dissoluta”

Isso sem contar a forte massificação do judô como esporte de rendimento, sua quase imposição como modelo único de referência para a evolução de sua prática, a necessária vinculação aos órgãos reguladores (federações) que detêm o poder de validar e oficializar as graduações e a centralização da expressão máxima de sua prática no ato competitivo que apontam para a participação de crianças cada vez mais jovens em competições oficiais.

Esta preocupação também é apontada por Carvalho (2007, p.28) que afirma que “a competição precoce, onde o importante é vencer ou vencer a

qualquer custo, precisa ser rigorosamente negada a todos os indivíduos até os 17 anos.”

A educação integral, uma das premissas do judô Kodokan, perde-se nesse universo de práticas que valorizam em demasia o individualismo, vertente totalmente contrária às emergentes necessidades educativas contemporâneas que vislumbram o “educar para a solidariedade”, além do forçado distanciamento, e até por que não afirmar, a proibição da ludicidade na expressão da motricidade, contraria aos processos naturais de formação da representação mental na infância, sem contar o distanciamento das relações dialógicas em razão da manutenção das estruturas hierárquicas determinadas pelas instituições representativas (federações e confederações).

Esta perspectiva de distanciamento da educação integral pensada e vivida por Pestalozzi, seguida de Herbert Spencer e vinculadas por Jigoro Kano ao judô, dá lugar a uma educação de desintegração e fragmentação do SER a partir de práticas pedagógicas fundadas na “ideologia dominante de interpretação

mecanicista”. Assim segue Carvalho (2007, p. 35):

Enquanto prática social, histórica datada, esta “arte de combate” permanece a referendar o autoritarismo, o individualismo, a

competitividade, a falsa “neutralidade” política e as práticas burocráticas medievais verificáveis por via empírica.

Há de perguntarmos: dimensão valorativa do esporte de competição, parâmetro de referência para o judô na atualidade, é fator de humanização do homem em sua totalidade?

Segundo Gonçalves (2007, p. 161-162) o esporte competitivo perdeu a essencia fundamental da prática motora do humano, sua capacidade de simbolizar no universo da ludicidade como podemos acompanhar:

O esporte competitivo, conforme já afirmamos, perdeu, há muito, suas características lúdicas, ao reproduzir as tendências históricas da sociedade industrial: a racionalização, a competição, o rendimento e a elitização. A gratuidade do movimento presente no jogo, a liberdade corporal, foi transformada, no esporte competitivo, em regras rígidas, ondem prevalecem a disciplina e a instrumentalização do corpo.

O entedimento da corporeidade vivida pelo homem na cultura oriental, fundada na integralidade do ser humano em conexão com a realidade que o envolve, perde espaço como referência de valor educativo a ser vivenciado para dar lugar a uma corporeidade que, ao previlegiar a superação do outro, torna o corpo um instrumento dos ideais competitivos.

Assim, o esporte espetáculo, fim último do processo no qual o judô é parte integrante, deixa de preocupar-se com o homem em sua integralidade, para viver o processo de seleção e especialização de atletas submetidos a exaustivos processos de treinamento voltados excusivamente ao rendimento competitivo, como reforça Carvalho (2007, p. 234):

O esporte, tanto individual quanto coletivo, sob a perspectiva de uma sociedade competitiva produz a um só tempo resultados desastrosos: ignorância, individualismo, competição, meritocracia. A competição, em nada atenua os efeitos deletérios da prática competitiva, apenas escamoteia a inevitável construção de um ethos mórbido sob o qual homens e mulheres se batem pelo “nada ser” ou pelo “ser nada”, simplesmente “ter”!

Como afirmam Pinto et al. (2009) em relação as transformações do judô para prática esportiva:

O que deveria ser uma prática física voltada ao bem estar e ao aperfeiçoamento de cada indivíduo praticante tomando parte dos princípios postos por Jigoro kano, dá lugar a uma prática física dotada de uma infinidade de estruturas e subgrupos que o tornan algo que sua criação não determinava.

