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ALGUMAS QUESTÕES ATUAIS

4.2. A CASA DO SAMBA

De acordo com a perspectiva adotada pelo presente trabalho, as re-significações e os novos papéis assumidos pelo samba da cidade são concebidos enquanto transformações e não deturpações. Considera-se, desse modo, o samba enquanto qualquer outra dimensão da cultura, estando passível de transformações, suscetível mesmo aos efeitos das desigualdades do acesso aos bens simbólicos e econômicos95. É em relação a esta premissa que pode-se pensar o samba inserido em alguns processos mais amplos, os quais ocorrem contemporaneamente em diversos âmbitos da cultura.

No tocante ao samba em Pirapora é notável o aumento do interesse da prefeitura em relação à manifestação cultural pelo menos desde o início da década de 1990, sendo que este se acentuou de forma sensível nos últimos oito anos96, fato que pode ser notado pela própria formação do grupo de “Samba de Roda”. Considerando a mudança de enfoque em relação ao samba de bumbo em Pirapora, desde então, com a preocupação da prefeitura em “revitalizar” o samba local, em “resgatá-lo”, houve um aumento das ações desta instituição em relação ao fomento e continuidade da expressão cultural local. A instituição, a partir de então, passou a elaborar e gerir projetos que privilegiam o samba local, e sua representação na cidade, o grupo “Samba de Roda”. Tais projetos foram implementados, materializados, sobretudo, a partir do ano de 2003 na cidade, conforme foi citado anteriormente. Policarpo J. da Cruz (2007), coordenador de cultura e turismo, em entrevista, apresenta estas ações e as intenções da prefeitura nestes incentivos:

O apoio da prefeitura, a gente pode dizer até que foi o Prefeito Miguel Bueno que deu um incentivo maior, né? Chamou a Maria Esther, deu um apoio pra ela, inclusive um apoio financeiro pra manter o samba naquela época. Fez uma certa divulgação (...) Faz mais ou menos uns dez anos que teve esse apoio que foi feito do Miguel, vamos dizer que foi mais ou menos em 1997, acho que por aí, que o Miguel deu esse apoio. Mas logo depois que o Miguel saiu, aí o prefeito Raul de fato pegou e achou por bem de dar um embalo mesmo no samba, e ofereceu um apoio irrestrito mesmo, inclusive colocando na mídia, dando maior ênfase assim na divulgação... e chegamos ao ponto que, nós tínhamos, lá onde é agora a casa do samba, tínhamos lá um prédio que era da igreja, este prédio foi construído em 1913 para uma entidade chamada São Vicente de Paula, os vicentinos, que cuidavam de pessoas carentes (...) Então por isso que o prefeito achou melhor voltar às origens

95 Ver AYALA; AYALA (1995); ARANTES (1986).

96 Informações adquiridas junto a alguns funcionários da prefeitura, como Plínio Silveira, assessor da diretora da

daquele local, e usou essa casa pra ser a casa do samba, o ponto do samba, então o samba manteve esse império. Hoje em dia ele já teve presença na Rede Globo, no Jornal Nacional, na TV Cultura, TV Bandeirantes, e vários informativos aí, né? A mídia que divulga e fala do samba. Eles são chamados, o grupo, pra se apresentar em faculdade, inclusive pra mostrar o tipo de folclore que nós temos, festas, estas festas tradicionais eles também são chamados. Enfim... tão levando esse samba agora bem ao pé da letra, a coisa tá funcionando. Gravaram um CD, né? Eu dirigi este CD inclusive. Eu fiz isso pra marcar a presença do samba, né? A gente não sabe o que vai acontecer com o tempo. Então pra marcar, pra registrar.

Neste ano, como nota-se na fala de Policarpo, foi fundado o “Espaço Cultural Samba Paulista Vivo”, mais conhecido pelos moradores da cidade como Casa do Samba, como iniciativa do governo municipal, o qual também fundou uma associação entre os integrantes do grupo “Samba de Roda” local. A Casa do Samba ocupa o espaço de uma construção datada do ano de 1913, a qual funcionava como um abrigo para pessoas que não tinham onde morar. A escolha deste prédio para a sede do “Espaço”, foi pautada em alguns fatores que pudessem remeter à história do samba na cidade. Os fatores que contribuíram para tal escolha centram-se no fato da rua em que está situada a construção, a José Bonifácio, ter sido o local em que ocorria o festejo do samba organizado por Honorato Missé na década de 1950, onde ficava situado o bar “Curingão”; e também, conforme relato de Policarpo Cruz, em razão desta construção aparecer em algumas fotos antigas, as quais faziam alusão ao samba. Após conseguir autorização dos órgãos competentes, o então prefeito de Pirapora propôs a construção de algumas casas para os moradores do prédio em um bairro denominado Vila Nova, e, finalmente reformou-o para a inauguração do “Espaço Cultural Samba Paulista Vivo Honorato Missé” (Ver fotos 28 e 29). A Casa do Samba mantém um arquivo composto por fotos do festejo do samba de bumbo em diversas cidades do interior paulista, também de Pirapora, além de fotos de cordões carnavalescos; livros e textos sobre o samba de bumbo no Estado de São Paulo em geral, e em Pirapora em particular. Todo o espaço faz alusão à tradição que a cidade incorpora em relação ao samba de bumbo, sobretudo ao momento histórico em que Pirapora operava como local privilegiado do encontro de grupos de diversas localidades do Estado de São Paulo e também de outras regiões do Brasil.

