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Mesmo que as alforrias implicassem na manutenção de uma relação de dependência ou de subordinação ao ex-senhor, a carta de liberdade possibilita uma mobilidade espacial que, em muitos casos, era negada aos escravos, pois viver “sobre si” era uma condição que não atingia grande parcela de escravos. Almejava-se então, entre outras expectativas, a mobilidade no espaço.

No caso das alforrias condicionais, parece mais provável que somente após o cumprimento das obrigações, poder-se-ia dispor da plena liberdade de mobilidade espacial. A ideia de mobilidade espacial como sinônimo de liberdade é abordada por Hebe Mattos (1980), que revela as difi culdades de os for- ros exercerem essa mobilidade sem a contestação da liberdade, 92 INVENTÁRIO de Catharina Barbosa. GALVÃO, Helio. Velhas heranças.

Revista Bando, Natal, v. 4, nº 6, ano 5, p. 77-121, jul-ago, 1954. O inventário

não foi transcrito em sua totalidade, pois o documento não se encontrava legível e do testamento só foram transcritos os dados de identificação e o valor em título de escravos, mas sem mencionar quantos nem quais escravos.

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uma vez que havia a possibilidade de reescravização. Desse modo, a aquisição da alforria nem sempre implicava a liber- dade plena, pois viver sob a possibilidade de reescravização revela uma fragilidade da liberdade alcançada com a carta de alforria.

Nos textos das cartas de alforria do termo da vila de Arez, também é possível perceber algum signifi cado da liberdade. A escrava Genebra comprou sua carta de alforria, em cujo docu- mento registrava-se que ela “poderá usar de sua liberdade para ir onde quizer [sic] 93.” Com base nisso, pode-se inferir a ideia

de liberdade relacionada à mobilidade espacial. Depois de anos, Genebra não precisaria mais prestar contas a um senhor para onde fosse, nem tampouco esperar pela sua permissão, ou ainda, poderia mudar-se para outra vila.

No entanto, em algumas cartas condicionais, a liberdade de ir onde quiser vem depois do cumprimento da obrigação. Desse modo, a mulata Antônia “pode ir por onde quizer ella e seus quatro fi lhos [...] por ter cumprido com as certidões expressadas [sic]94”. Esse trecho da sua carta de liberdade

sugere que a liberdade de deslocamento vem depois do cum- primento da cláusula condicional.

O mulatinho Silvestre Pereira, escravo de Maria de Souza, recebeu, em 1789, alforria condicionada a acompanhar a senhora enquanto ela fosse viva. O texto da carta registra 93 IHGRN. Cx. Notas. Livro de Notas de Arez. 1774-1782. Carta de alforria da mulata Genebra.

94 IHGRN. Cx. Notas. Livro de Notas de Arez. 1785-1796. Carta de alforria da mulata Antônia e seus quatro filhos.

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que “depois da minha morte [do senhor] poderá ir para onde quizer lograr sua liberdade [sic] 95”. A pequena Clara, já men-

cionada em outro momento, que recebeu alforria condicional posteriormente revogada, foi expressamente autorizada a ir onde quisesse somente na declaração que revogou as con- dições96. Na interpretação desses senhores, pelo que se pode

inferir, os escravos não possuíam uma liberdade plena antes do cumprimento das obrigações. Porém, o texto “para ir onde quiser” aparece quase como um padrão formal do documento, o que relaciona o sentido de liberdade à autonomia de deslo- camento espacial do indivíduo.

A liberdade de ir para onde quisesse possibilitaria ao liberto mudar-se para outra localidade, mas algumas cartas condicio- nais enfatizam que a possibilidade de deslocamento fi cava nula enquanto a condição não fosse cumprida. Todavia, já foi visto aqui que não há um padrão nas manumissões condicionais, considerando-se que alguns escravos já eram logo reconhe- cidos pelos senhores como libertos, enquanto outros apenas quando cumprissem as cláusulas condicionais.

Essa autonomia para deslocar-se a outras localidades e viver longe do julgo do ex-senhor foi conquistada pelo escravo Mateus, que deixou a capitania de Pernambuco para viver no Rio Grande do Norte, no entanto, não se pode dizer que os demais alforriados registrados no termo da vila de Arez 95 IHGRN. Cx. Notas. Livro de Notas de Arez. 1785-1796. Carta de alforria que dá Maria de Souza ao mulatinho Silvestre Pereira.

96 IHGRN. Cx. Notas. Livro de Notas de Arez. 1785-1796. Carta de alforria que dá o Sargento Mor Luis da Rocha de Carvalho ao mulatinho Joaquim e José e à mulatinha Clara.

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também conquistaram essa liberdade, ou se permaneceram de alguma forma ligados aos seus ex-senhores pelos laços morais de dependência. A ausência de outros documentos não per- mite investigar a trajetória desses libertos e as relações com seus antigos senhores.

No caso da mulata Maria José, liberta para que pudesse casar, mas com a condição de continuar servindo à senhora, percebe-se que a alforria não lhe daria a liberdade de deslo- camento, mas de constituir uma família, visto que a alfor- ria estava atrelada ao casamento, e garantia a liberdade de sua prole, o que já era algo importante. Assim, se a alforria não garantia necessariamente a conquista da liberdade plena, pequenas conquistas poderiam ser alcançadas em um mundo de frágil liberdade.

Desse modo, neste capítulo foi possível perceber que, mesmo em um espaço no qual se esperam poucas oportu- nidades para os escravos adquirirem um pecúlio, obteve-se, no conjunto da documentação levantada, uma maioria de alforrias onerosas, do que se pode considerar que os escra- vos encontravam possibilidades de constituírem pecúlio e comprar sua alforria. Embora não se tenha como mensurar o impacto dessas alforrias na totalidade de escravos, pode-se conjecturar que a maioria de alforrias onerosas (pagas) não era exclusividade dos grandes centros urbanos.

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