Para se pensar na educação integral é necessário olhar para o ser humano que pratica judô e não o judô que pratica o ser humano.

5.3 O judô competitivo: um sistema simbólico do bujustsu

Como vimos anteriormente o judô, em seu processo histórico como atividade de luta, passa por transformações em seu sistema simbólico, ou seja, os sentidos e significados atribuídos às finalidades da prática dos movimentos e das técnicas que compõem o repertório motor da luta.

Quando Kano promove mudanças no antigo jujutsu não alterou apenas as estruturas e classificações técnicas dos golpes, construiu também novos sentidos para sua prática. Lembrando que esses novos sentidos foram construídos a partir de um pensamento sistêmico, retrato da integração dos valores e pensamentos provenientes do Oriente e do Ocidente num projeto pedagógico/filosófico visando a formação do homem.

Barreira (2012, p. 37) explica que as artes marciais, as lutas e as modalidades esportivas de combate possuem valor intrínseco, especialmente quando se afastam da necessidade de utilizá-las como forma de sobrevivência. Esses componentes são por ele classificados como “objetivação valorativa” ou seja “à objetivação dos motivos que atraem seus praticantes e daqueles que os

Sabemos que os motivos para a prática do judô se alteram historicamente e com isso criam novas intencionalidades aos praticantes.

Kano, ao criar o judô, dá um sentido moral e filosófico ao combate, numa integração entre o velho e o novo, de forma a não atribuir a luta um fim em si mesmo, como ocorria nas lutas feudais onde o pragmatismo foi fundamental, pois o combate baseava-se na preservação da vida.

Na atualidade, após o processo de esportivização, evidentemente os combates não ocorrem mais por necessidade de preservação da vida, mas o pragmatismo, próprio das lutas feudais no Japão, pode ser observado no objetivo de ganhar prestígio, sucesso e dinheiro que são indicadores do sistema meritocrático das políticas econômicas e culturais das sociedades ocidentais onde a disputa competitiva vê a concorrência com um fim em si mesmo (VILLAMON et al. , 2004).

Esta aproximação pode ser vista no relato a seguir:

In the midst of the battle, the two figures meet. Stained with mud and blood, they cast off their broken swords and collide in a last, desperate effortat survival. Their armored limbs clash violently and snake around each other to get a tight grip. There is a pause, and before he can think, one of the warriors feels the tearing burn of his enemy’s dagger under his chest guard. With a yell the larger one hurls the other to the ground with a dull thud. The fallen warrior’s eyes quiver shut as his foe rushes on . . . . The crowd is a dazzling nova of flashbulbs. With their once-clean white uniforms hanging limply about their sweaty bodies, the contestants show clear signs of tiring. The clock ticks past 10 minutes, but it is no time to be faint of heart, for both had scored half points and the championship is on the line. Back and forth they feint until—an opening! In a flash, the match is over with a clean reverse hip throw. Quickly, they bow and leave the mat—one to enjoy a riotous victory party, the other to nurse wounded pride and plan for the next encounter. . . . (CARR, 1993, p. 167)

Assim, como afirma Carr (1993, p. 187) “o guerreiro clássico lembra o atleta de elite onde o foco está na praticidade e não no espírito da arte”

Um dos objetivos deste trabalho é entender os fundamentos filosófico/educativos que compõem os sistemas simbólicos da luta de judô, consecutivamente sua “objetivação valorativa” e as suas influências na construção da intencionalidade dos praticantes.

Neste sentido os sistemas simbólicos atribuídos á prática de luta vão formando diferentes modos de “objetivação valorativa” que como vimos, aproximam a prática do bujutsu com a competição moderna (atividade de luta com fim em si mesma) assim como pode aproximar as práticas de luta fundamentadas no budô e o judô de Kano com uma proposta de reestruturação a partir da Ciência da Motricidade Humana (atividades de luta destinadas a uma finalidade mais ampla e abrangente)78.

5.4 A crise de identidade do judô: arte marcial, defesa pessoal, prática

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