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3.1 1 Escravidão e Sujeição na Antiguidade

No documento O Desencantamento das Ciências (páginas 156-160)

Nem sempre, desde a antiguidade, explicavam-se as relações hierárquicas que davam origem aos processos de subordinação de um ser humano a outro ser humano majoritariamente a partir da própria relação dos desigua is. A escravidão era um fato da vida na antiguidade e nem mesmo os escravos concebiam a continuidade da vida comunitária sem a sua própria existência. Mas, aceitar a escravidão como fato da vida não queria dizer que as relações de sujeição existissem num ambiente que não era tenso. Se eram possíveis, não o foram todo o tempo como uma conseqüência lógica, e portanto consensual, de qualquer inferioridade natural, de uma condição escrava herdada e reproduzida biologicamente e da qual o escravo não se poderia livrar ou contornar porque era por ela constituído175.

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Segundo Finley, os procedimentos que levavam à manumissão, se não podem ser considerados relativamente comuns, sempre aconteceram.

Quando Aristóteles, na Política, propôs a si mesmo analisar se um escravo seria escravo em qualquer lugar em que se encontrasse, viu-se num beco sem saída porque ao mesmo tempo em que sustentava, conforme opiniões correntes, que se havia alguma relação de inferioridade-superioridade esta era o resultado da própria incapacidade do escravo em assumir o lugar de senhor e dono, percebia que nem todos os escravos tinham essa condição em todos os lugares. E boa parte do problema da escravidão pode ser articulado a partir desta contradição e de algumas perguntas: de que resultava a condição escrava do homem privado de sua liberdade? De sua inferioridade natural? Como efeito de alguma incapacidade momentânea ou transitória que o impedia ter a mesma margem de controle do próprio destino que tinham todos os outros homens?

É ainda Aristóteles que escreve, a esse respeito:

Ta mpouco existe a m iza de em rela çã o a um ca va lo ou a um boi, ou a um escra vo enqua nto escra vo, pois a s dua s pa rtes na da têm em comum; o escra vo é um a ferra menta viva, e a ferra menta é um escra vo sem vida . Nã o pode porta nto ha ver a miza de em rela çã o a um escra vo enqua nto escra vo, embora possa ha ver a miza de em rela çã o a um escra vo com o cria tura huma na ; d e fa to, pa rece ha ver luga r pa ra a lguma justiça na s rela ções entre uma pessoa livre e qua lquer outro ser huma no, desde que esse último possa pa rticipa r do sistema lega l e ser pa rte em um contra to; logo pode haver ta mbém a miza de em rela çã o a um escra vo em sua qua lida de de ser huma no (Aristóteles; 1985:167)

Portanto, para Aristóteles, ainda que o escravo pudesse ser considerado como coisa ou ferramenta, isso não anulava sua humanidade e nem mesmo introduzia nela algumagra d a çã o. Como vimos acima, quando ele arriscou tentar determinar se haveria alguma distinção natural entre os escravos e os homens livres não o fez sem hesitação. Quando depreciava os povos bárbaros, por exemplo, o fazia em função de seus modos de viver, da organização de suas relações sociais e principalmente de suas relações políticas. As tentativas de definição metafísica da inferioridade dos escravos encontraram barreiras lógicas incontornáveis pelo “método analítico” e impuseram, cada vez mais e não apenas da parte de Aristóteles, a definição das relações de escravidão em termos jurídico-políticos.

Necessariamente, essa contradição abriria espaço para o questionamento do próprio instituto da escravidão. Não ainda, claro, no sentido de sua total supressão, mas permitindo a flexibilização das situações que conduziam um homem à condição escrava. Percebe-se, por exemplo, entre os séculos VI e V a.C., uma fraca e pouco difusa tendência em recusar a escravidão de membros da mesma comunidade (em geral, a escravidão nessas condições era a escravidão por dívida). Por esse viés, novamente reconhecia-se que a condição escrava não resultava de inferioridade natural. Nas

reformas políticas empreendidas por Sólon, entre outras coisas, foi abolida a escravidão por dívida além de se promover o repatriamento de todos os atenienses que em virtude dela haviam sido vendidos para fora de Atenas. É também a isso que Platão ecoa na rara menção que faz à escravidão n’A República , condenando a sujeição de gregos pelos próprios gregos e externalizando a inferioridade para além das fronteiras das cidades-Estado176. A escravidão lentamente passou a ser determinada por

dois fatores principais: ou o resultado da captura de prisioneiros em guerras ou ainda, e excluídas as reformas mencionadas acima, a escravidão por dívidas. Como evidência e complemento desse processo social de definição da inferioridade, ao escravo poderia caber de alguma maneira o direito ( por mais restrito e difícil que fosse) de superar sua condição o que, desse modo, a fazia também transitória.

Mas, na antiguidade, mesmo isso não foi suficiente para neutralizar o problema. Como escreve Finley (inicialmente citando W. W. B uckland):

Na lei ro ma na177

, a escra vid ã o é o único ca so no qua l, na s fontes a ind a existentes é decla ra do existir um co nflito entre o Ius Gentium e o Ius Naturale. Em certo sentido era um conflito aca dêmico, visto que a escra vidã o prosseguiu; ma s nenhuma socieda de pode ca rrega r um conflito desses dentro de si, em torno de um conjunto tã o importa nte de crença s e instituições, sem que a s tensões venha m a eclod ir d e a lguma forma , independ entem ente de quã o dista ntes, no tempo e no espa ço, a s linha s e conexõ es po ssam esta r do estímulo o rigina l (FINLEY; 1999: 120).

