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ma das maneiras de o escravo modifi car seu status era por meio da carta de alforria, mas a liberdade também poderia ser adquirida no batismo ou por meio de cláusula tes- tamentária, ou, ainda, por meio de uma ação civil de liberdade. Com base nas cartas de alforria, procura-se, neste capítulo, analisar como os escravos utilizaram-se dessa possibilidade de aquisição da liberdade. Para tanto, foram identifi cados os tipos de alforria a que recorriam e, em alguns casos, as situações que envolviam a obtenção da carta de liberdade no termo de Arez, no último quartel do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX. Analisaram-se, para o período, os livros de notas do termo da vila de Arez referentes aos seguintes anos: 1774- 1782; 1785-1796; 1819-1821; 1826-182759.

As cartas de alforria eram registradas no cartório, no Livro de Notas, o que poderia ser realizado pelo próprio liberto ou por um procurador, a mando do senhor. Alguns desses docu- mentos eram individuais, outros incluíam grupos de escravos a serem libertos. A carta era um instrumento legal, por meio do qual o cativo adquiria uma mudança no seu status jurídico, deixando de ser escravo para se tornar livre. Entretanto, nem sempre a liberdade plena ocorria de imediato, quando da 59 IHGRN. Cx. Notas. Livros de Notas de Arez.

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concessão da carta, pois, muitas vezes, a alforria efetivava-se somente após o cumprimento de certas condições impostas pelos senhores, como, por exemplo, a prestação de serviços enquanto o senhor vivesse.

O documento é descrito juridicamente por Kátia Mattoso como um dispositivo legal que pode ser concedido “sole- nemente, ou não, direta ou indiretamente, expressamente, tacitamente, com ou sem documento escrito” (MATTOSO, 1990, p. 177). Cabe salientar que o registro da carta em cartó- rio constituía uma garantia, caso houvesse alguma contestação a respeito da liberdade do ex-escravo. Com o documento, o escravo tornava-se liberto, adquirindo, portanto, personali- dade jurídica. Porém, em uma sociedade em que o negro era quase automaticamente considerado escravo, fazia-se necessá- rio que portasse sua carta de liberdade como meio de compro- var seu status jurídico, caso fosse questionado. Sendo o papel um suporte tão frágil para um bem tão precioso, que certa- mente precisaria ser comprovado diversas vezes ao longo da vida, a melhor maneira de proteger esse bem “para sua melhor segurança60” era registrar o documento no livro de notas do

tabelião. Dessa maneira, o extravio ou perda do documento, cuja ausência poderia criar complicações para o liberto, não impediria que o status adquirido fosse comprovado.

Certamente, nem todos os libertos registravam as cartas adquiridas e é bem possível que, em localidades menores, pequenas vilas como a de Arez, os libertos sentissem uma

60 Justificativa comum presente nos registros das cartas de alforria analisadas neste trabalho.

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menor necessidade desse registro, pois, de maneira geral, todos se conheciam61. Mesmo os escravos domésticos que trabalha-

vam no interior das casas costumavam sair à rua, cumprindo ordens dos seus senhores, e tinham contato com outras pes- soas livres e escravas. O conhecimento dos demais poderia trazer certa segurança que contribuiria para que determinados libertos não registrassem suas cartas de liberdade. Para os que viviam nas áreas rurais do termo da vila, talvez o registro fosse mais necessário para garantir a mobilidade dos libertos pelas povoações próximas, onde fossem pouco conhecidos.

Desse modo, o número de cartas registradas em um cartório não refl ete o número de alforrias concedidas, visto que não havia a obrigatoriedade de se realizarem esses registros. Além disso, era preciso arcar com os custos cartoriais, o que poderia ser pouco viável para alguns recém-libertos, caso o senhor não se responsabilizasse por tais despesas. Nas cartas analisadas, não há a nomeação de quem pagou pelo registro.

Mas, para melhor conhecer as cartas de liberdade, faz-se necessário explicar que essas contêm informações como o nome do escravo, cor, fi liação, idade e motivo da concessão, além de alguns dados sobre o senhor. Eram, portanto, docu- mentos notariais ricos em informações sobre as manumissões.

