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Normalização e Meliorismo

No documento O Desencantamento das Ciências (páginas 190-199)

3.1 3 As eugenias: Alemanha e Estados Unidos

3.5 Normalização e Meliorismo

O resultado da apresentação das principais forças em uma sociedade que já definiu os embriões oriundos das fertilizações in vitro como simples e facilmente descartáveis "hum a n po ssibilities", precisa ser melhor avaliado. A expressão, e a situação que lhe enseja, eram partes do roteiro de Ga tta ca . Foram filmadas, mas depois cortadas. E isso, novamente, nos aproxima do problema da temporalidade. Embriões não são, ainda, usados e descartados como descreve o filme. Mas já estão presentes em uma outra e bem conhecida ordem de relações e problemas. Trata-se do que fazer com os embriões não utilizados para a fertilização de casais que apresentam dificuldades com a concepção pelo processo tradicional. Como se sabe, no processo de fertilização in vitro ocorre o encontro de vários óvulos e espermatozóides que dão origem a alguns embriões. A taxa mínima de sucesso na consumação da gestação é assegurada pela implantação de vários deles no útero feminino. E por isso, nesses casos é comum o nascimento de mais de uma criança.

Porém, nem todos os embriões são utilizados na primeira tentativa de fertilização; esses permanecem congelados e constituem uma reserva futuramente utilizável, numa possível segunda inseminação. Se nem para isso forem necessários, abre-se ainda um novo conjunto de problemas, amplamente desdobrável: o que fazer com os embriões congelados e para os quais seus “pais” não têm mais planos? Qual é estatuto jurídico dos embriões congelados? Seu direito à proteção legal é equivalente ao de qualquer outro indivíduo? Ou, mais longe, eles têm direito a alguma proteção legal? Estão vivos? São já seres humanos ou meras “possibilidades”? E se seus pais não mais os quiserem, se seu destino for o descarte, podem ser usados como insumo da pesquisa biotecnológica? E terão os pais toda a responsabilidade e liberdade para dispor dos embriões como bem quiserem? Haverá um momento no qual eles podem passar à tutela do Estado?

A ciência jurídica lida razoavelmente bem com a expectativa de um direito, mesmo nos casos em que sua aquisição se dá gradativamente. O problema é, digamos, facilmente resolvível, na medida em que ele seja,stricto sensu, jurídico, político ou ambos. Porém, no caso da determinação do estatuto

do embrião, o que garantiria-lhe ou não a cobertura legal do direito à vida, o Direito esbarra em dois obstáculos principais. O primeiro, a insuficiência da demarcação do que seria a “vida”, hoje baseada em um entendimento tácito e consensual ( pelo menos, até que fosse perturbado pelos desenvolvimentos biotecnológicos) e que nunca reclamou nenhuma definição clara dos limites intermediários entre vida e não-vida; segundo, a própria incapacidade de produzir-se uma determinação técnica ou científica consensual a respeito do “início” da vida no embrião (DAGOGNET; 2003: 103-133) [orientadas pelo “Princípio da Plenitude Tecnológica” (MARTINS; 2000: 44), as tecnociências passam, deliberadamente, ao largo dessas reflexões porque, para elas, realizar tudo o que as técnicas permitem é, mais do que uma possibilidade, um dever].

Como se sabe, os diplomas legais das sociedades modernas são a resultante do choque de vetores políticos divergentes. Sua duração intergeracional não é a evidência de um caráter atemporal, transhistórico ou supra-social. Por outras palavras (e em termos puramente analíticos), a regulação jurídica dos comportamentos morais, e de tudo que lhe subjaz, é secundária e conseqüente às modificações da própria moral. O ato de recorrer aos biólogos e à biologia para dirimir as dúvidas provocadas pelas manipulações tecnocientíficas, é mais um vício da prática jurídica (o apelo à neutralidade da avaliação técnica) do que uma evidência de que os “novos problemas” sejam de estrita natureza biológica. Por isso, também as questões escandidas com o aumento das intervenções e promessas de intervenções biotecnológicas requerem a transposição dos limites jurídico-políticos tradicionais.

