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A busca pelo “patrocínio particular”

No documento O Desencantamento das Ciências (páginas 72-76)

Diferentemente do acontecia com as menções à burocracia, a abordagem do financiamento e apoio privado à criação e sustentação do sistema de produção de conhecimento foi feita em diversas frentes na revista. Isso englobava: a) citações esporádicas em meio a artigos que se dedicavam à avaliação das condições de existência e as perspectivas futuras no Brasil; b) textos escritos cuja finalidade era a de “sensibilizar” os donos de “fortuna particular” para sua co-responsabilidade não apenas com a aplicação direta de recursos financeiros em pesquisas específicas, mas também na criação de estruturas de apoio e garantia de continuidade da existência e funcionamento das pesquisas no longo prazo.

Como afirmamos acima, a explicação para o apelo aos empresários está vinculada aa sua relativa independência do sistema burocrático. Mas essa explicação não é suficiente se não reconhecermos nela uma dimensão simbólica, um significado que certamente ultrapassa a idéia de uma “escolha racional”, optar pelos empresáriosem vezde apoiar-se no Estado. Como temos tentado evidenciar, o trabalho de convencimento a que se propuseram os cientistas ganhava dimensões bastante complexas à medida que se apresentavam todas as suas demandas. Seu interesse principal, que era o de garantir que houvesse uma produção de conhecimento científico que pudesse ser reconhecida como tal internacionalmente, era secundado por iniciativas dirigidas a um espectro muito amplo de atores sociais. E na verdade, o que podemos divisar hoje, ao início do século XXI, é que o modelo que prevaleceu no Brasil foi aquele alicerçado no financiamento público. Mas isso somente se nos mantivermos restritos à idéia de um sistema de produção de conhecimento limitado às fronteiras

do Estado-nação. Hoje tecnociência – produto da indistinção entre técnica e ciência – a ciência tornou-se a ciência como negócio e foi naturalmente integrada às estruturas das grandes empresas, sem incompatibilidades, com mínima burocracia. E é óbvio que o que afinal de contas era incômodo era o tipo de controle, a necessidade da explicação, seja ela em que nível for. A produção científica, e o que dela resulta, canonizou a rapidez de resultados como indicativo de eficiência – e tanto prometeu compensações por isso que hoje se vê impelida a responder demandas “do público” com agilidade – e com isso agregou mais um tipo de incompatibilidade com o sistema democrático, porque o conjunto de mudanças acarretadas modifica as relações numa velocidade maior do que a do sistema normativo.

Certamente, isso faria felizes os diversos autores de artigos em Ciência e Cultura, que nutriam uma simpatia pela iniciativa particular, que às vezes a fazia ser descrita como se, no que concerne à ciência, fosse substancialmente diferente do Estado, incapaz de opor obstáculos à pesquisa. Assim, no texto abaixo,Ciência e Cultura afirma que o cientista que trabalha em instituto particular de pesquisa,

ma ntido por inicia tiva priva da , entã o [tem] a situa çã o a inda ma is segura , po rque o instituto ma ntém-se a sa lvo de influência s funesta s co mo a po lítica ma l o rienta d a o u a necessida de da execuçã o de serviço s o utro s que nã o seja m a própria investiga çã o83

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São claras as referências que orientam essa avaliação. A burocracia na instituição particular, como sustentamos acima, é considerada um estorvo facilmente contornável, senão inexistente. A busca do lucro isenta de “influências funestas”. E, dentro da instituição particular, o cientista teria assegurada sua liberdade de pesquisa, além da garantia de uma sobrevivência digna. O empresário, este teria outro tipo de compensações:

se diversos ca pita lista s se reunissem e pa trocina ssem a construçã o de um gra nde la bora tório de pesquisa s nuclea res, esta ria m conquista ndo um luga r na histó ria do desenvo lvimento científico , esta riam se imorta liza nd o84

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Devemos então especificar os argumentos reunidos em torno dessa defesa, e mostrar como e a quem dirigidos. Como era freqüente, a declinação da importância da ciência precisava ser contextualizada em termos práticos. À nação, à importância da ciência para a nação, aos cientistas, eram agora adicionados os empresários. Na tradição do pensamento liberal, a criação do Estado estabeleceu uma dicotomia, que logo se transformou também em uma oposição entre Estado e Sociedade. À iniciativa particular permitia-se fazer o que julgasse necessário para garantir retorno

83Ciência e Cultura : vol. III, n. 1, 1951, p. 49.

financeiro na forma do lucro, enquanto ao Estado cabia zelar pelo interesse público. Os cientistas, por outro lado, pretendiam justificar sua existência por meio do serviço ao desenvolvimento da nação. Naquele momento, isso não era automaticamente transformado numa necessidade produzir dentro do aparelho do Estado. Até ao contrário, a desqualificação do Estado era um argumento a que se recorria freqüentemente. Dever-se-ia buscar formas alternativas de fazer ciência sem depender do Estado:

essa fa lta de proteçã o à pesquisa a dvém, principa lmente, de nosso hábito de tud o espera r do governo - a uxílio, proteçã o, recursos econômicos e a té estímulo pa ra nossa s a tivida des, e que a os poderes constituídos deve ca ber a responsa bilida de do ensino em seus vários gra us, do estímulo à pesquisa e da forma çã o de profissiona is há beis nos vá rios setores da ativid a de huma na85.