Além de ser a sede do grupo “Samba de Roda” local, o espaço também é usado para as mais diversas atividades, tais como festas de aniversário de funcionários da prefeitura, oferecimento de feijoada por instituições filantrópicas, e eventuais reuniões dos dois grupos de samba de bumbo da cidade. Portanto, este não é um espaço de uso restrito do grupo. É na Casa

do Samba que também são realizados todos os eventos relativos ao samba na cidade, como os shows de grupos de samba, em maioria da capital paulista, o carnaval, apresentações destes grupos na festa do Bom Jesus em agosto, e também em outros eventos organizados no decorrer do ano, como o projeto “Samba na Casa” realizado pela Secretaria de Cultura e Turismo. O projeto consiste em shows apresentados na Casa do Samba por quatro grupos que se apresentam, cada um separadamente, nos finais de semana. Assim, o “Samba na Casa”, nome dado ao projeto, prevê a apresentação de três grupos de pagode locais, nos três primeiros fins de semana de cada mês, sendo que no último fim de semana a apresentação é promovida pelo sambista paulistano Osvaldinho da Cuíca.

É possível notar que a criação da Casa do Samba pôde impulsionar as atividades do grupo de “Samba de Roda”97, considerando o fato deste estar intimamente atrelado e tutelado pela prefeitura, contribuindo também para solidificar a imagem da cidade e sua relação com as origens do samba de bumbo realizado no Estado de São Paulo; e, sobretudo, a consolidação de um discurso que liga Pirapora ao samba realizado na capital paulista.

Entretanto, a própria criação da Casa do Samba evidencia algumas funções assumidas pelo samba nos dias atuais na cidade. O “Espaço” foi criado posteriormente à criação de um grupo de samba local. A criação e institucionalização de um grupo de samba deveria, então, ser acompanhada também de um local que o resguardasse, que o amparasse. O próprio caráter da Casa do Samba evidencia que o samba não mais é uma prática vinculada a outros fatores – religiosos, étnicos etc – independentes, desvinculados, da prefeitura local. Em uma palavra, evidencia a dependência do grupo em relação às ações e projetos institucionais, sem os quais não há autonomia. Portanto, a Casa do Samba em sua dimensão arquivística do samba dito “rural” paulista, pode ser considerada um lugar de memória, na medida em que não existem outros meios de memória98 para a maioria dos integrantes do grupo “Samba de Roda”, sobretudo para os recém ingressos. Conforme Nora (1993, p. 13):

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Conforme aponta Manzatti: “O mesmo grupo amadureceu seus quadros com o retorno de membros que estavam afastados e tornou-se uma associação, o que aumentou também, em muito, o número de benefícios obtidos para seus membros, além do maior número de apresentações e eventos envolvendo o trabalho do grupo. Mensalmente são levados à cidade sambistas importantes de São Paulo que estão restabelecendo a conexão ancestral que existia entre o Samba de Pirapora e o de São Paulo.” (MANZATTI, 2005, p. 14)

98 De acordo com NORA (1993, p. 09): “A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela

está em permanente evolução, aberta à dialética da evolução e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suceptível (sic) de longas latências e de repentinas revitalizações.”

Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção. (...) Valorizando, por natureza, mais o novo do que o antigo, mais o jovem do que o velho, mais o futuro que o passado. Museus, arquivos cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são os marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões da eternidade. (...) São os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizações passageiras numa sociedade que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os particularismos; diferenciações efetivas numa sociedade que nivela por princípio; sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos.

Nora esclarece que o surgimento dos lugares de memória é concomitante com o fenômeno da mundialização, massificação, democratização, em suma, pelas mudanças em nível global pelas quais o mundo contemporâneo está sujeito, sendo também concomitante com o fim das sociedades-memória. Conforme o autor, os lugares de memória surgem e continuam mantendo-se por meio do sentimento de que não existe memória espontânea, daí a necessidade se criar lugares para a “memória refugiada”. Assim, se estas lembranças fossem ainda uma prática cotidiana, realizada independente destes fomentos, se esta memória não estivesse realmente ameaçada, não seria necessário que se constituíssem tais lugares de memória. Neste sentido há três dimensões inerentes aos lugares de memória, sendo elas a material; a funcional, o que garante a cristalização e transmissão da lembrança; e a simbólica, que, de certa forma, revive uma experiência, ou acontecimento que fora vivido por apenas algumas pessoas. A Casa do Samba, enquanto lugar de memória, congrega estes três elementos. Sua existência é justificada ao passo que ela opera de modo a dar continuidade à memória do samba de bumbo na cidade, sendo um local capaz de oferecer uma maior identificação dos membros do grupo com a história do samba local.

