• Nenhum resultado encontrado

1.5 1.2 Ciência e Sociedade: “justificação” e “combate”

No documento O Desencantamento das Ciências (páginas 79-81)

Normalmente, o tipo de análise a que se refere o subtítulo desta seção opõe à sociedade “como um todo” um objeto – assim, medicinae sociedade, ou ainda o sindicato e a sociedade – sem que necessariamente ele possa lhe ser considerado externo. Própria dos binários da modernidade (que consideramos no capítulo anterior), e indicativa de uma certa incapacidade da linguagem e dos paradigmas vigentes em lidar com o antigo problema da relação entre o todo e suas partes, essa forma de abordagem evidencia no mais das vezes uma insuficiência metodológica. No entanto, para a discussão sobre a tecnociência95, devemos considerar um grau a mais de complexidade, na medida em

que envolve o longo debate sobre seu caráter a-histórico e a-social.

É aí que se inserem os dois grupos de objetivos da SB PC,a e b, c e d. Por meio deles, os fundadores da SBPC articularam uma dupla externalidade da ciência: por sua própria natureza ela é considerada externa à sociedade – externa lida de a bsoluta, a consideração da ciência como independente e mais duradoura do que qualquer sociedade. Mas, naquele momento, ela é também externa à nação –e xterna lida de histórica, quando as condições para seu desenvolvimento ainda inexistem. O paradoxo aqui reside no fato de que a externalidade absoluta não se impõe a partir de sua própria natureza, ela precisa mostrar-se momentaneamente subordinada à externalidade histórica. Era um paradoxo, mas foi também a origem da percepção da necessidade de reestriamento da sociedade segundo demandas ditas científicas.

Conforme será melhor explicitado adiante, a necessidade da aceitação da ciência pela nação faz com que ela precise ser primeiro relativizada, processo que toma como exemplo a história das demais nações desenvolvidas; sua internalização depende dos benefícios potenciais que possa pro piciar ao país e de sua submissão ao procedimento democrático ( primeiro convencer o público e, “conseqüentemente”, a administração). Vencida essa etapa, a ciência no Brasil poderia continuar a desenvolver-se assegurando, “contra possíveis incompreensões, a liberdade de pesquisa”. Daí a complementaridade dos grupos de objetivos a ,b e c,d. O primeiro refere-se aos processos de

95 Explicita-se a natureza da indistinção entre técnicas e ciências e daí sua junção no termo tecnociências em

vários momentos neste trabalho, mas especialmente na terceira parte de seu segundo capítulo. No entanto, todas as fontes com as quais trabalhamos neste capítulo não operam com esta justaposição, considerando separadas e suficientemente distintas as ciências das técnicas. Assim, sempre que usarmos os termos ciência, ou ciências, e técnicas ou tecnologias é porque assim são mencionados nas fontes.

externa lizaçã o histórica -interna liza çã o rela tiva e o segundo à decla ra çã o -recupera çã o da externa lid a de a bsoluta.

Por isso, a responsabilidade com a construção da nação está a todo momento presente no discurso da SBPC e nos textos dos diversos cientistas publicados emCiência e Cultura. Estabelecidos desse modo, os objetivos iniciais da SBPC revelam uma enorme disposição de intervenção social, na medida em que os cientistas reconhecem a nação como um processo, uma construção, e colocam em paralelo a necessidade da construção da ciência como elemento indispensável à primeira.

Se ainda restar qualquer dúvida a respeito desse processo, o editorial deCiência e Cultura de dezembro de 1950 nos ajudará a afastá-la. Em setembro daquele ano, a SBPC se fez representar naI Reuniã o Interna ciona l d a s Associa ções pa ra o Progresso da Ciência, acontecida em Paris, sob o patrocínio da UNESCO. É significativo que, passados pouco mais do que doze meses desde a sua fundação, a SB PC não apenas já participasse de um encontro internacional desse porte, mas também que seu representante tivesse atuado como presidente dos trabalhos. Nesse editorial, no relato a respeito da Reunião,Ciência e Cultura informa seus leitores sobre os dois “princípios fundamentais” que deveriam ser observados na fundação de organizações similares à SBPC em todo o mundo

10

) a sua independência a bsoluta da s força s política s na ciona is o u interna ciona is; 20

) o fa to de serem dirigida s por cientista s em plena a tivid a de. Se fa lha r qua lquer um dêsses dois princípios básicos, a Associa çã o deixa rá de existir qua se que a utoma tica mente pela rá pida desmo ra lizaçã o dos seus objetivos funda menta is; ma ntidos a queles dois princípios com a necessá ria rigidez, a s Associa ções se sobrepõ em aos a grupa mentos loca is procura ndo servir exclusiva mente a os interesses da ciência e do seu desenvolvimento96

.

Justificação e defesa da ciência deveriam se constituir garantindo total independência em relação a quaisquer forças políticas e a organização seria uma tarefa delegada exclusivamente aos cientistas, que atuariam de forma seletiva, elaborando os critérios utilizados para o reconhecimento e fiscalização da atividade científica. Mas, por meio desses dois pilares declarados fica claro também que, no entendimento dos cientistas, se a ciência é indispensável para a nação, como afirmamos acima, o mesmo não se verifica sobre a necessidade das nações para a existência e desenvolvimento da ciência. Na primeira imagem que propusemos para visualizar o crescimento da ciênciadentro das nações, ela se assemelhava a um vírus, que cresce associado ao organismo invadido. Acreditando em sua anterioridade, mas principalmente em sua durabilidade transhistórica, os cientistas se metamorfoseiam aqui em parasitas, que suplantam e “se sobrepõem” aos seus hospedeiros.

A Ciência tota l a pa rece a ssim como um orga nismo vivo do qua l toda s as ciência s especia liza d a s constituem sistema s, órgã os ou tecidos diferencia dos, servida s pelo mesmo sa ngue impulsiona do por um co ra çã o comum . A SBPC, desde Ca mpina s, vem demonstra ndo que esse orga nismo cresce como um ser vivo, mergulha ndo ca da vez ma is os seus tentá culos no meio a mbiente, especia lmente nos loca is em que se rea lizam a s Reuniões Anua is.97

Externa lida de Histó rica Externalidad e Abso luta

Referente Nação

Todas as sociedades, ou o processo de construção da civilização ou, ainda, a cultura.

Objetivos a) justificar a ciência junto “ao público”;

b) “robustecimento da organização científica nacional, pela melhor articulação dos cientistas, pelo seu mais íntimo conhecimento mútuo, numa tentativa de unir as diversas especialidades e dissipar eventuais incompreensões por meio de ações conjuntas, pelo incentivo à formação de novos pesquisadores e ainda pela remoção de entraves que se oponham ao progresso da ciência”;

d) assegurar que o trabalho dos cientistas, uma vez reconhecido seu valor, não sofra impedimentos

c) “luta pela manutenção de elevados padrões de conduta científica, e ao mesmo tempo combate à pseudo e à meia ciência, que tantas vezes tomam posições que deveriam pertencer à verdadeira ciência”;

Ações A colonização da educação

Arrecadação de recursos financeiros: o “patrocínio particular” Submissão da burocracia

Identidade do cientista: carreira, salários, condições de trabalho

Ł

direitos

Cultura;

Identidade do cientista: responsabilidades, crenças

Ł

deveres

Aqui observamos a dupla externalidade da ciência e seus referentes, bem como algumas das ações julgadas necessárias pelos cientistas, com a finalidade de modificar o ambiente, tornando-o amigável ao desenvolvimento

científico.

No documento O Desencantamento das Ciências (páginas 79-81)