As cartas de alforria podiam ser pagas, condicionais ou gra- tuitas, ou seja, adquiridas mediante alguma contrapartida que implicasse ônus para o escravo, ou adquirida sem nenhum

61 Em estudos a partir de alforrias contidas em testamentos, Roberto Guedes (2008, p. 188) supõe que o número de alforrias registradas em cartório menor que as deixadas em testamentos deve-se ao reconhecimento social da alforria.

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ônus, o que era, nesse segundo caso, mais difícil de ocorrer. O que a historiografi a sobre alforria tem demonstrado é que, na maioria das vezes, a carta de liberdade implicava ônus, fosse o pagamento em moeda, o pagamento em parcela, a substituição por outro bem, ou mesmo o cumprimento de determinadas atividades por um tempo estipulado ou inde- terminado62. Nesta última situação, trata-se das chamadas

alforrias condicionais63.

Alguns historiadores utilizam uma divisão das alforrias em incondicionais pagas, incondicionais gratuitas, condicionais (incluindo uma infi nidade de subdivisões de acordo com as condições) 64. Considera-se, aqui, apoiando-se em alguns auto-

res (MATTOSO, 1990; EISENBERG, 1989; SCHWARTZ, 2001), a carta condicional como uma modalidade de carta onerosa, embora na terminologia de classifi cação utilizar- se-á apenas o termo condicional. No entanto, o Dicionário de

escravidão negra no Brasil, de Clóvis Moura, defi ne alforria

condicionada da seguinte maneira:

Era uma das formas de alforria gratuita, dada pelo senhor, mas sob a condição de que o escravo prestasse

62 Principalmente os estudos de Mattoso (1990), Eisenberg (1989), Schwartz (2001), Paiva (2006) e Gonçalves (2011).

63 Neste trabalho, Liberdades possíveis em espaços periféricos: escravidão e

alforria no termo da vila de Arez, utiliza-se a divisão paga, condicional e gratuita,

por considerar que essa divisão mais apropriada às fontes, as quais oferecem pouca variedade de contrapartida do escravo em troca da carta de alforria. 64 Como exemplo, Karasch (2000), tratando das alforrias no Rio de Janeiro entre 1808-1850, as subdivide em condicional, incondicional, comprada, ratificada, além das alforrias no leito de morte, para as alforrias deixadas em testamento.

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durante determinado prazo serviços a serem cumpridos, ou servisse a determinada pessoa que podia ser o pró- prio senhor, sua viúva ou algum herdeiro, por vezes até a morte deste (MOURA, 2002, p. 24).

As condições impostas aos escravos, conforme se observará mais adiante, implicavam um investimento no qual a alfor- ria era paga com o próprio trabalho, não podendo, pois, ser considerada gratuita como defi ne o dicionário supracitado.

Mesmo as ditas alforrias gratuitas demandavam um inves- timento de longos anos de trabalho do escravo liberto ou de sua mãe, em se tratando de criança. Era necessário investir, também, em um bom relacionamento com o senhor para conseguir a liberdade, ou contar com a ajuda de terceiros para intervir junto ao senhor. Desse modo, nota-se que havia todo um investimento individual que fazia do escravo um agente ativo na obtenção de sua liberdade, que não dependia apenas da vontade do senhor (PAIVA, 2006, p. 168).

As cartas de alforria permitem traçar um perfi l dos alforria- dos, tarefa já realizada por estudiosos do tema aqui citados, os quais procuram identifi ca, principalmente, o sexo, a idade, a cor ou a etnia dos alforriados. Peter Eisenberg (1989) discorda da elaboração de um padrão único para o Brasil, sugerido por Gorender (2005), e considera importante observar as transformações históricas nas alforrias, tendo em vista que análises das alforrias em regiões distintas permitem identifi car semelhanças e diferenças sobre as condições em que foram concedidas, uma vez que “as características do alforriado

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‘padrão’ variavam conforme determinações históricas especí- fi cas no tempo e no espaço” (EISENBERG, 1989, p. 257), confi rmando a validade desse estudo sobre alforrias em Arez, região periférica, caracterizada pela agricultura de gêneros alimentícios.