Ainda assim, foi na Antiguidade que se deu a mudança fundamental que viria sustentar muito mais tarde a inadmissibilidade da escravidão: o esgotamento da explicação naturalista e sua sucessão pelo estatuto jurídico-político da condição escrava. A persistência da escravidão mostrou que ela podia ser uma das responsáveis pela fragilização e fragmentação de uma sociedade, dada a contradição sobre a qual ela se fundava. Isso, no entanto, não impediria a estruturação de novas sociedades, senão em função dela tendo-a como elemento constitutivo. O mundo medieval conservo u e acentuou o caráter jurídico-político das relações entre desiguais, de modo que aquelas entre vassalos e senhores, bem

176 Parte do diálogo é a seguinte, sendo de Sócrates a primeira pergunta: “ – … Parece justo que as cidades

gregas escravizem Gregos, ou que impeçam as outras desta prática tanto quanto possível, e se habituem a poupar a raça grega, com receio de cair na escravidão dos bárbaros? – Importa absolutamente poupá-la. – Não devem, por conseguinte, possuir nenhum escravo grego, e aconselhar o mesmo aos demais Helenos? – Absolutamente. Assim poderão voltar-se mais para os bárbaros, e abster-se dos seus (PLATÃO; 2001: 305).

177 Não é despropositada, aqui, a menção a Roma. Segundo Perry Anderson (1992: 55-60), foi o emprego

maciço de mão-de-obra escrava em complexos de produção agrícola (em uma escala até então nunca vista) um dos fatores que ajudam a explicar a enorme pujança econômica do Império Romano, principalmente se comparada com a discreta ocupação “costeira” de terras pelos povos da Grécia. A maioria absoluta desses escravos originava-se da “espetacular série de campanhas que deu a Roma o poder sobre o mundo mediterrâneo: as Guerras Púnicas, Macedônica… que despejavam cativos militares na Itália para proveito da classe dominante romana” (ANDERSON; 1992: 58).

como entre súditos e imperadores eram intensamente reguladas por costumes ou por estatutos legais escritos (SOBOUL; 1974: 7-40). A separação entre nobres e plebeus certamente significava uma relação inferior/superior, mas ela dificilmente degenerava numa relação senhor e escravo que permitisse ao primeiro dispor como quisesse da vida do segundo; especialmente, era inimaginável vendê-lo.

Na modernidade européia, o colonialismo mercantilista dos séculos XV e XVI veio renovar as tensões relativas à escravidão. Isso porque ao encontro com os habitantes das terras de além-mar, seguiu-se a tentação de torná-los, como também aos negros africanos, escravos. Um processo de justificação moral que legitimasse a escravidão em massa logo novamente conduziu o problema às considerações de ordem metafísica. Se Aristóteles tentou, ao descrever o que seria o escravo por natureza (em oposição ao escravo por convenção) atribuir esse fato a uma relação deficiente entre o corpo e a alma, na qual esta perdia a primazia sobre aquele, os euro peus entenderam por bem contornar o problema, concebendo negros e índios como criaturas privadas da alma e por isso naturalmente escravizáveis. Assimilar negros e índios como parte das paisagens naturais e desapossá- los de suas almas era uma maneira de torná-los tão domináveis quanto a natureza que, afinal de contas, havia sido posta por Deus à disposição do homem.

Porém, a consideração metafísica do problema do escravo acontece quando a sustentação do poder soberano por razões divinas esgotou sua força persuasiva. O esvaziamento daquele argumento metafísico abriu espaço para a afirmação arbitrária e concentradora do poder, o que se convencionou chamar de absolutismo. Renunciar à interferência das crenças religiosas na vida política era trazer para o terreno exclusivamente jurídico-político a regulação das relações sociais assimétricas. E enunciar o poder secular e absoluto do soberano implicava em concordar com a asserção da igualdade entre todos os seres humanos, a desigualdade sendo resultado do emprego simultâneo da força e da astúcia política. Assim, a operação essencialmente metafísica de conceber a simbolização do escravo como ser privado de alma acontece quando começava a não ser mais possível utilizar o mesmo argumento para fundamentar o poder do soberano. Por isso, o deslocamento da influência estruturante da Igreja como que renovou contradição entre o Ius Gentium e o Ius Na tura le, que retornava, talvez até com mais força, além de conservar o mesmo potencial fragmentador.

Agora, a noção de inferioridade natural era novamente um problema e manifestava-se em duas direções distintas. A primeira, a da escravização, era cada vez mais insustentável. Talvez, menos por altruísmo ou humanismo do que pelas razões amorais impostas pela necessidade da circulação das mercadorias. Nas colônias onde subsistiu a exploração da mão-de-obra escrava, foi por pouco tempo possível e, sobretudo necessário, defendê-la como parte dos desígnios divinos. Seu declínio coincide

com a tendência para a urbanização da Europa em razão de sua industrialização, o que assinala também a segunda direção do problema da inferioridade, aquela que, para manter-se coerente com a corrosão do poder real divinamente sustentado precisou, por sua vez, reconhecer a igualdade entre todos os homens: se o soberano não tinha essa condição por dádiva de Deus, então ele a tinha pelo exercício da força contra os outros homens. O poder absoluto abre espaço para o rompimento de toda a ordem das relações jurídico-políticas do mundo medieval. Mas não extingue ou suprime a possibilidade de se falar em inferioridade natural, tema que se deslocará das esferas metafísica e jurídica para se acomodar junto ao campo do pensamento científico e “racional”.

No documento O Desencantamento das Ciências (páginas 156-160)