Além disso, tem sido apontada a (mais que) relativa atitude complacente das comissões de bioética no tocante aos dilemas provocados pelas novas tecnologias. Em geral, suas regulamentações raramente impõem maiores obstáculos aos recentes desenvolvimentos. O conjunto das novas tecnologias suscita a necessidade de um reordenamento das relações sociais porque modifica qualitativa e, alguns casos, irreversivelmente um número significativo de suas principais precondições. Mas, os principais responsáveis por isso, estão muito longe da disposição de refletir sobre ele se isso puder significar um qualquer tipo de restrição ou mesmo a desaceleração das atuais pesquisas. Sempre que abre-se, ou quer-se fazer abrir, uma nova frente de pesquisas, os pesquisadores investem numa apresentação midiática, estabelecendo uma espécie de canal direto entre e o público e os laboratórios ( poderíamos dar a isso o nome de populismo tecnocientífico?). Nesses casos, a exploração dos “futuros possíveis” alcança o paroxismo. O resultado é um tácito comprometimento desse mesmo público que renova, esperançoso com a proximidade do futuro tecnoprometido, sua aprovação ao trabalho dos cientistas.

Em uma cena cortada das versões do filme, a mãe de Vincent indaga, preocupada, a respeito do destino dos embriões que não lhe seriam implantados. A reação do geneticista é mostrar-lhe o recipiente em que eles estão armazenados e perguntar, de um modo gentil mas também firme e invasivo, se ela podia vê-los. Sem essa seqüência, o filme desvia-se de toda a problemática a ela associada. Não é como se o objetivo fosse apenas debater temas perfeitamente delimitados, ou, melhor dizendo, se quisesse abordar apenas problemas potenciais (futuros). É mais como se ele quisesse cindir o tema da manipulação de embriões em dois campos distintos, como se fossem estanques e mutuamente exclusivos. Ora, a definição moral do estatuto do embrião que permite seu “descarte laboratorial” pertence à mesma ordem daquela que aceita sua “reprogramação” genética. O filme pergunta efetivamente se seremos capazes no futuro de escolher sabiamente entre uma “reprogramação terapêutica” que busca evitar a ocorrência de males consensual e moralmente inaceitáveis (e pergunta se doenças como a miopia deveriam estar entre esses males) e uma “reprogramação estética” de cunho individualista-hedonista, pragmático e utilitário. Mas, ao optar por eliminar a preocupação da mãe de Vincent, o filme novamente contornará um problema, usando a omissão para solucionar, em parte, um dilema215.

Nessa cena, ao menos quatro feixes de relações entrecruzam-se: os papéis sociais do marido e da esposa; os papéis sociais de pai e mãe; o duplo papel do geneticista como técnico e uma espécie de vendedor e, por fim, a tecnologia desempenhando o papel de mediadora entre os três grupos de significantes.

Como marido e esposa de uma família tradicional, as inquietações de ambos delimitam-se por suas funções nessa relação216. Juntando a permanência de um modelo tradicional de núcleo

familiar e a reação de Marie poderíamos perceber o que seria uma sobrevivência social convertendo-se em tecnicamente intolerável, caso não se modifique: a mã e de Vincent, ao demonstrar sua preocupação217 com o destino final dos embriões, é constrangida a suprimir a manifestação do

sentimento materno. Ele torna-se inadequado porque naquela altura era fora -do -momento. Seu marido, que até então havia participado ativamente de todas as decisões a respeito das características

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No início do livroA Arte do Mo to r, Paul Virilio argumenta que, atualmente, não se concede aos meios de

comunicação nenhuma permissão para mentir (o que não os impede de fazê-lo, eventualmente); mas permite-se sua omissão.

216 Quando o geneticista-vendedor ofereceu aa diçã o de habilidades ao embrião recém-escolhido, coube à

esposa exprimir um desejo do casal (“o coral na Igreja”, diz ela ao marido) e ao marido saber sobre seu custo e decidir quase só pela impossibilidade de suportarem a (alta) despesa adicional.

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Lembremos uma das acepções da palavra preocupação: “idéia fixa e antecipada que perturba o espírito a ponto de produzir sofrimento moral”.

de seu futuro filho, omite-se daquele diálogo. Ela enfrenta sozinha a quase-ironia do geneticista e seu desafio para que ela lhe apontasse os embriões no recipiente.

