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Mesmo considerando-se que a alforria era uma conquista do escravo e que dependia em parte do seu empenho pessoal, não se pode desconsiderar que a alforria dependia da anuên- cia do senhor. Era, como realça Manuela Carneiro (2012), portanto, uma questão de direito privado, no qual o Estado 117 IHGRN. Cx. Notas. Livro de Notas de Arez 1819-1821. Carta de alforria de Jozefa do gentio de Angola.

118 INVENTÁRIO de João Pegado da Siqueira. GALVÃO, Helio. Velhas heranças.

Revista Bando, Natal, v. 4, n. 6, ano 5, p. 77-121, jul-ago, 1954.O escravo Pedro,

angola, 20 anos foi avaliado em 100 mil-réis e João, angola, 18 anos, em 70 mil-réis.

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apenas interferia em casos muito específi cos119, logo cabia

aos senhores a decisão de alforriar ou não, embora a prática de alforriar mediante indenização de preço já fosse costume (CUNHA, 1983; CHALHOUB, 1990).

Mary Karasch (2000), tratando do Rio de Janeiro na pri- meira metade do século XIX, destaca a importância da parti- cipação feminina, não apenas entre as libertas, mas também entre as senhoras:

Para os donos de escravos como grupo, os documentos sugerem as conclusões seguintes. Primeiro o ambiente urbano facilitava a alforria, os escravos tinham maior probabilidade de obter a liberdade na cidade do que nas zonas rurais. Em segundo lugar, as mulheres, em especial as mais velhas, que fi cavam viúvas ou solteiras, desempenhavam um papel importante no processo de alforria, e, como veremos, tendiam a alforriar mulheres e crianças (KARASCH, 2000, p. 451).

Estudos sobre alforrias testamentárias têm identifi cado que senhores de pequenas e médias escravarias são mais propen- sos a alforriar do que os grandes proprietários de escravos120.

Como esse trabalho não dispõe de testamentos e os inven- tários permitem pouco cruzamento de informações sobre os senhores que alforriaram por meio das cartas, não se tem uma 119 Nos casos de crime contra o Estado, escravos delatores receberiam alforria, nas lutas de independência e em outros conflitos (CUNHA, 2012).

120 O artigo de Jonis Freire, “Alforrias e tamanho das posses: possibilidades de liberdade em pequenas, médias e grandes propriedades do sudeste escravista (século XIX)", de 2011, faz um balanço desses estudos. Cf., também, GUEDES (2008) e DAMASIO (1995).

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defi nição do tamanho das escravarias desses senhores. Tem-se, com base nos inventário, a noção de que a predominância era de pequenas posses de escravos no termo da vila.

As mulheres foram mais propensas a alforriar do que os homens no termo da vila de Arez. Assim, 19 mulheres alforria- ram 38 pessoas, enquanto os proprietários homens alforriaram 21, e três pessoas foram alforriadas por casais.

Quadro 14 – Divisão por sexo dos senhores que alforriaram PROPRIETÁ- RIOS HOMENS (14) PROPRIETÁ- RIAS MULHE- RES (19) CASAL (3) TOTAL Alforrias Condicionais 7 14 0 21 Alforrias Pagas 11 19 2 32 Alforrias Gratuitas 3 5 1 9 Total por proprietários 21 38 3 62

Fonte: IHGRN. Cx. Notas. Livros de Notas de Arez (1774-1782/1785-1796/1819- 1821/1826-1827). Alguns proprietários alforriaram nas três modalidades: con- dicional, paga e gratuita.

As informações sobre os senhores nas cartas de alforria são restritas, o que torna difícil traçar um perfi l desses proprietários que alforriavam escravos. Quanto aos homens que alforria- ram, também há poucas referências. Três são identifi cados como capitães, um como capitão-mor, um sargento-mor e

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um vigário. Os demais (8) não são identifi cados pela função, tampouco pelo estado civil.

Entre as mulheres, havia cinco viúvas e uma freira. Essas alforriaram 21 escravos (33,87%). A viuvez da mulher, pelo que se pode inferir pelas cartas de liberdade, era uma probabi- lidade a mais para os escravos conseguirem alforria, sobretudo na ausência de herdeiros, porém parece que as viúvas tratavam de alforriar e garantir a permanência dos escravos enquanto fossem vivas. A necessidade de contar exclusivamente com os escravos para a subsistência, em caso de ausência de familiares, poderia facilitar para o escravo a negociação da liberdade, mesmo que essa somente ocorresse com a morte da senhora.

A assistência dada às viúvas é ressaltada por Maria Beatriz Nizza da Silva (1995), que expõe o papel desempenhado por parentes e agregados nessa função:

As chamadas “fi lhas de criação” também aparecem, tal como as afi lhadas, como companhia e arrimo de viúvas. E podemos dizer, tendo como base os dados das listas de população, assim como a documentação notarial, que muito raramente as famílias do fi m do período colonial deixavam as velhas sozinhas em suas casas, sobretudo em meio rural onde a sobrevivência se tornava mais difí- cil quando não havia escravos para a agricultura (SILVA, 1995, p. 95).

As viúvas proprietárias de escravas teriam, então, como garan- tir sua sobrevivência por meio do trabalho dos cativos, fossem como domésticos, na agricultura ou em outras tarefas que for- necesse alguma renda para as senhoras, como parece ter sido a

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alternativa de Dona Catharina Barbosa, que alforriou escravos condicionalmente, incluindo uma afi lhada com a obrigação de acompanhá-la e servi-la enquanto estivesse viva, e deixou “cortada” em testamento a alforria de dois escravos que paga- ram pela liberdade ao testamenteiro da senhora, cumprindo o acordo e recebendo a carta de alforria. Tal senhora não teve fi lhos, mas tinha irmãos e sobrinhos, contudo não se sabe se ela pôde contar com os parentes na velhice. O que fi ca claro é que ela garantiu a permanência dos seus fi éis escravos ao seu serviço, mas nem todos foram alforriados, pois em seu inventário ainda restava 240 mil-réis em valor relativo ao título de escravos121.

Josefa Tereza de Jesus, também viúva sem fi lhos, alforriou Mariana122 em cumprimento ao testamento do seu esposo,

que deixou a escrava “cortada em testamento” no valor de 50 mil-réis, fi cando ainda com mais quatro escravos. Outras viúvas concederam mais alforrias pagas que condicionais ou gratuitas, de modo que não se pode vincular a condição de viúva às alforrias condicionais com base nos dados que se têm, mas, ao menos em algumas situações, pode-se inferir que tenha sido uma estratégia usada pelas senhoras para usufruir dos serviços dos escravos, postergando a liberdade de fato e, por outro lado, pode-se inferir que a condição de viúva ou velhice da senhora servia para que os escravos investissem na aquisição da liberdade ao encontrar, em algumas mulheres já no fi m da vida maior probabilidade de concessão de alforria. 121 INVENTÁRIO de Catharina Barbosa. GALVÃO, Helio. Velhas heranças. Revista

Bando, Natal, v. 4, n. 6, ano 5, p. 77-121, jul-ago, 1954. (transcrição incompleta)

122 IHGRN. Cx. Notas. Livro de Notas de Arez 1785-1796. Carta de alforria de Mariana Tereza de Jesus.

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Tendo em vista que 38 alforrias (61%) foram concedidas por mulheres, é provável que tais senhoras fossem mais sus- cetíveis às negociações, pois, como se viu, essas alforrias não eram gratuitas em sua maioria, dependiam de um investi- mento, fosse pelo pagamento em moeda ou pelos anos de serviço impostos como condição.