Já vimos acima como os cientistas descreviam-se como parte das elites da nação. Essa imagem foi retomada, como veremos a seguir, para torná-los interessantes às elites econômicas:

da s elites intelectuais é que a d vém o pro gresso da na çã o . Pa ís sem elite intelectua l que cond uza a m a ssa a destra da , está fa d a do à esta gna çã o. Compete a o Esta do a destra r e instruir a ma ssa ; à fo rtuna pa rticula r compete instruir e proteger a s elites intelectua is, em toda s a s sua s a tivid a des, é fa tor de progresso e concorrerá , nã o só pa ra a umenta r a fortuna pa rticula r, como pa ra fa zer progredir a Na çã o a tra vés de sua indústria , de seu comércio e de sua la voura . Auxílios inteligentem ente distribuído s co nferem juro s a pra zo curto, so b a forma do reco nhecimento do homem e do s deuses e a prazo lo ngo, sob a fo rma de juro s co mpo sto s e a cum ula d os, resulta do do pro gresso da Na çã o e da maior ca pa cida de a quisitiva do po vo86

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Fazer os interesses do outro se tornarem função de seus interesses, estabelecer uma relação de dependência que mescle dever moral, retorno financeiro e responsabilidade com o desenvolvimento nacional. Ao mesmo tempo, elaborar essas diretrizes em um discurso que utilize os termos supostamente compreensíveis por aqueles que queriam sensibilizar. O texto acima corresponde a essa descrição e seu alvo era a “iniciativa particular”, o capital privado. Apesar da tensão existente entre os cientistas e a burocracia de Estado, o interesse da nação, o interesse público, não sendo tangível, não sendo propriedade senão do conjunto a que lhe deu origem, dava aos cientistas um momento de igualdade dentro da sociedade que lhes permitia reivindica r mudanças no comportamento da burocracia, algum relaxamento das normas burocráticas quando aplicadas ao trabalho de pesquisa científico.

No caso da iniciativa particular, a propriedade privada dos recursos que poderiam acelerar o

85Ciência e Cultura : vol. II, n. 4, 1950, p. 311.

desenvolvimento das condições para as pesquisas, não os permitia assumir a mesma posição. A reivindicação precisou ceder lugar àseduçã o, ao convencimento. Muda o caráter argumentos, que não assumem a forma das obrigações e não acarretam penalidades a quem as despreze, exceto a perda de oportunidades de lucro. Podem mesmo tentar mimetizar a linguagem que seria reconhecível pelos empresários, e é quase patética a tentativa de converter o “reconhecimento do homem e dos deuses” em juros de curto prazo. É claro que este argumento apenas recobre o que seria o verdadeiro interesse dos empresários e, no discurso dos cientistas, logo emerge a demonstração da fungibilidade da ciência. A formação dos cientistas deveria passar à esfera da responsabilidade das elites financeiras. Contrastada com a sempre manifesta vontade de liberdade de pesquisa, a facilidade com que, neste texto, os cientistas dispõem-se a serem tutelados pela “fortuna particular” é, para dizer o mínimo, impressionante.

De modo geral,Ciência e Cultura defendia como um modelo de investimento privado o que acontecia nos Estados Unidos. As doações po st-mo rtem, na forma de espólio, ou em forma de investimento direto em universidades e em suas estruturas foram mais de uma vez lembradas em artigos publicados na revista:

oxa lá os nossos homens de fortuna, mesmo gua rd a da s a s proporções, imita ssem o a merica no neste ponto, neste desejo sincero de devolver à coletivida de um pouco d o que dela recebera m. (...) Os nossos homens de fortuna precisa m seguir ta is exemplos, senã o na magnitude, pelo menos no número. ( ) Estou plena mente convencido ser esta uma da s melhores forma s de pa triotismo na s atua is condições bra sileira s. Dêem os nossos industria is, ba nqueiros, comercia ntes etc. um pouco do muito que recebem da coletivida de87

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Não é possível desconsiderar também que nos argumentos dos cientistas estava implícita uma tentativa de convencer os empresários em investir no que consideravam ser a “ciência pura”. Por mais que se negasse essa divisão em alguns ( poucos) artigos, o entendimento de que a ciência pura poderia, ou melhor, deveria, ter lugar na empresa privada, governava a moralidade do argumento. É como se dissessem aos empresários: não peçam que nos dediquemos à pesquisa de produtos e soluções. Queremos apenas o conforto de um laboratório bem aparelhado, com o mínimo de interferências. Se, por acaso, na exposição de nossos resultados, ou num passeio fortuito pelo laboratório, o nosso patrocinador divisar alguma aplicação lucrativa para o que “descobrimos”, tanto melhor, ele apenas cumpre sua missão, contribuindo para melhorar a vida da população e desenvolver a nação. O que talvez nenhum cientista pudesse adivinhar é que o “olhar empresarial” não continuasse

a vir de fora, mas passasse a ser o seu próprio olhar. Mas, enquanto não chegava a era do cientista empresário, era bom seguir lembrando

que a descoberta do DDT constitui exem plo, nã o muito comum na história da ciência , de desco berta feita por pesq uisa dor a serviço de firma pa rticula r. Considera ndo o que essa descoberta representou pa ra o bem- esta r da huma nida de e o que trouxe, por outro la d o, de benefício, a liá s muito merecido, pa ra a firma Geigy, outra co isa nã o é po ssível co ncluir senã o que a pesquisa co mpensa la rgamente o dinheiro que nela se investe88

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No documento O Desencantamento das Ciências (páginas 72-76)