Como se sabe, no Bra ve New Wo rld (HUXLEY; 2001[1932]), a eliminação da necessidade biológica da mãe, tornou supérflua a função social da mulher como mãe e, por extensão, dispensável também a manifestação dos sentimentos maternos. Ali, no entanto, a imagem da tutela organizadora e totalitária do Estado fazia com que a supressão dos sentimentos de maternidade emulasse a ocorrência de uma espécie de extermínio da própria figura das mães. Por isso, no contexto da nova eugenia em Ga tta ca, recusa-se a desnaturalização liminar da função materna. Resulta daí que as primeiras experiências simbólicas de sociedades organizadas em função dos pressupostos eugênicos conduziram a um aperfeiçoamento das mudanças operadas nas relações sociais mais tradicionais. Seu efeito foi o de fazer com que a transição nem pareça excessivamente autoritária nem seja traumática demais, porque ambas as possibilidades permitem uma grande abertura para a recusa das modificações biotécnicas.

Quando o geneticista mostra o recipiente e insiste sobre o fato de que não se podem ver os embriões (que são vistos em dois monitores de televisão durante toda a “consulta”) ele intuitivamente sustenta a preeminência da técnica sobre todo o resto: sem mediação técnica, não há vida. Marie e Antonio, querem ainda deixar algo ao “acaso” (“chance”, no original), esperançosos com o que ele poderia lhes reservar. E de novo o geneticista desqualifica tecnicamente o desejo. Já há riscos demais, argumenta ele. Para que aventurar-se a permtir o aparecimento de uma virtualidade casual se ela traz consigo a probabilidade da manifestação de uma imperfeição inata?

O movimento pelo qual o geneticista, quase invasivamente, aproxima o recipiente da futura mãe, encerra o diálogo sobre os embriões. Se não os vemos é como se eles não estivessem lá218.

A manipulação genética construída em Gattaca é feita em duas fases, se é que as podemos chamar assim. Antes delas, uma primeira divisão social corresponde à grande cisão entre os que podem (ou querem, o que devido à pressão social logo transformar-se-á numa obrigação tácita, um dever e, por extensão, uma dívida futura com os próprios filhos) realizar a manipulação: em fla shba ck, em outra cena que está apenas no roteiro, Vincent recorda que seus pais haviam vendido alguns bens para financiar a concepção de seu irmão. Espera-se então que, sempre que puderem (financeiramente falando), os pais irão conceber em laboratório (tão-só por contraponto, assinalemos que, hoje, a concepção in vitro tem a função bem delimitada de substituir a infertilidade). Já dentro dele, do laboratório, perceberemos as duas divisões: uma que chamaremos a fase dano rm a liza çã o genética e a outra a fase da adição, ou fasemeliorista.

3.5 .1 Normalizar

A no rma lizaçã o corresponde a algumas operações nos embriões, distintas mas complementares. A fertilização, ou seja, o encontro do óvulo com o espermatozóide, é realizada no laboratório. Em seguida, selecionam-se os embriões melhor manipuláveis. Ainda nessa primeira seleção, assemelhada a uma operação de peneiramento, dispensa-se a opção dos pais e o geneticista escolhe embriões que não tenham quaisquer “critical predispositions to any major inheritable diseases”. Isso é em algum grau semelhante ao que já é possível fazer hoje com testes genéticos pré-conceptivos; ou até mesmo pela restrição a uniões sexuais que apresentam alta probabilidade de resultarem em bebês com doenças hereditárias. O gênero do futuro bebê e as definições estéticas externas são demandadas pelos pais: cor dos olhos, cor da pele, cabelos, altura.

Em seguida, o geneticista alerta ter tomado a liberdade de eliminar “any potentially prejudicial conditions”. E quais seriam elas? Calvície prematura, miopia, alcoolismo e susceptibilidade

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A qualidade dessas imagens está comprometida porque, de fato, elas não fazem parte do filme. No DVD

à dependência de drogas, propensão à violência, obesidade, cardiopatias, entre outras. Vê-se, há uma mistura indiscriminada de comportamento e patologia que nos remete à idéia de um determinismo genético reducionista, expressando nada mais do que o conflito entre os que crêem na função preeminente ou do contexto social ou da herança genética (o uso da expressão combinada “patologias comportamentais” não resolve o problema). É preciso evidenciar que, na fase da normalização, a intervenção do geneticista faz-se no embrião, mas manipulando sua própria carga genética: ainda não háa dições. A normalização é aqui o sucedâneo do que no pensamento eugênico chamou-se eugenia negativa. A diferença reside no fato de que aqui a erradicação dosa no rma is é socialmente asséptica: não suscita compaixão, não provoca sofrimento moral, não é violenta, prescinde de instituições de controle e seleção e, principalmente, não parece ser imposta. É uma escolha “natural”.