Dentro deste movimento de valorização e “resgate” do samba local, houve, no ano de 2003, a gravação de um CD pelo grupo, intitulado “Grupo de Samba de Roda – Nossa Gente”. O disco é composto por gravações de sambas do grupo “Samba de Roda”, bem como músicas de outros músicos piraporanos. Como apontado anteriormente, o disco foi organizado e idealizado pelo coordenador de cultura e turismo local. Neste âmbito pode-se abrir um parêntese a fim de contextualizar este novo enfoque em torno das manifestações culturais populares. Pensar esta mudança, no tocante à gravação, fixação deste tipo de música, pode ser

Foto 28 – Casa do Samba em Pirapora. Foto de Fernanda Dias. Data 01/06/2007.

Foto 29 – Espaço interno da Casa do Samba. Neste local são realizadas apresentações de grupos de samba. Foto de Fernanda Dias. Data 01/06/2007.

interessante para o entendimento dos usos da gravação de música pertencentes ao universo da cultura popular contemporaneamente. Carvalho (2004) estabelece um panorama histórico desta mudança, alocando suas origens já no século XIX. O autor ressalta que ocorreu um grande esforço moderno, na época do imperialismo, na segunda metade do século XIX, para a criação da noção do patrimônio cultural mundial. Aponta que o advento da gravação modificou totalmente a noção de arquivo, pois, a partir daí, passou-se a registrar a música dos povos vivos, sendo constituídos arquivos fonográficos, como os de Berlin, Londres, Washington e Paris, comportando gravações de música dos povos orientais, dos índios norte- americanos, africanos e outros.

Já no final do século XIX, houve a formação dos arquivos nacionais, em que estariam presentes as tradições culturais tidas como representativas dos povos componentes do Estado- Nação. Por meio da gravação e do filme, foram colocadas no arquivo tradições orais que remetiam singularidade e, ao mesmo tempo, diversidade à nação. A formação dos arquivos nacionais deu-se primeiro na Europa e, já na década de 1920, ocorreu o mesmo no México, na Argentina e no Brasil. Nos anos 1950, as gravações etnomusicológicas não tinham fins lucrativos, tratavam-se apenas de discos etnográficos que circulavam fora da esfera do consumo. Já na década de 1970, passou a ser exigida dos etnomusicólogos a edição de materiais audiovisuais como parte da atividade profissional. Ao passo que a indústria cultural do “exótico” cresceu, o pesquisador passou a ter a função de mediador do consumo cultural, assim, não são mais as instituições estatais que publicam os discos etnográficos, mas, antes, a indústria do disco comercial. De acordo com Carvalho, o pesquisador em seus discursos e palestras sobre determinada tradição musical, aponta, indiretamente, o potencial desta como fonte de entretenimento. Sem compromisso político algum com os problemas pelos quais passam as comunidades portadoras de tais tradições culturais (no caso, de origem indígena e afro-brasileira), o pesquisador passou a pactuar com a indústria cultural e acreditar estar cumprindo seu papel, fornecendo retorno financeiro para a comunidade. Conforme o enfoque do autor, o etnomusicólogo passa a ser produtor, a partir do momento em que coleta em campo o material (a gravação), edita um disco e convida os músicos para realizar shows e turnês.

A gravação deste tipo específico de música assume outros usos e contornos a partir de tais mudanças. O disco passa a ser uma fonte de entretenimento para seus consumidores, além de oferecer uma fonte de receita direcionada à entidade que o vende, ou ao próprio grupo que

o produziu. No caso de Pirapora, opera como uma maneira de divulgar o grupo “Samba de Roda” e também esta dimensão cultural da cidade de Pirapora para seus visitantes.

Tanto a gravação do CD, como a criação da Casa do Samba é um reflexo do processo de institucionalização pelo qual passou o samba na cidade de Pirapora, a partir do momento que este passou a estar estreitamente ligado à prefeitura local. Portanto a Casa do Samba faz parte dos projetos e esforços da Prefeitura Municipal em inserir, paulatinamente, o samba nas atividades turísticas da cidade. Tais ações estão esparsas, e se materializam em projetos, como o citado “Samba na Casa”, na inserção maciça do samba (local e paulistano) nas atividades festivas, como o carnaval e festa do Bom Jesus, além da difusão do samba local em nível mais amplo com o fomento de apresentações realizadas em outras localidades. Juntamente com tais políticas de valorização turística do samba, a Casa do Samba tem uma influência decisiva enquanto local privilegiado das atividades relativas ao samba, sendo uma grande difusora de um discurso presente na cidade, o qual abarca os interesses acima citados, beneficiando entidades específicas, sendo este: a concepção da cidade de Pirapora enquanto “berço” do samba paulista.