• Nenhum resultado encontrado

Realizar uma pesquisa sobre escravidão – e, mais especifi ca- mente, sobre alforria em uma região a respeito da qual se cos- tuma afi rmar a pouca relevância do escravo de origem africana em terra de índios – não é tarefa fácil, sobretudo quando se dispõe de uma documentação fragmentada, além da escassez de estudos sobre outras áreas periféricas.

Apesar da carência de fontes como testamentos, registros de batismo, processos criminais, entre outras que possibili- taram a outros pesquisadores no campo da escravidão e da alforria avançar nas pesquisas, muitas vezes acompanhando a trajetória dos libertos e sua inserção social no mundo dos livres, este trabalho procurou, com base nas fontes existentes, elucidar aspectos da escravidão e das alforrias em uma deli- mitação espacial colonial: o termo da vila de Arez, no litoral da Capitania do Rio Grande do Norte.

Criada como vila em função das transformações de aldea- mentos missionários indígenas em espaços de administração civil, a vila de Arez, sede do termo, teve, ao longo do período estudado (século XVIII e primeiras décadas do século XIX), uma população menor que a povoação de Goianinha, loca- lizada no mesmo termo. Nos sítios e nas fazendas ao redor praticava-se a agricultura, com destaque para a mandioca, criava-se gado e havia poucos engenhos de açúcar. Embora a

Liberdades Possíveis Em Espaços Periféricos.indd 197

Aldinízia de Medeiros Souza

198

elevação de Arez à categoria de vila tenha criado instituições jurídicas e administrativas que faziam parte das localidades urbanas no período colonial, como a câmara municipal e o tabelionato, e tenham sido criadas leis para regulamentar o espaço urbano, inclusive proibindo a criação de animais soltos nas ruas, a regulamentação do espaço e da administração não foram sufi cientes para o desenvolvimento urbano local. Isso porque, além de ser uma sede administrativa e religiosa (no âmbito da freguesia), o desenvolvimento urbano dependia, também, de outros aspectos, como uma maior concentra- ção de população, comércio e outras atividades tipicamente urbanas.

As atividades com características urbanas foram identifi ca- das em número reduzido, havendo pouca referência a esta- belecimentos comerciais, como vendas, tabernas, lojas, assim como poucas referências aos ofícios mecânicos. O emprego de escravos em atividades associadas à escravidão urbana, como as atividades de ganho, e atividades como sapateiros, carpinteiros, ferreiros e outros ofícios, foi, portanto, pouco identifi cado, e mesmo assim, alguns desses estavam inseridos em atividades dos engenhos. Desse modo, as fontes aponta- ram para uma maior possibilidade de ocupação dos escravos em atividades rurais e domésticas, embora não se tenha como mensurar esses dados, pois os inventários post mortem rara- mente se referem às funções dos escravos, informação também ausente nas cartas de alforria.

A análise dos inventários referentes ao período de 1705 até 1820 permitiu constatar que, na região do termo da vila de Arez, mesmo no período anterior ao ano da criação da vila,

Liberdades Possíveis Em Espaços Periféricos.indd 198

199

1760, a presença de escravos de origem africana foi bastante difundida, embora se tratasse principalmente de uma área de pequenas escravarias. Também, com base nos inventários, observou-se a signifi cativa presença da produção de alimentos, sobretudo da mandioca e de seu benefi ciamento como uma prática presente entre pequenos e grandes proprietários, pois a mandioca era, como se sabe, um alimento bastante comum no período colonial. Além disso, observou-se que Arez pro- duzia a farinha, também, para abastecimento de outras áreas da capitania e para além de seus limites.

As atividades na agricultura, além do trabalho na criação de gado e o trabalho doméstico, apresentaram-se como as principais atividades que empregavam mão de obra escrava, pelo que se pode deduzir com base na documentação, tendo em vista que, em poucos casos, a função dos escravos foi expli- citada. Nesses casos identifi cados, houve referência a escravos artesãos, carpinteiros, sapateiros e caldeireiros. Embora as escravas tenham sido identifi cadas, principalmente, como acompanhantes de suas senhoras e de seus senhores, o que permite inferir o trabalho doméstico, não se descarta a pos- sibilidade da presença de mulheres também em atividades de ganho, mesmo que esse tipo de atividade não tenha sido tão corrente quanto em localidades com aspectos mais urbanos.

Pelo que se pode notar, as poucas referências ao comércio, assim como às atividades artesanais, foram mais evidentes na povoação de Goianinha do que na vila de Arez, sede do termo, o que sugere que haveria mais possibilidades de escra- vos trabalharem ao ganho, em atividades de comércio ou como artesãos naquela povoação do que na vila. Assim, a

Liberdades Possíveis Em Espaços Periféricos.indd 199

Aldinízia de Medeiros Souza

200

concentração de atividades político-administrativas não fazia de Arez o centro do termo, pois, para os serviços mecânicos, a população precisaria recorrer à povoação de Goianinha ou a outras vilas. Por outro lado, a necessidade de serviços jurí- dicos e de ordem administrativa obrigava a população da povoação de Goianinha e demais localidades a recorrerem à sede do termo, se não quisesse esperar as esparsas visitas da administração ou do tabelionato. Desse modo, estabelecia-se uma interação entre as localidades do termo da vila de Arez.

Apesar de o povoado e a sede da vila apresentarem carac- terísticas mais rurais do que urbanas, as alforrias adquiridas foram, em sua maioria, pagas, o que evidencia a constituição de um pecúlio pelos escravos. Assim, embora a historiogra- fi a sobre escravidão tenha enfatizado o espaço urbano como elemento favorável à aquisição da liberdade, em razão das maiores possibilidades de constituição de pecúlio resultantes das atividades ao ganho, a pesquisa corrobora a conjectura de Schwartz (2001), segundo a qual a frequência de manumis- sões pagas não discrepava entre as áreas urbanas e as rurais. Ao menos as porcentagens de alforrias pagas no termo da vila de Arez aproximaram-se das manumissões pagas nas áreas urbanas dos estudos sobre alforria no Brasil.

Quanto aos escravos que conseguiram a manumissão, a maioria deles era de mulatos, desse modo, associando a rela- ção centro-periferia em que o centro do poder é representado pelos senhores brancos, quanto mais a cor do escravo se apro- ximasse da cor branca, maiores as oportunidades na sociedade colonial (RUSSELL-WOOD, 1998), o que nesse caso incluía os mulatos e pardos. Assim, a referência ao mesmo indivíduo

Liberdades Possíveis Em Espaços Periféricos.indd 200