Nesse sentido, poderíamos mesmo falar no desenvolvimento de uma síntese sem antítese: a eugenia negativa de Ga tta ca realiza tudo o que a eugenia de Francis Galton, a eugenia nazista ou norte-americana desejariam fazer sem os inconvenientes sociais a que estavam sujeitas e ainda mediada pelo argumento técnico, neutro. É o projeto eugênico dobrado sobre si mesmo: seguidamente retomado, ele encontra um contexto social favorável, no qual é purgado de seus elementos abjetos, publicamente intoleráveis219. A manipulação genética dá-se como uma eugenia da Eugenia.

3.5 .2 Melhorar

A fase meliorista corresponde ao momento no qual, após terem sido peneira do s e conserta dos, os embriões estariam preparados para receber melhorias, adquirindo novas habilidades. Os pacotes de habilidades são oferecidos pelo geneticista mais ou menos como dispõem-se opcionais para um carro novo. Há habilidades em geral, como a inteligência, a capacidade de concentração, entre outras ( que seriam como habilidades que predispõe seu portador ao desenvolvimento de novas habilidades: são características adaptativas). E há as habilidades específicas, que parecem ser as mais caras, tais como a acentuação do talento artístico ou esportivo. É o caso do pianista que, embrião, foi melio ra do (seis dedos em cada uma das mãos) para executar uma determinada peça musical de harmonia complexa.

219 Peter Cohen lembra, em Arquitetura da Destruição que, mesmo vigorando a Lei de Prevenção da Progênie

Defeituosa, o Estado Alemão jamais assumiu publicamente que realizava mais do que esterilizações. De alguma maneira todos sabiam ou intuíam: ainda segundo Cohen, a fumaça que subia das chaminés dos fornos de cremação tomava toda a cidade e trazia consigo tufos de cabelos queimados que se espalhavam pelas ruas da cidade.

Como primeiro sentido do termomelio rismo, Lalande ( 1967) explica-o como uma “doctrina según la cual el mundo puede ser hecho mejor por los esfurezos del hombre, convenientemente dirigidos”. Completa-o um segundo sentido, proposto por James Sully, em 1877:

Entenderia po r esta pa la bra la creencia que a firma no so la mente nuestro poder de disminuir el ma l lo que na die pone em duda sino que ta mbién nuestra ca pa cida d de a crecenta r la suma d e bien po sitivo (LALANDE; 1967: 616).

A via domelio rismo genético constrói-se por oposição àquilo que ela gostaria de determinar como m a l e ruim e, portanto, como consensualmente eliminável. Mais ainda, como o que é mal é intolerável, os “esforços convenientemente dirigidos” devem também ser empregados não só para erradicar sua existência como também para impedir seu surgimento. É dado como pressuposto que existe uma valoração moral comum, uma linha divisória a repartir dos bons os maus. No meliorismo genético, à recusa do mal ou do bem absolutos não corresponde uma imediata recusa da história da moralidade que produz socialmente aquela divisão. Ao contrário, nele, ela adquire um movimento coextensivo, que comunica às faculdades humanas genéticas o processo ativo de determinação social dos homens bons. Tudo se passa como se o meliorismo genético fosse capaz de realizar perfeitamente aquilo que o desenvolvimento das instituições sociais não foi capaz de fazer sem questionamentos. A bondade e perfeição dos homens, acreditadas como possíveis manifestações terrenas de qualidades metafísicas absolutas são reveladas não como inconsistentes ou inexistentes, mas como resultado do processo inverso, o de secular ização e materia lização biológica de todo o mal. Se podemos recordar o que escreveu Leibniz sobre o mal

Se puede considera r el ma l meta fisica mente, fisica mente e mora lmente. El mal metafísico consiste en la simple imperfección, el mal físico en el sufrimiento, y elmal moral en peca do (LALANDE; 1967: 598)

No meliorismo genético de Ga tta ca, a imperfeição é causa suficiente de sofrimento e é imperativo moral eliminá-la, como se não o fazer produzisse um delito ético. É importante perceber, a partir Antonio, o pai de Vincent, a existência de uma comunidade de sentido quanto à noção de perfeição que o vincula à sua esposa, ao geneticista e ao restante da sociedade. Quando o geneticista lhes diz das imperfeições que ele já havia eliminado, à menção de cada uma delas, Antonio assente com a cabeça, sorridente. Quando Marie e Antonio dizem querer mesmo assim “deixar algo ao acaso”, Vincent, que brinca no chão, entra sub-repticiamente na conversa. Ninguém o menciona, somente desviam-se olharespa ra ba ixo: o olhar do geneticista, técnico, como que a apontar uma evidência, uma corroboração; e o olhar da mãe de Vincent exprime, mais que lamentação, pena. Na cena

seguinte, somos nós os convidados a olhar para o Vincent menino. Mas o que, verdadeiramente, está em causa, não é necessariamente a manipulação genética em si mesma, mas o desejo de aperfeiçoamento. É nesse sentido que a tecnociência genética conecta-se produtivamente às subjetividades preexistentes. Porque, de fato, trata-se da imagem que temos de nós mesmos, de uma defasagem entre o que somos e o que poderíamos ser. Não é mais unicamente a exortação a “crescer e se multiplicar”, mas crescer sem deixar multiplicar a “imperfeição”. Mas o que não aparece definitivamente é o fato de que na produção dessa subjetividade as tecnociências desempenhem um papel determinante. Na descrição do processo biológico como um encadeamento de operações quase-mecânicas susceptíveis não à indeterminação, mas ao erro incorrigível, o convite à manipulação genética propõe a divisão dos seres humanos em dois grupos: os perfeitos e os imperfeitos.

É claro, não se trata de mediação tecnocientífica, apenas. Antonio e Marie não recusam o melhoramento de seu futuro filho. Eles somente não podem pagar por ele. Inúmeras vezes já colocou-se esse problema nesta ordem de razões: o movimento tecnocientífico “capturado” pela dinâmica do capital; esta, por sua vez, reinventa a distribuição desigual de recursos coletivos e promove a ascensão de uma nova elite; o capital e suas elites sucessivas agindo na perpetuação de sua pró pria prevalência. Seria a reedição da mesma questão, camuflada sob a face de novos atores e novas

variáveis. Se pudéssemos efetuar essa redução, simplificando a distribuição desigual das possíveis perfeições como um efeito direto e causal da concentração dos recursos financeiros, poder-se-ia argumentar em favor de uma espécie de instrumentalização das tecnociências, dirigidas, por usurpação ilegítima de suas finalidades, para o proveito próprio do capital. Ato contínuo, seria também possível esperar pela possibilidade de algo como uma purificação das tecnociências, resultado da modificação ou da superação do liberal-capitalismo.

Por essa perspectiva, a supressão dos diálogos da venda dos melhoramentos – as faculdades artísticas e esportivas adicionadas – torna-se um problema a ser discutido. Relembremos o ocorrido com a publicidade do filme, que anunciava a intervenção genética meliorista como produto já disponível, e que era voltada para pais interessados em aumentar as vantagens iniciais de seus filhos na sociedade220. A resposta obtida foi uma avalanche de telefonemas. Entre alguns grupos de cientistas

essa publicidade foi objeto de questionamento, tornando-se parte de um debate público. A repercussão foi de tal ordem que sua veiculação terminou por ser suspensa. Seria legítimo perguntar se a reação inicial do público, seguida de algum grau de resistência e rejeição de grupos de geneticistas, não teria influenciado também a edição final do filme. Fato é, que a eliminação das cenas de venda de especialidades humanas (e, sublinhe-se, não a eliminação da especialização dirigida: para isso basta lembrar o caso de Eugene Jerome, o nadador e do pianista de doze dedos) esvazia a apresentação da questão como um efeito imanente ao sistema liberal-capitalista.

A concepção por meio da manipulação genética, tornada uma mercadoria como outra qualquer, mostrada em Ga tta ca mostra como naquela sociedade a alegação terapêutica, argumento ponta-de-lança dos defensores das tecnologias de manipulação genética, rapidamente deu lugar a uma situação na qual o impedimento da ocorrência de enfermidades conhecidas não obedecia à qualquer demanda moral de um direito básico à saúde, mas sim à capacidade financeira dos futuros pais para

No documento O Desencantamento das Ciências (páginas 190-199)